Agenda 1965
AGENDA 1965
Nenhuma dúvida quanto à existência de muitos passados em nossas vidas. Atividades em locais diferentes, inclusive em horários e dias alternados, dividem o tempo entre a vida prática e a literatura. Outros afazeres e prazeres também se encaixam nesse mosaico, embora nele se sobressaia o que mais deveria absorver nossa força de trabalho, ou seja, o emprego fixo do qual se recolhe, ao fim de cada mês, o famoso salário que na esfera pública convencionou-se chamar de vencimento. Deste período, essa agenda de 1965 registra uma luta sem quartel por um cargo melhor de chefia ou, a partir de 1960 a 62, pela readaptação de Servidores que tinham esse direito, como era o meu caso.
A leitura de tais anotações me devolvem à rotina de todo esse ano, mas um tanto diversa dos anos anteriores devido à expectativa de minha nomeação e de vários outros colegas para o ambicionado cargo de Inspetor do Trabalho. Uma justa abertura aos milhares de funcionários que aguardavam por um concurso público e, à falta deste, tiveram que atender aos desvios de suas funções em localidades distantes, insalubres e perigosas. Numa pasta que ainda conservo a sete chaves, ali estão dezenas de portarias, ordens de serviço, memorandos, ofícios etc., parte dos quais servira na instrução de meu processo remetido ao DASP (sigla da época).
Tentarei recolher este simulacro de diário, na verdade um mero suporte aos mínimos desabafos que eu tinha que levar para casa, vezes chegando do Ministério do Trabalho, vezes do jornal e outras vezes das reuniões com a equipe do Clube da Madrugada encarregada de preparar a página literária que mantínhamos na imprensa, sendo a mais importante a de ¨O Jornal¨, da empresa Archer Pinto Ltda. O certo, porém, é que este repositório de fatos, encontros, dramas familiares, entre tantas miudezas que não puderam ser evitadas ao fluxo de penosos acontecimentos, consagra um mesmo espaço temporal para as mais absurdas surpresas e as mais inesperadas soluções (como no episódio do despejo de meus pais da casa que ocupavam na avenida Joaquim Nabuco, número 329, em Manaus).
1º. de janeiro de 1965
Café. Leitura: ¨Cadernos de Crítica¨, de Antonio Olinto, ¨Clareza e mistério da crítica¨, de Adolfo Casais Monteiro, ¨A Raposa e as uvas¨ (III) etc. Almoço na casa dos velhos, onde pretendo dormir até às 15 horas. Às 17 me encontro com o Zé Roberto no Café do Pina, o qual me passa os primeiros resultados do Enquadramento definitivo e das readaptações em poder do DASP. Sinto-me justificadamente pessimista quanto ao ano que se inicia. Retorno à casa onde confiro os acontecimentos do dia. Tudo muito vago.
Nota do Autor: A casa de meus pais ficava na avenida Joaquim Nabuco, no. 329, e a minha à rua Izabel, no. 16, no mesmo bairro.
02/03/jan.
Chove. O fora e o dentro parecem a mesma coisa. Visto-me às pressas e saio para o jornal. Encontro-me com o Murilo na Marechal Deodoro: confirmo com ele as minhas suspeitas com base na demora de uma resposta acerca de nossas readaptações. Dois anos de espera, e nada. Oficina do jornal, serviço de paginação.
* Na ¨Pensão Maranhense¨, tomo assento à mesa do Aluisio Sampaio. Chegam a seguir o Arthur Engrácio, o Alencar e Silva (Neto) e o Abrahim Aleme. Ali mesmo, respondendo a uma pergunta que lhe faço, diz-me o Aluisio que a partir de segunda-feira já posso iniciar minhas novas atividades de Redator no jornal em que ele ocupa o cargo de Secretário, ou seja, ¨A Crítica¨. Salário mínimo, um só expediente.
Dívidas. Cálculos. Contas-de-chegar (decepções). Ao Banco da Lavoura 120.000,00 (em cruzeiros); à Caixa 80.000,00.
05/jan.
Meu grande talvez maior problema continua com seus ¨tumultos¨ na cidade. Trata-se de minha pobre mãe Faride.
* Encontro com meus pais para o sagrado almoço de todos os dias. O velho está mais velho, acabado, roto. Mas nada, por enquanto, a fazer, pois falta o ¨melhor¨. O pouco que ganho não chega para as despesas das duas casas.
N. do A.: A uma considerável distância desse ano, verifico que ainda conservo, dobradas no interior desta agenda, anotações que me impressionam por seu alcance no tempo e no espaço: por exemplo, meu primeiro emprego em Sena Madureira, aos oito anos de idade, como servente no Armazém de Fares & Irmão, situado na rua Purus; em seguida vem a mercearia de tio Estevam Jorge, na Travessa Major João Câncio, que vai dar no porto; já em Manaus, meu primeiro emprego foi na loja de Bady Mussa Dib, à entrada do setor de venda de peixes do Mercado Municipal ¨Adolpho Lisboa¨, ano 1945. Outros empregos: Abdon Razac, na Estação dos Bondes; Loja ¨Vitória¨, à rua da Instalação; jornal ¨Folha do Povo¨, de Francisco Rezende, no Beco do Comércio. Empregos com Carteira Profissional assinada:Weyne Equipamentos do Brasil, à rua Juan Pablo Duarte, 64, Cinelândia, Rio de Janeiro; 1951; vespertino ¨A Gazeta¨, do Dr. Avelino Pereira, à rua Saldanha Marinho, 140, Manaus-AM; Empresa Archer Pinto Ltda., na avenida Eduardo Ribeiro, 556; cargo: redator; Manaus-AM; Fundação Cultural do Amazonas, na rua Huascar de Figueiredo, 1019; cargo: redator do ¨Jornal Cultura¨ etc. Data da dispensa: 29.12.1983; Imprensa Oficial do Estado do Amazonas ( tempo de serviço comprovado em recibos e edições do Suplemento Literário Amazonas. Cargo: membro da Comissão Editorial; data da admissão: 01.01.1986; data do encerramento das atividades do SL Amazonas: 31.12.1988.
Serviço Público Federal. Através do ¨Diário Oficial da União¨ de 22.01.1954, Seção do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, fui designado para exercer, em caráter provisório, a função de Identificador, referência 19. Assumi em 24.02 1954, na gestão do Dr. Edmundo Fernandes Levi como Delegado Regional do Trabalho. A sede da DRT ainda era na Praça Heliodoro Balbi, em frente ao Colégio Estadual do Amazonas.
De Identificador, função provisória, passei para Auxiliar de Datiloscopista nível 8-A.
Fui nomeado Inspetor do Trabalho (assunto dramático destes rascunhos) através do ¨Diário Oficial da União¨ de quinta-feira, dia 30-12-1965, texto legal assinado pelo Presidente Humberto Castelo Branco. Na íntegra: De acordo com o art. 45, combinado com o art. 46 da Lei no, 3.780, de 12-09-1960, art. 1º. do Dec. no. 52.400, de 25-08-1963, e art, 21 do Dec. no. 49.370, de 29-11-1960 etc..
06/01
Faltei ao expediente da Repartição para conferir algumas situações alusivas ao meu pedido de readaptação para Inspetor do Trabalho. Banco Comercial do Pará: 200.000,00.
N. do A.: Estas faltas eram necessárias. Eu não contava com ninguém para me representar ou tirar fotocópias de documentos. Tampouco nos casos em que minha presença era reclamada para resolver problemas domésticos, a exemplo das crises nervosas de D. Faride, sem falar nos casos de renovação de empréstimos a bancos, agiotas e cooperativas.
08/jan.
Prossigo minha polêmica com o escritor Paula e Souza nas páginas de ¨A Crítica¨. Defendo o poeta Luiz Bacellar das heresias que lhe foram assacadas, gratuitamente. Da ofensiva no início, agora ele toma a defensiva, mas não se trata aqui de um intelectual capaz de pedir desculpas a quem quer que seja.
N. do A.: Nas províncias do norte e extremo-norte do País, tais polêmicas, geralmente em torno de um verbo no plural ou no singular ( v. g. sejamos modesto ou sejamos modestos), animavam de quando em quando as páginas de nossos matutinos e/ou vespertinos. Na década de 50 em Manaus ainda se comentavam as mais célebres de um passado recente, envolvendo nomes famosos como os de João Leda, Péricles Moraes, Huascar de Figueiredo, entre muitos outros.
09/jan.
Aceitei trabalhar na base de produção na Empresa Calderaro, jornal e editora. Continuamos – a equipe jornalística do Clube da Madrugada – a manter o Suplemento literário de ¨O Jornal¨ aos domingos. O nosso Aluísio Sampaio, incansável na direção, segue a esteira do ¨Jornal do Brasil¨ revolucionando o aspecto gráfico da página, ora a incentivar novos ilustradores, ora a utilizar-se de ¨cíceros¨ maiores confeccionados de madeira. O Álvaro Páscoa, sempre conosco, é o mestre da xilogravura.
11/jan.
Repartição. Sou chamado a receber de volta o meu processo de readaptação, agora transformado em diligência para juntada de trabalhos. Ainda bem que os tenho a todos em pastas separadas. E o que dizer de alguns outros pretendentes ao cargo? Pelo menos, são cobras criadas. Que Deus nos ajude a todos.
13/jan.
Repartição. A paisagem das ruas lá embaixo, o cais, o Relógio Municipal, a Igreja Matriz e, a partir da Av. Sete de Setembro, a continuação da Av. Eduardo Ribeiro até a Praça do Congresso. Aqui em cima, movimento habitual de expedição de Carteiras do Trabalho, reclamações etc. Fim de expediente. Casa. Sesta.
* Às 17:hs, ¨República Livre do Pina¨, reunir com os amigos antes do jornal.
14/jan.
Como adoçar os crótalos selvagens de meu caminho? Quem sabe o entremeio filosófico ou um pouco de lirismo me ajude nisso. Se não, vejamos.
A Natureza não tem os olhos parados. Ela tudo vê e tudo guarda. Transporta-se com as cinzas da usura que lhe deita fogo, se oculta, transfere-se de habitat, mas faz seu retorno. Enquanto isso, mesmo no centro urbano, as árvores rareiam, o sol castiga, aumenta a predominância de material inerte, o termômetro sobe. Para onde estamos indo?
15/jan.
Este é um dia agradável, amplo. Ao decerrar as janelas do quarto meus olhos percorrem os arredores do Igarapé da Bica, neste começo da rua Izabel que emenda com a dos Andradas, Miranda Leão e rua Oriental. Suas margens, principalmente a margem direita de quem vem do Educandos, estão qualhadas de casebres flutuantes. Eles formam uma cidade que começa perto das docas e vai depositar-se além das pontes da avenida Sete de Setembro. Sempre que o rio baixa os casebres ficam no seco, uns caídos à direita, outros à esquerda, conforme o terreno. Têm sido um prato cheio para os artistas plásticos e uma dor de cabeça para o Governo Militar.
* Nos próximos dias será lançado um livro sob o título ¨Aspectos Sociais e Econômicos da Cidade Flutuante¨
16/17 jan.
Atritos constantes na Repartição. Não tenho como desabafar senão me utilizando de uma frase de Wilhelm Reich: ¨Faz parte do meu respeito pelas pessoas expor-me ao perigo de dizer-lhes a verdade¨ ( do livro ¨Escuta, Zé Ninguém¨).
* Café do Pina (RLP), onde a conversa é sobre a praça Gonçalves Dias, que já tem projeto e escultura de Álvaro Páscoa com medalha da efígie do poeta maranhense. A nova praça será construída aí mesmo em redor do pavilhão, formando um delta.
