segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Cantadores chegavam nos gaiolas

Cantadores chegavam nos gaiolas
resplandecendo trovas consteladas,
e entre os sabores negros da partida
ardiam no alecrim das madrugadas.
Luas multiplicavam seus cavalos,
dragões comiam flor; e no tormento
das fogueiras solares se expandiam
desdobrando os cordéis do pensamento.
Comparava-se o mundo a qualquer bicho
que anda chutando os pobres de sua terra,
bicho-papão de sonhos e quimeras.
Nordestinadas levas, seringueiros
dos quais resta essa dor, viola serena
que nos consola porque vale a pena.

JORGE TUFIC

domingo, 29 de dezembro de 2019

Poetas morriam tísicos

Poetas morriam tísicos. Rameiras
se vendiam na praça da Matriz;
transatlânticos vinham das europas
e eu queria partir, sendo feliz.
Mas partia de costas para o cais
na direção correta de algum bar,
e ali me vejo sob a tenda exausta
de alguém que fui sem nunca me encontrar.
Momentos singulares, num respingo
me trouxeram Bandeira: uma andorinha,
minha vida de à toa, meu domingo.
Poetas morriam tísicos e loucos.
Eram, contudo, belos, verdadeiros.
Devem ser hoje os tímidos e poucos.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Almas da rua, avulsos caminhantes


A imagem pode conter: árvore, céu, planta, sapatos e atividades ao ar livre
Almas da rua, avulsos caminhantes,
marginados, solenes — quantas frases
ruminaram sem eco: aqui estão eles
diante de mim fantásticos, lilases.
Beleleco, João Anta, Marinheiro
e outros que um dia isentos projetaram
sombras, tímidas sombras fugidias,
como tenham surgido, definharam.
Juncos, cachimbos, vestes remendadas
que restara de vós, semblantes duros,
brandos e bons com as trêfegas crianças.
Que o Museu dos Anônimos conserve
nalgum lugar a imagem que ainda faço
dos náufragos da vida e seu fracasso.

JORGE TUFIC

(FOTO R. SAMUEL: BOURNEMOUTH)

domingo, 22 de dezembro de 2019

NATAL

A imagem pode conter: céu, atividades ao ar livre e natureza

NATAL 

Natal me inspira estrelas e reis magos,
Natal revolve os séculos de usura,
Natal me faz pensar nessa loucura
de esperar pelos bens que foram pagos.
Natal de paz ou da canção dos lagos,
Natal de mim que em trevas se procura,
Natal de Deus na fé, quando obscura
ou quando se ilumina em breves tragos.
Natal de amor à mesa que nos prende
aos laços afetivos e ao consolo
de ter alguém que a mesma luz acende.
Natal da iniciação: que a cruz suporte
o corpo deste Rei, sangue e tijolo
do soneto que vence a própria morte.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A BUSCA

A BUSCA

Busco os velhos amigos sobre tela
feita de vozes, têmpera de sonho,
desolados perfis madrugadenses,
companheiros que em versos recomponho.
Sei que estão por aí. Alguns finados,
outros dormindo o sono cor de prata:
rupturas, corrosões, andam por tudo,
separou-nos o tempo que nos mata.
Ruas, Aluísio, Neto, o nosso Guima,
no auge de um brinde ao sol, posam radiantes
numa foto que as traças desanima.
Queira, Senhor, tão breve me aconteça
tornar a vê-los como foram dantes,
se logo até de mim talvez me esqueça.

JORGE TUFIC

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Estas vozes de outubro nos ciprestes

Estas vozes de outubro nos ciprestes
farfalham guilhotinas. Rosas pensas
cantam para morrer. Unhas de vento
dobram páginas rubras quando sopram.
Estas vozes de outubro nos ciprestes
anotam meus presságios: quem nos salva
das intrigas, da morte ou da velhice?
Graníticas falésias onde ancora
o musgo, ancora a sombra dos navios.
Estas vozes de outubro nos ciprestes
desenham tempestades, traçam planos
para um barco de sólidos conveses.
Zorba dança e circula no apogeu
das lágrimas; e ganha o que perdeu.

domingo, 1 de dezembro de 2019

UM SONETO AO SONETO

UM SONETO AO SONETO




                   para Virgílio Maia

O sol dentro de um ovo: este milagre
tomou forma de barco. E já navega
desde Petrarca ao meu jeitão de brega,
mas encontra entre nós quem o consagre.
Neste garimpo, salivando o agre
desamor pelos campos, faca cega,
o construtor de andaimes não sossega
nem troca o vinho pelo bom vinagre.
Bocage empluma os dedos com suas glosas,
Jorge de Lima extrai-se do cansaço
que fizera de ti um caixão de rosas.
Mas és, soneto, ainda o velho laço
que embora preso a leis tão rigorosas,
a tudo nos obriga em curto espaço.