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* Em companhia do Aluísio até às 24:hs.
* A caminho da rua Izabel, surpreendo um haikai:
No alguidar solitário
pousa o brilho errante
de um vaga-lume.
*Crônicas, poemas curtos, artigos. Neste ano, eu faço a conta do Crucificado: 33 agostos. Antecipo o registro:
Entre um século e outro, bem ou mal
teci meu labirinto – e à roda preso
deste planeta azul fico surpreso
de ser um deus num corpo de animal.
20/21/jan.
Leio sobre Ezra Pound e o ¨epos¨ no ¨Jornal do Brasil¨. Lembra-me de Mário Faustino e o poema embrionário que ele pretendia escrever durante toda sua vida.
Começa a lenta e contínua agonia do Leão Britânico, Churchil.
Em companhia do Aluísio etc.
* Um sujeito com quem tive uma arenga no ¨São Marcos¨, mata friamente um vizinho, a tiros. Haverá isso de um revólver comprado para matar Fulano, mate Sicrano? Se assim é, tenho escapado de muitas.
23/24/jan.
Primeiro grande crime do ano. Kazem , um libanês, elimina Yutman, um palestino, durante tiroteio na rua Joaquim Sarmento. O Abrahim Aleme me indica para fazer a cobertura do caso para a nossa ¨A Crítica¨, pretextando que entendo o árabe mais do que falo. Foram duas semanas de idas e vindas entre o presídio, a Beneficente Portuguesa (para onde baixara o irmão da vítima, atingido por um tiro na perna) e a redação do jornal. Fiz o possível e até sobrou para meus pais uma parte do dinheiro do morto, segundo a religião maometana.
25/jan.
Entrega-me o Murilo Leví uma lista dos documentos exigidos na instrução do processo que movimenta estas páginas: diligências, fotocópias de Relações de Empregados, Impostos Sindicais e Quadros de Horários com os respectivos vistos dos readaptáveis.
28/jan.
Entrevista com Mussa, o irmão do inditoso Yutman Yussef, abatido no verdadeiro ¨bang-bang¨ da manhã de domingo passado. Revela-me ele o pivot do crime: Raquel, esposa de Kazem. Abre-se então um novo capítulo na história que venho escrevendo para a¨A Crítica¨, já na segunda reportagem. Outras virão, com certeza.
29/jan.
Volto ao leito no. 7 da Beneficente Portuguesa e torno a entrevistar o Mussa. Novas revelações sobre a tragédia. Esta reportagem é a terceira da série e vai para a edição de segunda-feira.
30/31/jan.
Acordo cedo. Mais do que antes, sinto-me um verdadeiro homem aos 34 anos de idade. Apesar de minha mãe, cujo problema mais se agrava. Temo dar meus chiados por aí ao invés de engulir os sapos do martirológio.
* O peso do mundo e o vazio de tudo.
* Angústias do efêmero, ilusões do eterno.
* Sessão extraordinária do Clube da Madrugada para reforma dos Estatutos.
01/fev.
Em andamento a diligência do processo de readaptação. Estrita a colaboração do Murilo.
* Volto à Beneficente Portuguesa onde converso com Mussa que formaliza a entrega da parte que coube a meu pai na partilha dos bens deixados por Yutman. Não pude recusá-la, pois isto seria uma afronta a um preceito religioso do Islã.
02/fev.
Leio nas folgas da Repartição ¨A loucura sob novo prisma¨, obra espírita. Faride, numa de suas ¨fases¨, esteve aqui e permaneceu sentada no banco destinado ao público, em frente ao segmento do balcão que separa este espaço dos Serviços Gerais. Meio supersticioso, consulto o horóscopo que acusa um dia desagradável, recomenda calma. Mãe, genitora, Faride, Emme (¨minha mãe¨, em árabe), são os diversos modos de tratar essa pessoa divina que, lamentavelmente, devido a uma queda seguida de aborto em 1939, nunca mais fora a mesma.
03/fev.
Passo a tarde na casa de meus pais, repousando.
* À noitinha me encontro com o Alberto Antonio no ¨São Marcos¨, o bar tomado pelo furor das marchas carnavalescas vindas de uma eletrola. Tomamos cerveja, e o papo, como de hábito, girou em derredor das fatuidades.
* Colados ao Orbe-Terra, infinitamos.
A rosa não vegeta: milagra.
N. do A.: Insight(s) ou coisa parecida, tenho por mania registrá-los. Eles servem posteriormente no enxerto de crônicas e até de poemas. São mais úteis do que certas composições poéticas que ficam para depois e acabam no jamais.
04/fev.
Através de um ¨patrício¨ Cônsul Honorário do Líbano vim a saber de uma herança que temos em Batroun, cidade litorânea de meus pais. Pede-me ele documentos, no que foi atendido. Mas fico em dúvidas quanto aos resultados positivos diante da suposição de que ainda existem remanescentes das famílias Jarjura e Abukora no Líbano.
05/fev.
Permaneci durante toda a tarde na Repartição, datilografando contratos de locação de casas pertencentes ao Dr. Sylvio Moura Tapajós, Delegado Regional do Trabalho. Quando saio me encontro com meu nobre amigo Jorge Abdon Carim. Agora estamos no terraço do Lord Hotel a degustarmos uma garrafa de ¨Lacrima Cristi¨. Antes de levantarmos da mesa – e como remate de assunto afeto à literatura, eu lhe digo: Se um bom livro de poemas não consegue alterar os valores da Bolsa, nós, poetas, nascemos no planeta errado. Ele ri-se, e partimos.
06/07/fev.
Leio o ¨Ascensão e Queda do Terceiro Reich¨, quando chega a mãezinha. Abandono o livro. A seguir, o Maciel também chega. Tomamos vinho, almoçamos juntos. Durmo a sesta. Minha mãe retorna. Fico meio impaciente, faço a barba e saio. Me deparo com o Cosme Hayek no Café do Pina, passeamos com a família até cerca das 22 horas. Estou novamente em casa, ouço um programa da Rádio Rio Mar. Nesse então, me recolho.
* Em silêncio me ponho a conferir certas frases de amigos, salvas do enxurro. Como esta de um desconhecido: Nosso mundo já é uma falta de opção. E por falta de opção nós vamos por aí ou ficamos por aqui. Final de contas, a melhor opção por falta desta é o consolo de havermos tentado. Tudo vale a pena? Comodidade.
08/fev.
A guerra do Vietnam parece não ter fim. Chega a todos os extremos. A União Soviética está apreensiva e ameaça os EE.UU de ajudar o País irmão, que se bate pela sua independência.
09/fev.
Os dias vindouros nada acenam de bom com respeito a finanças. E as dívidas se acumulam. Pudera: a subsistência de muitos depende de apenas um. Abordo amigos, peço dinheiro emprestado. O Ministério do Trabalho continua sem pagar a gratificação de função que venho exercendo, me viro no jornal, entro na fila do¨vale¨ nos fins de semana. Fato curioso: nega-se a moeda salvadora, mas nunca a bebida.
N. do A.: José Coelho Maciel, ou apenas o Maciel, trabalha na série de quadros para uma exposição em Manaus. Foge ao comum no estilo e na temática. Maciel me acompanhava nas andanças desse perímetro urbano tradicionalmente conhecido como bairro dos Remédios, de tantos caminhos cruzados. Pois, bem: o vigor físico de minha mãe lhe permitia que fosse de sua casa na Joaquim Nabuco à minha na rua Izabel, e de lá tomasse o rumo da Delegacia Regional do Trabalho, sem qualquer mostra de cansaço.
10/11 fev.
Correspondência do Getúlio Alho sobre o nosso projeto de organizar e fazer editar uma antologia de contos amazônicos.
*Os mesmos dias se repetem aos caprichos do signo e do insigni/ficado.
*Vai bem adiantada a leitura dos três volumes de ¨Ascensão e Queda do Terceiro Reich¨.
*O momento atual é tenso, muito tenso. Nenhum deslize deverá perturbar o andamento das coisas até que chegue o mês de junho, previsto como decisivo para as nossas demandas.
*Mais leitura, esboços etc. Ligo e ouço a RCM.
*Atividades literárias praticamente suspensas. Tudo por conta das tais expectativas, já que têm estas e o assunto que envolvem a chave de nosso futuro. Ou isto ou nada.
*Nas livrarias ¨Aspectos Sociais e Econômicos da Cidade Flutuante¨ e ¨Folclore Amazônico¨, I volume, de Mário Ypiranga Monteiro.
15/fev.
Com a ajuda do Murilo Leví consigo reunir os trabalhos exigidos pelo DASP em meu processo de readaptação. Anotei as despesas. Fotocópias: 40.500,00; autenticações: 52.000,00; e o porte aéreo: 1.500,00 cruzeiros.
Vou ao Tribunal de Justiça pleitear uma certidão para ser remetida ao Líbano.
Em casa, verifico que a tela do Maciel está pronta.
18/fev.
Os planos de autocontrole e preparação do amanhã progridem. As margens de excesso nas farras vão se reduzindo, as más línguas perdem veneno. Pouca gente sabe compreender o esforço de um homem com duas casas para manter, com a mãe perturbada, o pai envelhecido e seu único irmão sem a menor possibilidade de lhes prestar qualquer ajuda. Maktub ou Nacib, diria meu tio José, nomeando, em árabe, destino ou fado.
19/fev.
Na sala de visitas, encontro meu velho sentado à tosca escrivaninha, rabiscando frases, montando somas, planejando biscates. Ao ver-me curioso em decifrar uma daquelas, explica-me ele o que vem a ser o produto de uma sábia reflexão filosófica, a qual, após tantas mudanças, ficou como segue:
O Ocidente busca a utilidade.
O Oriente busca a sabedoria.
Aquele busca a verdade no homem.
Este busca a verdade em Deus.
Em todas as horas de folga, meu pai rabiscava e rasgava frases. Em Sena Madureira meu tio José fazia o mesmo, mas creio que os seus escritos e documentos foram guardados num baú que ele trouxe para Manaus. Soubemos aí que os cupins fizeram o resto. Recordando essa perda, lembro-me de sua correspondência de época com várias amizades de renome internacional, cultivadas em Beiruth, Londres, Paris, Lisboa, São Paulo e Rio de Janeiro. Ocioso mencioná-las, sem outras provas além das que guardo na memória..
20/21 fev.
Quem não é supersticioso ao lidar com problemas (coisas da vida) e absurdos (coisas que não têm solução)? Foi nessa que me alistei entre milhares de consulentes do horóscopo matutino que vem nos jornais. Por um dá-cá uma palha - a demora do Tribunal em expedir a certidão pedida pelo Cônsul do Líbano, a burocracia dos bancos em solicitações de empréstimos , se devo ou não sair de casa etc. – tem sido um transtorno este meu cotidiano de olhos arregalados apenas numa só direção: obter meus direitos ou ficar marcando passo indefinidamente.
* Assisto ao ¨Oito e Meio¨ de Felini. Um final que salva os retalhos das cenas anteriores do tédio consumado e bocejante. A invocação de poetas franceses dignifica o comentário, embora não explique logicamente o filme - que assim é Felini.
* Maciel tem novos projetos no andamento da série ¨caveiras sociais¨, tendo por modelo a grotesca ¨Uzina Estrela¨ de beneficiamento de produtos da região: castanha, borracha etc.. Essa fábrica está perfeitamente enquadrada na temática dos guaches do artista.
Os abacaxis de Holiwood invadem os cinemas. Exemplo: ¨Flórida, 1835¨ entre outros.
22/fev.
E porque os antigos sabiam calar, sutilmente iluminados pelo ouro do silêncio, esta deve ser até hoje a única maneira de servir aos preceitos da verdade, costas voltadas para os néscios e ouvidos moucos. O barulho que estes fazem com a língua, imitando chocalhos, é um de seus truques para desviar a atenção dos que avançam rumo à conquista dos próprios direitos. De tudo são capazes no intuito de impedir o ascenso de alguém, justo porque – segundo o Padre Nonato Pinheiro – esse é um brilho que incomoda.
Enfim, andorinha, somos dois inúteis.
23/fev.
Agendado para amanhã o pagamento dos barnabés federais. Meu elenco de credores supera o do filme norte-americano ¨Sansão e Dalila¨. O que não me desanima a ir amortecendo as dívidas e mantendo o crédito. Não tenho a mínima vocação para ser um Tartufo, deva algumas vezes possuir as astúcias de Iago. Maquiavel já pende mais ao político, estágio principalmente daqueles que governam. Pobres de nós, meros burocratas de uma DRT servida por dois imensos lances de escada, dezenas de janelões sobre um trecho de Manaus antiga e todo o ranço da República Velha nos papéis timbrados que andam de mão-em-mão, levados ou trazidos pelo Antonio ou o Literato, outras vezes pela boa colega Delzuita.
24/fev.
O Danilo Du Silva é um ótimo colega e bom jornalista. Na minha adolescência o conheci já adulto a escrever para os jornais, sobretudo alternativos como ¨A Folha Israelita¨, o ¨Cinema¨, do H. Real, entre outros. Confiei-lhe meus primeiros rascunhos de poemas e sonetos, somente para ter uma idéia do que eu estava fazendo, mas logo fui surpreendido com a publicação de um artigo bastante ferino e cruel assinado por ele sobre estes indefesos cometimentos. Seria meu livro de estréia, o qual, no entanto, acabei por levar ao meu primeiro auto-de-fé literário.
Serviu-me a lição nas duas frentes: a da confiança excessiva nos outros e a do aprendizado que se tira em qualquer circunstância, também dos outros.
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25/fev.
Seguindo planos bem estruturados, liquidei hoje 80% dos ¨vales¨. Após isso, sauna com bastante essência de eucalipto, em prol da leveza que me faltava.
* As miragens que se abrem no horizonte de nossos pleitos junto ao DASP, ficam mais nítidas. Desvelam-se as maracutaias do Governo civil comandado pelo PTB, ao impedir os concursos públicos, dando espaço a milhares de nomeações de protegidos (ou pelegos), causa principal de nosso engessamento e desvios de funções.
Talvez isso, ou mais que isso, empurre adiante os nossos processos.
26/fev.
Reunião da equipe para a seleção de trabalhos destinados à página do CM, no ¨O Jornal¨ Tomamos um copo de traçado no bar do Maravalha, Cine Odeon.
27/28 fev.
Em casa recebo a visita do Amazonino Mendes e do José Assis Nunes. Convidam-me para acompanhá-los à casa do primeiro, no bairro de Aparecida. Espera-nos um carro com vinhos etc. Me visto às pressas. E logo seguimos para o Sindicato dos Comerciários, na Luiz Antony, ao lado do 27º. B.C. Às 15:hs rumamos para a casa do Olson, aniversário de seu filho. E daí para a ¨União Portuguesa¨, o ponto final da maratona.
01/março
Amanheço debruçado sobre as páginas do II volume do ¨Terceiro Reich¨. Tenta-me a vontade de anotar algumas observações à margem do livro. O autor se refere aqui à possibilidade de Inglaterra e França tolherem as pretensões belicosas de Hitler, enquanto este ultimava os preparativos de invasão da Thchecoslovaquia, em 1938. Descreve ele, inclusive, o pavor que dominava esses dois países desde a fatídica experiência da Legião Condor em Guernica. No fundo, porém, gauleses e anglo-saxões temiam muito mais a foice e o martelo do que mesmo a suástica alemã.
02/mar.
Aonde andas, carnaval? Amargurado, sem alegria, sem lanças-perfume, sem carros alegóricos. Mesmo assim o amazonense teima em aparecer na Avenida Eduardo Ribeiro, a exibir os trapos de sua realidade e a querer apresentar seu protesto contra o regime de exceção que o massacra e debilita. Faixas alusivas desfilam ante o reforço ostensivo da polícia. Para mim, ainda é cedo demais para sabermos a que leva tamanha demora do Governo Militar em decidir pela democracia. O perigo está nisso: nenhuma tradição de luta popular e o poder em suas mãos.
* Fatos específicos do dia-a-dia, cujo teor deverá ser visto com o maior cuidado.
03/mar.
Leio os Ensaystas Peruanos, onde me detenho numa página vibrante sobre a missão do intelectual moderno. Desejos impossíveis de realizar se projetam nas viagens a bordo de algum transatlântico, como aquele que vi, pela manhã, nas paredes de uma agência de turismo.
05/mar.
Há meses que nada escrevo. Lembro-me de Oscar Wilde e dos belos dias que passei no Leblon, em 1951. Os quatro monges. A Caravana de Poetas. E o de-comer cuja falta era motivo de risos e piadas. ¨Aqui eu não sou feliz¨, como dizia o grande aspirante de Pasárgada. Mas os tentáculos que me prendem desconhecem os tormentos do artista que se estiola na aridez em que definho. Contudo, respiro e ardo nessa febre de chegar aos auges e ao termo da jornada. Que há-de ser o futuro, o agora.
06/07 mar.
Presido a 119ª. Mesa da Seção Eleitoral na Escola Técnica de Manaus. Inteiramente desencantado com essa farsa que se repete.
* Martírio na fila do Tribunal.
* De caminho à casa.
* Sono profundo.
10/mar.
Salvo do abandono o soneto que intitulo de ¨Ao nacituro do bairro do céu¨
* Não devo me esquecer do seguinte: Tude, Banco, editorial da página do CM em seu quarto ano de existência.
12/mar.
Com o Alberto Antonio no ¨São Marcos¨ Mais tarde, almoço na casa dele.
* Incidente com Estefano no ¨Las Vegas¨. Que noite desagradável.
13/marc.
Desperto recordando as ocorrências de ontem. Haveria algum motivo para tudo aquilo ou a bebida alcoólica é capaz de produzir choques inesperados entre pessoas que mal se conhecem?
15/mar.
Requeiro minhas férias relativas ao ano que passa. Mal agüento permanecer no recinto do trabalho no expediente normal. Doze anos assinando ponto, acho que chega. Fiz por onde chegar. Estou deslocado, preso, quase intolerável. Quando aparece o Murilo me dizendo que esta semana os nossos processos serão examinados pelo DASP. Uma boa notícia e eu invoco, em silêncio, a ajuda de todos os grandes avatares do universo para um êxito completo. Muitos sonhos e projetos dependem dessa intérmina burocracia. Vida melhor para meus pais, conforto para minha família, tempo para tudo, inclusive para os treinamentos que são exigidos no cargo de Inspetor do Trabalho.
Estive na casa do Amazonino.
16/mar.
A partir de amanhã, férias. As dificuldades financeiras aumentam. Às 13 horas saio da Repartição. Com o amigo Alberto, no São Marcos. Já em casa, na Joaquim Nabuco, me deparo com uma cena confrangedora: a casa totalmente molhada pelas águas da chuva e devido aos buracos nas telhas de barro, gastas e portanto vulneráveis às correrias dos gatos que vivem nos quintais. A cama de minha mãe quebrada, entre vários outros aspectos desoladores, requerem providências urgentíssimas, mas falta o melhor. Almoço ligeiramente, consigo deitar e dormir até às 16 horas.
N. do A.: Decorridos mais de 42 anos, custa-me crer que tenhamos passado tão baixo e vivido tão perigosamente naquele centro de Manaus densamente habitado por comerciantes bem sucedidos e pela classe média. Nossas tias da rua dos Andradas ajudavam no que podiam quanto à alimentação. O drama de meus pais e da casa onde moravam não apresentava nenhuma visibilidade ao público, escondido por uma fachada enganosa. Ao relembrar passagens de nossa vida que não querem ter acontecido, explica-me o poeta Dimas Macedo que algo nos mantém ¨dopados¨ ao longo de tais acontecimentos, por mais longos que sejam.
17/mar.
Dou início à leitura do 3º. Volume de ¨Ascensão e Queda do Terceiro Reich¨, de William L. Shirez. Mais tarde, falo com o Ulisses na porta de ¨O Jornal¨, quando sou convidado a procurá-lo amanhã para uma conversa sobre uma vaga de Redator na Empresa Archer Pinto & Cia..Ltda. A situação no Vietnam continua desesperadora, ameaça evoluir para uma terceira Guerra Mundial.
18/mar.
Acabo de ser admitido na função de Redator de ¨O Jornal¨, com salário fixado acima do mínimo regional. Examino de perto o novo terreno que devo explorar, enquanto as chuvas de março aumentam o nível dos igarapés.
19/mar.
Leitura após uma noite pouco tranqüila. Os problemas, eternos problemas. Jornal, Repartição, Jornal.
20/21/mar.
Aproveito uma pausa na Redação, e anoto os receios que me assaltam diante da eventualidade em prosseguir me desgastando entre dois expedientes, além das obrigações que tenho com o editorial da página do Clube da Madrugada, inclusive revisão das provas. Trabalhar diuturnamente sem a contrapartida em espécie, me cansa e me envelhece antes do inverno chegar.
N. do A.: Vem a seguir uma frase de que não me recordo o motivo, condenando os dias acima ao mais fechado esquecimento, dando a entender que alguma decepção ou tragédia estivessem nessa ordem cronológica.
23/24/mar.
Desde o dia 17 – exceção feita aos domingos – que trabalho como Redator de ¨O Jornal¨, situado na avenida Eduardo Ribeiro, entre as ruas 24 de Maio e Saldanha Marinho.Meu horário começa às 16:hs e vai até às 24 ou mais. Ao chegar em casa, ainda leio e anoto algumas ocorrências na agenda. O Ulisses é um bom Secretário de jornal, excelente colega, uma dessas pessoas ligadas à história da Praça 14 de Janeiro e seu mais genuíno folclore.
25/mar.
Como sempre, meu pai vem pegar dinheiro para o Mercado, o pão, o querosene da geladeira ou carvão destinado ao fogareiro de minha mãe, no qual ela assa a cafta, a berinjela, a cebola, o peixe etc. É pena que às vezes, próximo ao dia do pagamento, meus recursos se encolham, mas raramente tenho faltado com essa ajuda aos velhos. Finalmente, quase todos os dias eu almoço com eles.
26/mar.
Levante no Rio Grande do Sul.
* Aproxima-se a data de vencimento da letra em poder do Banco Comercial do Pará. * Escrevo uma prece em vez de redigir notícias ou copidescar matérias que me chegam pelas mãos do Chefe.
27/28/mar.
Amanheci filósofo: A angústia humana é uma resposta da alma aos pedaços que o mundo lhe tira, a cada momento. -Uma ¨vida completa¨(Cecília Meireles, para rimar com poeta), sugere ausência de ¨dor¨, imunidade aos incríveis predadores da energia vital, como sejam os componentes da angústia. A incompletude de que tanto se fala, depende, assim, de uma escolha de fé ou de caminho. A poesia, em Cecília Meireles, teria sido este caminho. Portanto, o legado (a obra, o feito, o gesto libertário, a canção e a liberdade) completa a existência. - Sabê-lo é o que, sem tocá-lo afunda, enquanto se cava.
* Meu Ex-Libris: duas lanças cruzadas (brasão) e a legenda: ¨Ractio Virtus Est¨ Boas influências de um passado feito de glórias, nos transmite o poeta Luiz Bacellar.
* Palmas na varanda. É o Maciel acompanhado de um amigo seu. Encomendo-lhe o desenho do brasão, conforme o Ex-Libris rascunhado pelo Bacellar. Razão é Força.
* Com Amazonino e Assis num bar da Praça São Sebastião.
30/mar.
Quase fim de março e os ventos de Brasília não sopram como estávamos esperando. Amanhã os Poderes da Nação comemoram o primeiro aniversário do Ato Institucional e seus resultados. A Revolução ou Golpe de Estado tem dado ênfase aos setores de Economia e Finanças, que nada apresentavam de positivo. Justificam-se os festejos cívicos em nome da subversão e da roubalheira dos políticos, mas ficam proibidas manifestações sobre os direitos cassados, presos ideológicos, exílio e desaparecimento de pessoas ligadas ao movimento sindical.
31/mar.
Leio ¨O Jornal¨, 16 páginas. Palpita-me a idéia de que a opinião pública está sendo levada para um beco-sem-saída. Os novos cérebros da Nação, estribados no positivismo comtista, observam, de longe, como podem ser adequados ao momento político a desorientação geral e o caos diante do amanhã. Não tendo em que se apegar dada a falta de tradição armada, cultural ou política, o povo se rende ao aparato militar, acompanha a marcha, também, dos confusos acontecimentos que se sucedem; teme a ditadura que, aliás, já se instala confortàvelmente em todos os estados brasileiros.
* O Governador Arthur Ferreira Reis convida o Clube da Madrugada para um jantar no terraço do Palácio Rodoviário, sede do Governo. O encontro ficou marcado para o próximo sábado. A aceitação do convite foi votada e aprovada por Assembléia Geral, tendo falado o clubista Jefferson Peres, entre vários outros, dando-se relevo, sobretudo, à personalidade do grande intelectual e historiador que é o Sr. Arthur Reis, agora investido na função de primeiro mandatário.
N. do A.: O Governo de Arthur Reis, o primeiro do golpe no Amazonas, andou lavando as mãos quanto aos chamados subversivos, mas foi bastante severo com os corruptos, Servidores Públicos e ex-Secretários de administrações anteriores. Todavia, o ponto alto de seu Governo esteve a serviço da cultura, com a publicação de quase duas centenas de obras de pesquisa, ficção, história, folclore etc. Mandava seu motorista parar o veículo oficial em qualquer rua ou avenida de Manaus, somente para abordar e cobrar de jovens escritores originais de sua autoria para que fossem editados nas Coleções do Governo. Eu fui um destes jovens, sem tempo disponível, contudo, para dar conta de originais devidamente estilizados e prontos para entrar no prelo.
01/abril
Estive no Banco onde falei com o Sr. Bornelli solicitando-lhe um empréstimo de 250.000,00. Preenchi uma ficha para novas sindicâncias nos cadastros dos avalistas. Segunda-feira, a resposta. Com esse dinheiro eu pago o Banco Comercial do Pará. - Fui à DRT. Ambiente frígido, artificial, como se algo indefinível no ar denunciasse a presença de sentimentos negativos, talvez, quem sabe, porque boas notícias corriam pelos bastidores sobre os nossos processos de readaptação. - Finalmente, o ordenado do jornal: 50.000,00 por mês. Amanhã vou à gerência e apresento ali o meu primeiro ¨vale¨, raspando a segunda metade de março. -Uma legenda do velho Carlitos brinca nos reflexos da memória: amanhã os pássaros cantarão de novo ( ¨Luzes da Cidade¨).
02/abril
Muitas ocorrências deixam de ser anotadas aqui, por não tratar-se de um diário na verdadeira acepção do termo, embora a semelhança. Por exemplo, minha mãe. Meu filho Jr., também necessitado de ajuda, já vai completar nove anos de idade. Eliana, precisando estudar em melhores colégios. Assuntos de âmbito doméstico, porém ressoantes na vida e na arte.- Amanhã, às 20 hs., o jantar com Sua Excelência o Governador do Estado do Amazonas, Professor Arthur César Ferreira Reis.
03/04/abril
Fiquei deveras impressionado com o Governador Arthur Reis. Homem simples, conversador emérito. Durante o jantar americano oferecido ao Clube da Madrugada, o próprio Governador deixou-nos à vontade, estabelecendo-se um diálogo cujos resultados finais deixaram a todos estarrecidos. O Clube não tem sede? Pois a sede do Olímpico Clube fica sendo dele. A Cultura Brasileira será o tema de um simpósio, patrocinado pelo Estado, com passagens e hotéis pagos aos convidados de fora. Livros inéditos serão levados à fôrma, amplamente distribuídos. Se a capacidade da Imprensa Oficial não der conta do serviço, editoras do Sul do País serão contratadas pra isso. E as portas da sede do Governo estarão sempre abertas a todos os intelectuais, poetas, artistas e escritores do Amazonas enquanto eu for Chefe do Estado – concluiu o mestre. Palavras, só palavras, não: verdades, sim, tanto mais que todo o prometido manteve-se firme, o Governador a esperar pelas nossas visitas, livros, aceitação das propostas, e nada, enfim, o Clube da madrugada aceitou do Governo. De nenhum Governo.
05/abril
O trabalho de demolição da Cidade Flutuante atinge em cheio o Igarapé da Bica, à cuja margem onde começa a rua Izabel plantamos nossa casinha. Que recebera o número 16, a primeira de número par, estando escorada no muro da ex-Fábrica de pregos da firma J. G. Araújo & Cia. Ltda. Conta-me Izabel a maneira brutal como os funcionários da Capitania dos Portos procederam ao despejarem de sua própria casa o cidadão Alquinda Fortes, irmão do Dr. Tabira Fortes, Procurador do Estado do Amazonas. O Alquinda sempre gostou de morar em flutuante. A continuação dessa ¨limpeza¨, como ficou denominada pelos carrascos do povo, tem por objetivo oferecer um outro cartão postal da cidade de Manaus, enquanto o problema dos favelados do rio, ao contrário de ser resolvido, apenas muda de lugar. Segundo a imprensa, todas essas famílias prejudicadas pelo Governo receberão casas lá pelas bandas de Santa Quitéria.
06/abril
O dia começa com meu pai em nossa casa. Em seguida aparece minha mãe, numa de suas grandes crises nervosas. Que mais fazer depois de ajudá-los no que posso e no que tenho nos bolsos? O jeito foi ganhar a rua. No Moisés, sorvo algumas doses de Iauca. Indo pela Ribeiro Junior, me deparo com o Amazonino. Depósito da Brahma. Apartamento do amigo, a caminho do qual recebo um profundo golpe de caco de garrafa no pé. SAMDU. Quatro pontos. Um dia realmente aziago.- Retirei (hoje) um novo empréstimo no Banco da Lavoura. 250.000.00. Minha Via Crucis já vai bem mais longe do que eu pensava.
07/08/abril
Dormi até bem tarde. O ferimento no pé cicatriza, com rapidez. Na sala, o Maciel executa um desenho para a Campanha de Alfabetização de Adultos.
* Deparo-me com o João Batista na redação de ¨O Jornal¨, e, pelo aspecto, me traz boas-novas. Com efeito, diz-me ele que os nossos processos já vão a plenário na semana que vem, segunda-feira. Dali seguirão em forma de Decreto à Presidência da República. Pelo visto, a ¨operação base¨ poderá ser iniciada em maio deste ano. Problemas urgentes deverão merecer prioridade, abrindo-me as portas do mundo. Deus é louvado em cada passo desta longa e angustiante espera pelos nossos direitos. São três anos!
09/10/11/abril
Financeiramente arrasado.
* Com minha filha Eliana na matinal do Cine Guarany.
* Em sonho eu tentava explicar ao Pe. Nonato que, lá um dia, quase todos os nossos contemporâneos terão ido passear; com eles a perfídia e os escassos momentos de grandeza humana.
* Deixo a redação do jornal e tomo o rumo da porta. A noite está deserta. Alguns cães ainda esperam encontrar restos de comida para uma ceia ao luar. Guiam-se pelo instinto, farejam, perseguem ternamente a sombra dos boêmios. A caminho de casa eu sinto a presença de um que me segue, como se estivesse certo de que nós precisamos um do outro. Mas sabe que estou chegando, retorna.
14/abril
Paguei ao Banco Comercial do Pará. Crédito aberto. Levo a Eliana ao SESC-SENAC. Assistimos a um filme francês: ¨O rebanho de lobos¨. Entro de serviço no jornal.
15/abril
A luta no Vietnam. Sinais artificiosos do CTA-102, captados pelas nações que se dizem amantes da paz. A Semana Santa, o exagero, a miséria. Afirmam os jornais que o mundo ficará pasmo quando tiver contato com a super-civilização de um planeta que existe em nossa galáxia, cujos acenos periódicos alarmam a população da Europa.
* Como se costuma dizer, há leituras em todos os níveis. Mas, creio, não em todas as posições, a menos que raramente. Daí, pois, adiar-se, vezes para sempre, a leitura de certos livros que não ficam a depender, unicamente, da nossa experiência de vida, senão também da leitura de outros textos que lhes tenham servido de base. Em Jung, no entanto, desde que se tenha alcançado os 49 anos de idade, o próprio texto de suas memórias ou confissões é que toma a iniciativa de abrir-se ao leitor, revelando uma série de conteúdos que, diga-se de passagem, já estavam intimamente ligados ao vago mundo de suas reflexões. No meu caso particular, esta confissão do mestre me toca a sensibilidade:¨Quanto mais se acentua a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumenta meu sentimento de parentesco com as coisas.¨
16/abril
Tristezas e contrariedades neste Horto fechado para visitas. Dentro dele apenas eu e o número dos anos que vivi. Me ocorrem os versos de uma antologia de poetas ingleses: ¨Morrem moços os amados dos deuses¨. Infelizmente ou não, eu já me distancio da hipótese de ter sido amado pelos deuses. Ou então as labaredas que tinham para mim não foram suficientes para devorar-me como estaria previsto.
17/18/abril
Deixo o prédio do jornal a zero hora, e saem comigo o Ulisses Azevedo e Aluísio Sampaio. Após muita conversa debaixo da marquise da Loja Singer, decidimos tomar o rumo do ¨Las Vegas¨, isto é, apenas eu e Aluísio, já que o Ulisses queria dormir. A chuva torna-se mais forte, insistente, dominadora. Ficamos no ¨Las Vegas¨até às 04hs da manhã.- O domingo irisado nas águas do Rio Negro me faz pensar no tempo perdido, sem o registro de um só verso num caderno à parte, dos incontáveis que tive. Depois do almoço, uma brisa errante do Igarapé me traz de volta o Carlos Drummond de Andrade que andava comigo:¨ Tarde dominga tarde, pacificada como os atos definitivos¨. Adaucto Rocha gostava de repetir : ¨Um dia escreverei meus versos calmos¨. Assim o faremos.
19/abril
Reassumo na DRT-Am. Izabel ameaçada de transferência para o município de Itacoatiara. Esse Armando do Ministério da Agricultura, onde ela trabalha, procura encrenca. Nada a fazer, mas conto com a boa vontade do Ulisses que promete interferir junto ao Dr. Edson Rosas. - Volto a ter pesadelos. Agora são portas fechadas, tribunais, acúleos, torniquetes , vozes, pavor. Há muito que eles invadem minhas noites, destroem minhas colheitas, assassinam meus anjos.
20/abril
Já não tenho mais dúvidas: meus nervos estão em frangalhos. E a causa maior disso – minha mãe – parece longe da cura ou do cansaço. Pendulo entre o amor e o ódio, o fracasso e a vitória, a grandeza espiritual e o desejo de morrer para a bulha cotidiana, o mercado das vaidades, o teatro do egoísmo. Escrever um longo poema, desenhar um romance como faz o Rui Brasil, tentar uma novela, são planos antigos.- É hora de partir pelas ruas calmas da cidade, voltar ao batente.
* Dias sombrios penetram em nossos lares, trucidam as nossas esperanças numa democracia que começa com a legenda dos Inconfidentes: LIBERTAS QUA SERA TAMEN. Segundo LPS, estamos num País invadido pelas suas próprias Forças Armadas. Em todas as repartições públicas ali estão eles, punindo os civis em busca de promoções. Na minha, fizeram-me perder o direito à incorporação da Função Gratificada dois meses antes que este fosse adquirido. Teriam usado um colega meu para o ato, eventualmente no cargo de Delegado do Trabalho.
21/abril
Sábado os nossos processos entrarão em pauta de julgamento. Operação-base à vista, a partir do Diário Oficial da União. Mantenho-me em forma, sem dar um passo que venha em prejuízo (ou em mais prejuízo) de minha família. Amanhã estarei confeccionando uma lista da OB, primeira etapa, que trata da preparação disciplinar.
23/abril
O Caderno Madrugada de domingo próximo vai ser um sucesso. Na verdade, esse Aluisio é um gênio do movimento editorial. Sua fibra de lutador vem de Esparta, passa pelo Desfiladeiro das Termópilas, enfrenta Roma em Cartago, para vir encontrar-se comigo na Biblioteca Pública de Manaus, onde nos conhecemos.- Dois poemas em gestação. - Amanhecerei ou não Inspetor do Trabalho? Pelo sim, na segunda-feira daremos contorno mais nítido à Operação base 2. As coisas parecem estar sabendo acontecer. Segundo o Saul Benchimol, as coisas sabem acontecer.
24/25/abril
Um sábado repleto. Domingo agradável, bom para vilegiaturas. Mas eu devo permanecer em casa, repousando. Quanto às novas, a semana entrante estará cheia delas. Pela Rádio do Brasil já ouvi que 74 fora o número de readaptações do Ministério do Trabalho. Cinco processos descem transformados em diligência.
26/abril
Apesar de não ser um dia favorável, reconquisto hoje uma função gratificada perdida há oito meses. Não precisamente a que eu vinha exercendo à época, mas algo similar. Estou que os ¨feitores¨ de minha ¨caveira¨ atuam numa faixa distante do meu local de trabalho, sub-homens desprezíveis, pejorativos até do animalejo.- Embora o ¨mistério¨ acerca de nossos processos, a OB lateja em minhas raízes: ou seja, tudo o que penso (e porque penso) existe. Logo, meu empenho em obter uma coisa que esotericamente já era minha, tem sentido. Eu vou em sua direção e de quantos fenômenos se movam tomados por uma energia que se destaca de todas as demais. A isto o filósofo chamara de ¨vontade de poder¨.
27/abril
O telefone soa no Gabinete do Delegado do Trabalho, e a voz de nossa colega Dulcicléa nos passa o exigênio de que tanto necessitamos: fomos aprovados pelos órgãos competentes. Resta-nos agora esperar mais um pouco pela oficialização dos atos presidenciais. Reina alegria no íntimo de todos os colegas interessados no assunto.
30/abril
Recebi ¨Senda Bruta¨, do paraense Idelfonso Guimarães, bom contista. Em frente ao jornal me deparo com o Dr. Álvaro Maia. Estou em falta com ele. Preciso reler o ¨Buzina dos Paranás¨. Amanhã o Suplemento Madrugada mostra a cara trazendo uma reportagem e uma crônica de minha oficina. À noite, com Aluísio e outros companheiros no ¨Las Vegas¨. Até os primeiros clarões do sol de maio.
01/02/maio
Lançamento de ¨Três episódios do rio¨, do poeta Elson Farias. Falam no ato o presidente do Clube da Madrugada e o Governador Arthur Reis. Pela terceira vez este me pede os originais do livro ¨Clube da Madrugada: 10 anos de existência¨, para ser publicado nas edições Governo do Estado.- A fazer analogias cabalísticas, os ciclos de provação terminam este ano.
03/maio
Eu não tenho como sintonizar a ¨Hora do Brasil¨, conforme recomendou o Murilo. Ela deverá anunciar os decretos de readaptação assinados pelo Presidente Humberto Castelo Branco, isso a qualquer momento. Estive ontem na casa do comerciante Arnulfo Afonso, amigo do Aluísio, convidados que fomos para a devoração de uma suculenta tartarugada. Com a palavra, tive que agradecer ao anfitrião em nome dos comensais. - Na DRT, novas acomodações das carteiras para o funcionamento das Turmas recentemente designadas. Os dias se repetem numa escalada irritante. Entrevista com o Afrânio Castro. Manhã buliçosa. À noite enfrento pilhas de matérias pendentes de revisão.
06/maio
Prossigo na leitura do Terceiro Reich. Assalta-me uma vaga certeza de que já estamos em plena Terceira Guerra Mundial. E o pior de tudo é que os métodos dos nazistas passaram às normas políticas das chamadas democracias do Ocidente.- O pau canta em São Domingos. Tropas brasileiras de prontidão para o embarque, enquanto os esforços maiores dos ianques ficam concentrados no Vietnam do Norte.
07/maio
Na opinião de um crítico português, Fernando Pessoa representou bem uma corrente naturalista e simbolista de transição ao modernismo de hoje. O curioso disso é que eu, sem ser português nem crítico de literatura, falei sobre esse fato numa de minhas palestras informais sob a copa do mulateiro, na praça do Ginásio. Pura intuição.
Acordo e tomo o rumo do jornal. Horas de muito abatimento íntimo.
08/09/maio
Percebo que meu velho (e bom) pai começa a perder a lucidez. Agora que espero colher os frutos de minha luta da vida inteira, e dividi-los com eles (meus pais). Adentro, pois, essa antiga morada da avenida Joaquim Nabuco a sentir um aperto cada vez mais forte nas vacilantes coronárias: a cena rústica do convívio doméstico deteriora com mesas e cadeiras desconjuntadas, ambiente escuro, paredes úmidas, quintal tomado pelo mato.
N. do A.: Neste mesmo ano eles foram transferidos para a casa de meu irmão, à rua J. G. Araújo, 40, no bairro de Santo Antonio, ao qual fiz o repasse da indenização paga pelo Dr. Paulo Jacob, proprietário do imóvel desocupado, tendo em vista a necessidade de construção de um anexo para seu abrigo. Amiudei minhas visitas ao bairro e ao seu novo lar, até que, em 1973, iniciando a edificação de minha última casa em Manaus, passamos a residir perto deles, mais precisamente na mesma rua J. G. Araújo, número 94.
* Comunico ao Ulisses Paes de Azevedo minha decisão de renunciar ao cargo de Redator da empresa Archer Pinto. A seu pedido, contudo, permaneço ainda por mais duas semanas.
10/maio
Nada há no mundo que não se possa complicar ou simplificar. Amanhã eu emendo as fraturas da complicação. A natureza é o que é: os olhos de um tigre só podem reproduzir o tamanho de seu estômago. Para quebra dessa harmonia entre o antropóide e a solidão das cavernas, criaram-se as mãos. Por si mesmas iluminadas. Tão cerebrinas, tão contraditórias. Afáveis, armadas de osso, facas, rosas.
* Waldomiro:aval. Se o empréstimo der certo, eu me livro do BCMG até segunda ordem. À tarde compareço na ferragem do Sanches. Trata-se de conseguir uma Carteira Profissional para seu irmão que teve uma perna amputada.- Max Martins novamente em Manaus. Uma festa para todos nós, seus amigos do Amazonas.
12/maio
Continuamos à escuta das vozes do Planalto, na Hora do Brasil. Leio um poema de Thiago de Mello, que chega aos 38 anos de idade.
15/16/maio
Exclusivamente familiar. Minha filha Eliana com febre. Examino o jornal e verifico que o suplemento está bom. Centenas de leitores devem achar o mesmo ao gesto que me leva a dobrar esse pão que nos consola, anima e ressuscita. Sou designado Diretor da página literária do CM. A responsabilidade fica maior, mas eu tenho o editorial da mesma para ir dando o compasso da dança, orientar os leitores sobre as transformações ocorridas, sempre por via de acordos ou cisões entre pessoas ou grupos da mesma falange.
17/maio
D. Lídia Caldas, depois de D. Alcinda Doca e do professor Perneta, foi minha última educadora em Sena Madureira. No quintal da escola, nós, todos os alunos, tiramos uma fotografia no ¨Dia da Árvore¨, ainda hoje conservada por ela nas folhas de um álbum. Por acaso me encontro com minha boa mestra na avenida Eduardo Ribeiro, nem sei recordar quantos anos após esse dia memorável. Ao chegar na redação do jornal, registro numa tira de papel: ¨Os tempos mudaram, D. Lídia. Do meio agreste onde vivemos parte de nossa vida, eis que só resta esse perfume que nos chega entre o lamento das carroças puxadas a bois e os pés de eucalipto segurando os barrancos. O ABC que nos ensinavas entre as manhãs agitadas do porto e as tardes fagueiras do poeta Casimiro de Abreu, converge agora para ti como um de nossos cadernos cheios de desenhos alusivos à data de teu aniversário. Na foto envelhecida, ali estou eu de calças curtas e cabelos revoltos, observando o plantio de um belo exemplar da flora acreana. Retorno ao pequeno universo da infância, ao bosque velado entre murmúrios e suaves crepitações adormecidas. Quantas recordações.¨
22/23/maio
Posso dizer como a Betina da coluna social: Max Martins de passagem por Manaus, abraçando os companheiros do Clube da Madrugada.- Um domingo igual aos outros. Eliana ainda com febre. Permaneço em casa, lendo e cuidando da menina. Ao refletir sobre a província, vêem-me aquelas palavras do Ernesto Pinho: é aqui que devemos ficar até um dia sermos descobertos pelo mundo.
24/maio
A imensa tortura da espera. Nada mais chato do que esperar. Falava um seringalista do Alto Purus que a justiça brasileira foi feita para quem vive mil anos. Quem sabe por isso trocaram no Acre a lei do Direito pela lei do rifle 44. Enquanto isso, em nosso caso, a paciência desgasta o paciente, ou, quando se alcança o objeto de tanta expectativa, a vantagem virou farinha e a farinha, ventosidade.
25/maio
¨Ascensão e queda do terceiro Reich¨, página 206: ¨O destino – observou Speidel a propósito do vacilante general Fromm – não poupa os homens cujas convicções não se harmonizam com a vontade de pô-las em execução¨.
26/maio
Terminei ¨O Gato¨, poema . Com mais alguns do mesmo quilate, reúno uma plaquete e faço que ela chegue à ¨A Porta de Livraria¨, de Antonio Olinto, antes do encerramento do concurso. Já lhe enviei o ¨chão sem mácula¨, ainda sem resposta. Mas a falta de sorte inclui também o silêncio do Getúlio Alho, a quem remeti uma carta falando do projeto de uma antologia de contos.- Mais uma explosão do padre à porta de um jornal da avenida Eduardo Ribeiro. Agora ele envolve meu nome não sei em que assunto, nem quero saber. O mal se destrói por si mesmo.
27/28/maio
No ritmo que vai, sem más notícias, evoé ao mês de junho.
* Eliana continua doente, e os 39 graus e meio de febre não baixam. Já estiveram com ela os médicos Luiz Monteiro e Djalma Batista, os exames acusaram infecção intestinal. Remédios é que não faltam, nem micinas etc.- Na Repartição me vem uma frase genial de André Gide acerca dos ¨sutis¨ e dos ¨crustáceos¨ aplicada, aqui, aos tantos que me rodeiam. Somente dos últimos, é claro, eu tenho recebido as maiores afrontas e humilhações.
31/maio
Leio nos jornais o falecimento do veterano professor Fueth Mourão e, logo após, o do ex-Prefeito de Manaus Raimundo Chaves Ribeiro. Ambos eram meus amigos. Ambos me lançavam gestos de afeição e reconhecimento ao cruzarmos na via pública. Estou a revê-los de memória, cada um no seu modo particular de comportar-se entre seus contemporâneos, a voz grave e acentuada do professor e o modo afável de cumprimentar os circunstantes do ex-Prefeito Chaves Ribeiro.
02/junho
Nossa Eliana continua doente. Em paralelo correm as dificuldades em pagar as prestações da geladeira, compromisso bancário (250.000!) avançando para a data de vencimento, Função Gratificada a depender dos poderes centrais, isto é, sua ordem de pagamento, além de uma série de transtornos irremediáveis. Tenho me valido, em parte considerável, de algumas vantagens proporcionadas pelo jornal, como transporte e vales, sem o que a situação dos últimos dias seria um desastre.
03/junho
Eliana: oito dias de febre. Três faltas ao serviço a fim de concentrar meus esforços na obtenção de recursos médicos e medicamentosos. Em ambos os casos temos sentido, eu e Izabel, o amargor indefinivel da derrota. No início o Dr. Luiz Monteiro diagnosticou gripe. Com o resultado dos exames feitos pelo Dr. Djalma Batista, o quadro voltou-se para infecção nos intestinos. Viragem também no receituário, com injeções e outras drogas caríssimas.
04/junho
Se nossa criança escapa dessa, tudo quanto está sendo feito valerá a pena. E mais que se fizesse. Sua resistência orgânica assusta a gente, apesar de alimentar-se apenas de líquidos pouco substanciais. Os antibióticos: Ambra-Sinto, Sigmamicina Gamaglobulina, uma promiscuidade de fármacos, todos com o mesmo princípio ativo.
05/06/junho
Um Anjo da Guarda! Chama-se ele Antenor Barbosa. Neste sábado eu o encontro por acaso na portaria do SAMDU, conversando com a enfermeira de serviço. Trago-o para casa, onde submete Eliana a um exame rigoroso. Atencioso, com detalhes, ele vai nos passando seu diagnóstico e a inconveniência de continuarmos a ministrar, por via oral, uma infinidade de antibióticos, que ele aponta sobre a mesinha do quarto. Ao final, passa-lhe uma receita e se põe à nossa disposição, amanhã, para um exame dos resultados.
07/junho
Eliana começa a melhorar. A febre passou como por milagre. Na próxima quinta-feira eu publico uma nota de gratidão ao médico Antenor Barbosa, do SAMDU, única maneira de agradecer-lhe pelos serviços prestados.- Quanto ao resto, babau! Compromissos, dívidas, trabalho fora do trabalho, sem falar aqui e agora em meus pais, que dependem exclusivamente de mim e se mantêm num estado de semi-penúria. Que farsa a vida!
09/junho
À uma hora da tarde, no ¨São Marcos¨. Sentados comigo o Aluísio e o Ernesto. Trago-lhes notícias e jornais de Belém do Pará, remetidos pelo Guimarães de Paula, o nosso Guima. ¨A Província do Parᨠestampa, em reprodução, meu soneto ¨Ao recém-nascido do bairro do céu¨. Ernesto se emociona com dois versos do mesmo e condena algumas metáforas de mau gosto. Aceito a crítica do amigo, prometo substituí-las por outras.
10/junho
Encaminho por escrito o meu pedido de demissão da empresa jornalística Archer Pinto & Cia. Ltda. Indico o Arthur Engrácio que fica em minha vaga. Me lanço, pois, ao centro da mãe de todas as batalhas, no dizer dos valentes Filhos de Maomé.
11/junho
A página literária do Clube da Madrugada não sairá no próximo domingo. Volta a faltar papel. - Meu pai na sala de visitas, esperando dinheiro para as despesas. Dou-lhe o que tenho, barbeio-me e vou à Uzina Rian solucionar o caso de uma operária. No retorno ingresso nas dependências do ¨São Marcos¨; ali estavam o Alberto Antonio e Fernando Collier. Chove. Tomo um conhaque e os convido para casa, onde esvaziamos juntos um garrafão de ¨Quinta do Pinhal¨. O almoço foi jaraqui no escabeche, preparado pela Izabel e D. Constância, tudo em comemoração ao restabelecimento da Eliana, enfim salva e saudável graças a Deus e a intervenção do Dr. Antenor Barbosa. À noite, cinema.
Mirante: o crepúsculo inunda este braço de rio chamado de Igarapé da Bica. Eu me debruço no parapeito da varandinha a olhar as catraias que levam e trazem passageiros do bairro dos Educandos para a escadaria da rua dos Andradas, e vice-versa. O cenário clama por um verso que seja, capaz de abrigar tanta serenidade. Mas esta eu retenho e conservo dentro de mim.
14/junho
Amanheci com uma espécie de aviso de que o Presidente Castelo Branco devolvera os processos de readaptação ao DASP, sem qualquer justificativa. Uma carta do Planalto assinada pelo Murilo recomenda que a turma se mantenha otimista, não deixe fanar-se a esperança no próximo mês de julho, e acrescenta que isso faz parte da política econômica do novo Governo.- A espartana Faride, minha mãe, cuja fúria tem desafiado as injeções que D. Haydé lhe vem aplicando no sentido de acalmá-la, tira-me a paz de espírito. Temo, portanto, que mesmo depois que tudo for resolvido, a situação dela fique no que está. As idéias traumáticas podem ter sua causa na morte súbita do pai, vitimado no Líbano pela gripe espanhola. Daí seu zelo pelos filhos e a mania de perseguição.
15/junho
O gesto amargo do Presidente da República, mandando nossos processos de volta ao setor de origem, no caso, o DASP, altera consideravelmente os planos que tenho (operações-base) ainda para o segundo semestre de 1965. Os compromissos inadiáveis ficam ameaçados. Mais lenha na fogueira do desespero, mais desespero no lenho da crucificação.
16/junho
Fomos ao Grande Circo Mexicano. A meu ver, circo deve ser primitivo, original, sem a penosa mobilização de animais. Neste foi bom o desempenho dos trapezistas. Três palhaços coadjuvantes que entre um número e outro souberam diversificar as maneiras de rir, aumentando os aplausos. No mais, repetição e pastiche.
N. do A.- Algumas anotações datadas insistem na concretização de nossos sonhos como Servidores do Estado, lamentando a demora de Brasília e do Presidente em concluir por menos burocracia e mais ética no despacho dos processos em que somos interessados; e daí, também, a queixa nas dificuldades financeiras. Tenho saltado essas datas e, ante os assuntos repetidos e lamuriosos, vou saltar ainda mais até o final da agenda. Um exemplo de saturação vai na quadrinha abaixo, de 18/junho:
Problemas, problemas,
problemas sacaneadores,
em vez de belos poemas
dão-me apenas dissabores.
19/20/junho
Continuação de leitura do ¨terceiro Reich¨: o levante do gueto de Varsóvia. Pela manhã fui à Praça Gonçalves Dias, bati um papo com a turma do Clube. A seguir uma volta pelos bairros no jipe do Evandro Carreira. Tomamos um litro de Iauca sentados à mesa de um bar no ¨clima frio¨. Às 12:hs regresso ao lar, trazido no jipe com o Amazonino ao volante. Calor intenso. Rio parado, catraias indo e vindo entre as margens do igarapé. Agora um pouco de sesta.
21/junho
A Lei federal que dá amparo e direito líquido e certo à demanda de quinze mil servidores federais, leva o número 3870 e é de 1960. A política econômica está nas mãos do Dr. Roberto Campos.- Carta do Antísthenes sobre um emprego no governo do historiador Arthur Reis. Espero êxito do amigo.- Recomeço a pôr alguma ordem na casa dos velhos: mudei o pavio da geladeira a querosene, fiz limpeza, paguei uma parte das dívidas contraídas. Reformas nos móveis e outros benefícios introduzidos de tempo em tempos, são iniciativas inócuas ao se oporem a obstáculos de ordem espiritual que atuam no ambiente familiar.- Consegui um empréstimo no BCP.
24/junho
Nossas farras homéricas cedem à reflexão do momento. Me volto às leituras com relativa disposição. Seis meses se passaram desde que me propus a respigar este banalíssimo cotidiano, pedaços de vida sem cor, nos quais, entretanto, reluz a vontade inquebrantável. Basta-me hoje o sorriso de Eliana na simplicidade de nossa varanda, esperando pelo pai.
26/27/junho
Re-assisto, no Cine Guarany, ao ¨Luzes da Ribalta¨, de Charles Chaplin, o Carlitos, sobre quem, depois de ver o ¨Luzes da Cidade¨, escrevi uma crônica que agora descubro entre outros recortes dos anos 50. Ela foi publicada em ¨O Centro¨, do Colégio Estadual do Amazonas, na gestão de Agostinho Balbi, irmão do Agnello. Hoje ela me parece mais um mini-conto.
28/junho
Agrava-se o quadro patológico de minha mãe. Como se sabe, o vizinho parede-com-parede adquiriu por compra a casa habitada pelos velhos desde 1947, e onde nós, seus filhos, passamos grande parte de nossa existência. O proprietário Dr. George Jacob é o atual Chefe de Polícia do Estado do Amazonas. Amanhã vou ter com ele para acertar os ponteiros, ver como fica. Tal drama de nossa história comum, deve ser esquecido. Foi muito difícil, horrível mesmo.
30/junho
Feriado religioso. Em silêncio rumino as circunstâncias em que me acho frente à tarefa de ¨comandar¨ a internação de minha mãe, entre outras providências. Não confio o bastante na ¨Amplictil¨. Em 1962, quando também ela fora internada, removeu-se da lousa a suposição de que o problema logo estaria resolvido.
01/julho
Todo um aparato diante da casa de meus pais: ambulância, jeep do Chefe da Polícia. Haydé com a seringa pronta para a injeção, que não chega a fazer efeito. A desconfiança da ¨velha¨ foi mais forte que tudo. Ela resiste, vence pelo cansaço, adiando o plano de ser removida de sua casa para um outro dia. O estranho é que a própria casa, a desgastada estrutura do princípio do século ou antes, resiste com ela. Quanto a mim, nunca mais estarei presente a uma cena como essa de hoje, de resto inevitável por qualquer ângulo da história.
03/04/julho
Após cerca de dez anos, volto a abraçar meu grande amigo e poeta Thiago de Mello. A presença de Thiago no Clube da Madrugada revigora nosso ânimo de lutar pelos legítimos direitos assegurados na Constituição Brasileira, em nome da liberdade de pensamento. Aos 39 anos, com uma banda saliente dos cabelos grisalhos, rever o poeta dos ¨Estatutos do Homem¨ foi para todos os seus velhos companheiros, um verdadeiro toque de alvorada.
05/julho
Os Amigos de Dona Faride, como se intitulam, farão hoje uma nova tentativa no sentido de retirá-la do imóvel, este já oferecendo perigo de desabamento parcial. Por mim, continuo adiando a ação dos amigos.- Banco Comercial do Pará: êxito no empréstimo de 400.000,000 (acredito que o último de uma série de papagaios).- Almocei com o Thiago de Mello na residência de seu cunhado Nathanael Rodrigues, no bairro de Cachoeirinha. Cozinha regional completa e boa.
06/julho
Uma noite bem nossa de franca boemia, com Thiago de Mello, Moacir Andrade e Luiz Bacellar. Poesia e bate-papo livre, podendo repetir as doses. Metade da madrugada, uma surpresa: Thiago enfia um envelope em meu bolso, para ser aberto quando eu estivesse a sós ou em casa. Já chegando à rua de meus pesadelos, me lembro do invólucro e, com redobrada surpresa ou espanto, me deparo com notas que somam 20 mil cruzeiros. Longe de presumir o que fosse no instante de sua entrega, e sendo tarde para recusá-los, acabei por aceitar a generosa oferta do querido amigo. Alguém lhe teria falado das borrascas que atravesso.
07/julho
Almoço no Restaurante Siroco em homenagem ao pianista Arnaldo Rebelo, com a presença do famoso ¨Coral João Gomes Junior¨. Entre nós Blanca Bouças que cantou um trecho de seu repertório. Cleomar também marcou presença interpretando ¨Menina de olhos verdes¨, poema de nossa estréia com ¨Varanda de Pássaros¨, já gravado em compacto duplo pelo Coral do maestro Nivaldo Santiago. À noite, peixada na casa do Farias com Thiago presente. Memorável. Acabei pagando o empréstimo ao BLMG.
08/julho
Compus a letra ¨Nas águas do igarapé¨ para o Arnaldo Rebelo.
09/julho
Jantar na casa do Moacir Andrade, com Thiago, Elson (que regressa de Belém do Pará) e muitos outros da tribo. Amanhã a palestra do Arnaldo Rebello sobre Ernesto Nazareth, no Clube da Madrugada.
12/julho
Segue problemática a mudança de meus pais, estando ainda numa casa que não é nossa, dispensada do pagamento de aluguel, mas prestes a desabar sobre eles. Solidário, contudo, eu não os deixo, sempre a seu lado. Fico entre a cruz e a espada, entre a razão e o coração, entre as razões do sentimento e a realidade que oprime, arrasa com a gente.
13/julho
Montes, e a paz que há neles. Leio Fernando Pessoa. Se, depois de morrer, quiserem escrever minha biografia, não há nada mais simples, tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Estes versos me conduzem à cama, pacificado e bom. Eurekiso neles a verdade mais simples do mundo, o epitáfio de todos os homens, grandes e pequenos.
14/julho
Agora é a Sonifen, recomendada pelo Urbano, do Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, a injeção mais indicada para a transferência da nossa Faride. Minhas tias, porém, são contra a medida, dão cobertura à irmã e eu fico para trás a morrer de vergonha por ser o único da família a saber dos fatos, achando-me na contingência de negociar com as autoridades sobre o melhor caminho a seguir.
15/julho
Será amanhã a visita do Presidente Castelo Branco a Manaus, o que vem coincidir com mais dois eventos locais: a homenagem que vamos prestar ao Thiago de Mello na Chapada Sírio-Libanesa, e o aniversário de Eliana.
16/julho
Dia repleto, festivo, alegre. Na Chapada com Thiago, Alberto, libamos o ¨Quinta do Pinhal¨ Tarde igualmente feliz, com mergulhos na piscina e muito assunto poético debaixo do mocambo. Já em casa, Izabel organiza os parabéns a nossa querida filha, com bolos e refrigerantes. Oito anos de idade.
17/18
Com o Teatro Amazonas cheio, a cidade triunfou do marasmo vivendo o melhor de seus dias num clima de arte, ao despedir-se de seu pianista maior Arnaldo Rebello, de volta ao Rio de Janeiro. O ponto alto da noite esteve com a soprano Blanca Antony Bouças, acompanhada por Arnaldo ao piano. Uma breve letra de minha autoria, com música dele, foi cantada em coro no encerramento da programação, sob a batuta do velho maestro:
Saudades antecipadas,
saudades deste momento,
nas futuras madrugadas
que sejais meu pensamento.
21/julho
Izabel necessita operar-se da vista. Eu também de tratar os dentes.- Instala-se na sede do Luso o Curso Intensivo de Cultura Brasileira, orientado pelo nosso amigo do Pará, professor Benedicto Nunes. Antonio Olinto também virá do Rio. Faço minha inscrição.
24/25/julho
Prossegue o Curso Intensivo de Cultura Brasileira. Me encontro com o Roberto Jansen na avenida Eduardo Ribeiro, quando sou convidado por ele a tomar parte de uma tartarugada, no Xangay.
27/julho
Minha conferência no Curso Intensivo de Cultura Brasileira, dividir-se-á em três fases: a) A Nova Poesia do Amazonas; b) Reflexos do Movimento Concretista; e c) A Poesia como Tarefa Revolucionária.
30/julho
Recebi hoje os 271.592 referentes a dois meses e 24 dias de Função Gratificada (Turma do Interior). Para garantir a gradativa liquidação de minhas dívidas, confiei à guarda do Murilo a importância de 160.000, isto é, 40% dos 400.000,000 que devo ao BCP. Débitos mais urgentes foram saldados.
31/01/agosto
De Nauro Machado, como sempre desde 1958, recebo seus últimos dois livros publicados: ¨Segunda Comunhão¨e ¨Ouro Noturno¨. Grande poeta do Maranhão. De Alcides Pinto recebo o ¨Ciclo Único¨, poemas em prosa.
03/agosto
Muito já se falou a respeito do trabalho artístico, inclusive das qualidades que distinguem o criador do inventor. Essas leituras fazem falta entre os nossos jovens poetas.
03/agosto
Telefonema do Afrânio Castro me informando que hoje ele rasga a folhinha de seu natalício. Convida-me, pois, para almoçar em sua companhia.- No jornal ¨A Crítica¨,a resenha da Assembléia Legislativa divulga o pronunciamento do Deputado João Valério sobre o Curso Intensivo de Cultura Brasileira, destacando, como pontos altos, as conferências de Thiago de Mello, Benedicto Nunes, Jorge Tufic e Arthur César Ferreira Reis.
04/agosto
Delenda Caixa Econômica.- Notícias de Brasília dão conta de mais 1302 readaptações de funcionários do MA assinadas pelo Presidente da República. Os sinais favoráveis avançam, embora devagar.
07/08/agosto
Quanto a minha mãe, pobre mulher: será preferível agir com a família, antes da solução oficial do confinamento psiquiátrico. A solução do chamado Hospício não vai ser propriamente definitiva para o caso, mas um tipo de asilo provisório. Em março de 1962, quando fomos obrigados a interná-la, chorei lágrimas de dor e arrependimento. Não pode haver palavras que expliquem o dilema que se repete.
09/agosto
O que nos parecia impossível, acontece: em meio aos protestos de dezenas de populares, minha mãe é ¨arrastada¨ por 14 guardas civis para dentro de um jeep e conduzida ao Hospital Colônia Eduardo Ribeiro. Neste exato conciliábulo das horas abandonadas por Deus, descri de tudo. Foram duas brigas de punho e uma de cacete que tive de enfrentar nas ruas e logradouros, temendo estar morto como nunca antes estivera.
N. do A.: As seqüelas de tais confrontos viriam mais tarde, umas no nariz, outras nas costelas.
* Segundo o Dr. Rayol dos Santos, médico da Colônia, D. Faride não apresenta um quadro patológico compatível com sua internação, considerando-a portadora de esclerose cerebral. A paciente foi liberada três dias depois.
11/agosto
Fico deveras assustado quando me acordam para atender ao Dr. George Jacob, o qual me diz que D. Faride voltara e se mantém inabalável diante de sua ex-residência, querendo-a de volta. Mas Deus é grandioso. Acabo por convencer minha mãe de que sua nova casa agora será junto a seus filhos, no bairro de Santo Antonio. E ela, suavemente, acabou voltando comigo para seu novo domicílio. Foram três meses de inferno rubro, e o Diabo, espantado, bem longe dele.
12/agosto
Com a mudança, tenho ido todos os dias ao bairro de Santo Antonio. Lá estão agora meus pais, ele com 78 e ela com 59 anos de idade. Deitado no chão de cimento, começo a leitura da¨carta escrita no cárcere¨, de Francisco Julião. Mas deixo o último capítulo para ler em casa. Na verdade, trata-se de um documento histórico, além de representar uma segura bofetada na face daqueles que vacilaram em seu ideário socialista. Gostei, sobretudo, de um trecho do manifesto que o autor deixara antes de partir, em avião da FAB, com destino ao Recife.
14/15/agosto
A meu convite, Elson Farias passou a manhã em casa. Trouxe consigo o original de seu livro ¨Pequeno Romanceiro do Amazonas¨. Ambos notamos que a ¨Cidade Flutuante¨ está desaparecendo do panorama ribeirinho. A seguir, folheamos um exemplar da revista da editora Civilização Brasileira, sempre na vanguarda da resistência ao regime militar. E não pudemos deixar de admitir que, segundo Benedicto Nunes, o poeta de ¨Luta Corporal¨está em crise.
19/agosto
Tive um sonho com Chaplin. – Vai – parecia dizer-me – você precisa de uma boa viagem em redor de si mesmo, sem perder de vista as paisagens da terra. Em seguida eu me via na esquina de uma rua, a Pedro Botelho, e o tempo era aquele de quando morávamos na velha Estância do Sr. Jorge Baze, em 1945.- Banco Popular de Manaus, pagador dos barbanés. Que miséria de 85.000! Há cerca de um ano e meio eu percebia 200.000 e não dava pra nada.
21/22/agosto
Deus! Fica na mesma o drama vivido com D. Faride. Uma vida sem triunfo é a que levo, segurando como já não posso as rédeas do incontrolável. Ela volta a tomar ônibus, a ir ao Mercado onde alterca com os barraqueiros e pessoas desconhecidas, como se estas fossem responsáveis por algum malefício causado a seus filhos. Terminou levando uma queda brutal, quase ficando desfigurada. Nem posso imaginar como fico por dentro.
* O desânimo é espectral.
24/agosto
Manhã rotineira na Delegacia do Trabalho. Dou uma olhadela nas páginas de ¨A Crítica¨: o projeto de aumento de vencimentos dos militares tramita no Senado Federal. E o nosso? Pois nem se fala dele. Tarde passada em código marciano.
* Todos os dias, Santo Antonio. A escavação dos alicerces da casa que vamos construir, ocupa exatamente o espaço do terreno, sobrando para o Código de Posturas.
* Entrego ¨As formigas do General¨ ao Carlos Gomes. Banco da Lavoura: empréstimo. Mandei reproduzir a fotografia de Porto Alegre, uma lembrança da ¨Caravana¨ de 1951. O tempo é implacável
30/agosto
Quatro meses para o final do ano. Sérios atritos de minha mãe com minha cunhada Juth. Ela reclama pela casa da Joaquim Nabuco, despreza o anexo que meu irmão projetara, sua nova residência. Até aqui, portanto, tudo igual: metade de mim fica nesse bairro, a outra metade na rua Izabel. Não fomos trabalhar. A senhora que reside no térreo de nossa casa deu à luz uma criança do sexo feminino pesando a bagatela de três quilos. Parto demorado e sofrido. Nossa ajuda fora oportuna e o marido da parturiente demonstra sua gratidão. Maria Raquel é o nome da criança, filha do casal amigo Álvaro e Tereza de Oliveira.- Debate em forma de perguntas e respostas entre Décio Pignatari e a chamada ¨geração de 45¨anima o coreto literário do país.
02/set
O mundo é vasto, contraditório. Mas o importante é que os Eremitas da Itália poucos momentos dedicam à juventude transviada dos EE.UU, ou mesmo aos integrantes da Sociedade dos Apalpadores de Nádegas, em Paris. Podemos também afirmar que o mundo é uma fração apenas da crosta terrestre onde os nossos hábitos deitaram raízes juntamente com o hábito de viver.
03/set
Verão senegalesco, verão dos trópicos amazônicos. Cigarras, ao longe, festejam ao pé da mungubeira, traduzem as mutações do crepúsculo numa nostálgica tristeza de seus acordes evocativos.
* Passei o dia em casa. Minha mãe esteve conosco. Desentendera-se com a nora e pretende recuperar sua morada anterior no centro da cidade. Quando a vejo assim nesse estado, sinto um grande aperto no coração. ¨Histoire d´um crime¨, de Victor Hugo, no original. Antes eu lera o ¨La lis dans la vallé¨, de Balzac. Os termos ¨subversivo¨, ¨revolucionário¨, ¨esquerda¨,¨direita¨ já eram comuns naquele tempo, trinta anos após haver surgido o ¨Kapital¨, de K.M..
06/07/set
Fomos passar o dia em Santo Antonio. Pelas tantas surge uma discussão entre mim e um tipo que estava mordendo uns tragos de pinga no boteco de meu irmão. O cara sacou de um revólver, acionou o gatilho, mas bateu catolé. Com muito esforço, consegui desarmá-lo. Seguiu-se daí um corpo-a-corpo entre nós até às imediações da Delegacia Policial, à qual o desordeiro foi entregue. Eu nunca antes tinha sido aplaudido tanto por uma desordem pública.
08/set
Com a retirada dos flutuantes, o Igarapé da Bica está cada vez mais deserto. As velhas bóias de açacu, umas a flutuarem nos restos da enchente, outras enterradas no fundo descoberto pelas águas, testemunham a pressa com que os homens do Governo tentaram ¨exterminar esse câncer social engastado na baía do Rio Negro¨, cartão postal da ¨Cidade Risonha¨.
09/set.
Recebo das mãos do Daniel Maynarte um exemplar do D.O da União de 23-07-65, que publica os termos a que chegou o grupo de trabalho designado para reexaminar os processos de readaptações do MPPS. Entre os aprovados encontrei os nossos, do Amazonas. Já não há motivos para o desânimo; o papelório já esteve também com o Presidente da República, cuja assinatura fica sobrestada pela política econômica do Governo. A esperança, contudo, apoia-se agora em bases concretas.
10/set.
Um dia chato como deve ter sido o planeta que habitamos, na concepção dos torquemadas da época de Galileu. Fui ao IPASE em busca do tal empréstimo exepcional, mas tudo ficou adiado para quarta-feira da próxima semana. Sem respeitar a advertência do horóscopo, continuei meu roteiro, contratando um carro de praça para tentar a sorte junto ao Amâncio, da Sociedade Varejista de Cereais Ltda., na General Carneiro. Outro fracasso e ainda fiquei a dever metade da corrida. Não satisfeito com as derrotas fui ao Hiran, da Casa de Móveis, quando já anoitecia. Tudo em vão. Vencera a posição dos astros, apesar de todos os meus esforços no sentido de esmagar os obstáculos que me cercam.
11/12/13/set.
Passei o domingo com Eliana, em Santo Antonio. À noite do dia 13 estive na Festa do Violão promovida pelo Clube da Madrugada. Após as 22:hs, cerveja ao som dos melhores violões que jamais tivemos a sorte de ouvir, artisticamente dedilhados pelo Mauro Barbosa e um Tenente do Exército chamado Dario. Quase amanhecemos no local.
* Carta do Antísthenes, informando-me ter sido nomeado Assessor de Relações Públicas na Representação do Amazonas.
16/set.
Não quero pensar no futuro porque ele se parece muito com o passado. Quem o disse? Acentua-se a desmemória de meu velho, mormente seu bom apetite e ótima saúde. A velha, na mesma. Vai ao centro quase todos os dias, fala demais. Minha cunhada corre o risco de perder a paciência, cometendo algum desatino.
17/set.
IPASE. Contrato de empréstimo simples para ser averbado na Delegacia Fiscal. A micharia é de 150.000, quase 22 mil de juros, elevando-se o débito a 170.400, pagável em folha dentro do prazo de 24 meses, a partir de outubro deste ano.- Minha falta ao serviço não foi abonada pelo meu colega Chefe da Carteira Mário Ferreira da Silva.- Com livros novos chegados de várias partes do Brasil e do mundo, pelo menos isso.
18/19/set.
Não sei como iniciar este registro. Os acontecimentos da madrugada de sábado parecem confusos, irreais. Murros, tiros e garrafadas numa casa de shows do ¨Clima Frio¨ de que resultaram feridos três elementos do povo. Já no Pronto Socorro, Waldik Soriano (pivot do incidente), em companhia do major Júlio Cordeiro e Cel. Correia Lima, decide apresentar queixa na polícia em virtude de uma das vítimas do tiroteio fazer parte de sua caravana musical. Ora, a polícia, representada na baderna pelo investigador Lobato, já estava esperando por essa oportunidade para um revide à sua maneira. Waldik foi preso e arrastado para as grades por mais de dez guardas noturnos, sendo libertado às 10 hs. da manhã seguinte, com a roupa toda rasgada.
20/set
Sentado ao lado de minha mãe assistimos, juntos, ao sereno anoitecer neste bairro de Santo Antonio. Momentos raros estes, de ternura e reencontro de nós mesmos. Leio Cassiano Ricardo, Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. A velha está calma, graças a um remédio indicado pelo MFS. Freqüentemente, vou ao cinema. Combato as saúvas no barranco da rua Izabel. Nos calhambeques em que viajo do centro ao bairro e vice-versa, sinto-me aflito, inseguro. Também, pudera: cada acidente!
25/26/set.
Em Santo Antonio, por arte e obra do amor filial. Fomos de lá à praia de São Raimundo, atendendo ao convite do Jader, que tirou o domingo para beber e falar arrastado. Novas palafitas tomam conta das margens do rio, talvez uma colônia de pescadores. Um pouco além, reses abatidas, em fase de esquartejamento. Pelo contraste com a paisagem tranqüila, uma cena chocante essa do abate a céu aberto.
27/set.
Prosseguem os entreveros na Repartição. Dá pra ver o desnível com a mediocridade, o prejuízo que ele traz ao desejo de progredir. Descontaram-me a falta do dia 31-08, ameaçam designar-me substituto da Haydée Fortunato na emissão das Carteiras do Menor. Enquanto isso eu conto os dias que passam, engulo em seco e procuro abafar no silêncio os golpes recebidos. Aprendo que essa atitude aplaca as iras do inimigo, fá-lo recuar em seus propósitos agressivos. Voltarei a amar a vida, a mergulhar nas corolas da manhã recém chegada. Em casa tomo um banho de cacimba, a que fica no leito do igarapé seco, escondida pelo mato. E que se vê de nossa janela.
01/out.
Empréstimo no Banco da Lavoura para meu irmão terminar a construção do ¨ninho¨de nossos pais. Vencimento da letra: 04-01-1966. À noite, na denominada república livre do Pina, fui preso por uma patrulha da Polícia Especial do Exército, sob o comando do Cel. Ismael, que ali estava para verificar os danos do depredamento do Cyne Guarany por alguns soldados à paisana. O motivo foi de quando, ao avançarem para evacuar a praça Gonçalves Dias, eu ergui meu protesto, chegando a esboçar um murro no oficial arrogante, disfarçado em trajes civis. Do Pina me conduziram numa sinistra caminhonete à Ilha de São Vicente, e o povo engrossando a correr em nossa direção, a certa altura com a Izabel, minha mulher, liderando a passeata. Duas horas após, o General passa por cima da ordem de seu subordinado, e determina minha soltura. Retornamos todos pela rua Bernando Ramos, em apoteose.
02/out.
Passamos o domingo no Parque 10 de Novembro. Nadei, corri, procurando graduar um sorriso mais jovem entre centenas de pessoas que ali se amenizavam da inclemência do verão amazônico. Elogiável a iniciativa do Prefeito Vinicius ao devolver um parque com a fisionomia de vinte anos atrás, agora ampliado e dotado de um pequeno zoológico. No placard político, as eleições acusam uma derrota da ditadura.
04/out.
Banco Comercial do Pará: reforma de título. A situação do país é caótica. Os golpistas fardados condenam ao ostracismo seus colegas civis que tomaram parte nos acontecimentos do primeiro de abril de 1964. Assim, Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Ademar de Barros seguem o caminho de volta, enquanto Juracy aguarda uma chance para entrar candidato. E o Jucelino no Brasil? Que vão fazer dele, de seu prestígio político?- Uma boa matinê com Eliana.- No bairro de Santo Antonio a papeira toma conta da família de meu irmão. Faço a vez de balconista, ajudando nas vendas da mercearia. Uma observação ao pé da página, quase ilegível: Por quê rabisco estas linhas? Refletirão elas, por acaso, todos os covis de meu dia-a-dia? Quantos fatos relevantes deixados ir, transfeitos em névoa!
16/17/out.
Estiveram em casa e aqui passaram o dia Hanneman Bacelar e Pe. Nonato Pinheiro. Hanneman é o grande pintor. Discretamente, ele esboça um retrato meu, a óleo.
19/out.
Um dia sem perspectivas. Até cerca das 15:hs estive às voltas com o caso dos ¨Lopes¨ da Polícia Civil. Quanta perversidade! Em Santo Antonio repassei a meu irmão a quantia mensal de 30.000, para ajudar nas despesas.
21/out.
De volta o ciganismo de D. Faride. E o sacrifício do velho se deslocando de Herodes a Pilatos. Que vem a ser esse distúrbio mental que muito raramente se instala em alguém de nossa família? A bem dizer, de grave mesmo, só conheço este. Os demais são vagos e jamais causaram transtornos. Termino a leitura de ¨A peste¨, de Camus. O bacilo que ¨não morre nem desaparece¨- ¨e chega o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz.¨
23/24/out.
Lendo os traços de minha mão direita, diz-me o Elson que eu não tenho sorte. Foi ontem, sábado, no ¨Uirapuru¨ e estava conosco o poeta Max Martins, de Belém do Pará. Fiquei pensativo, mas de nenhum modo impressionado. A prova do que ele me disse eu já tenho em meu karma, sou feito de pedra e luar, anteu e proteu de um circo imaginário, a vida. O que ele me passou, afinal, é o que tenho vivenciado nos desafios que o destino me põe, ficando a sorte, quanto a mim, mais agregada ao esforço pessoal do que ao estrito merecimento. Ainda assim, não sei. Ele é que sabe.
27/out.
Amanhã é o Dia do Funcionário Público. E bem a propósito o Presidente da República promulga o Ato Institucional número 02, na vigência do qual não podem interferir os poderes legislativo e judiciário. Sabe-se agora, ainda mais claramente, como e de que forma se deu a viragem política inspirada nos fantasmas da subversão e da corrupção. Um golpe de mestres.
N. do A.: Dez dias do calendário, ou mais, são tomados aqui por reminiscências da infância em Sena Madureira e dos três primeiros anos de Manaus; um relato, embora sucinto, dos sofrimentos com falta de teto, recursos médicos etc.. Elevam-se no mesmo as personalidades de Adriano Jorge e João Veiga, ambos amigos de nossa família.
15/16/nov.
¨Subversão¨- escreve Ênio Silveira - ¨a palavra mágica para justificar todos os crimes e violências, mas que ninguém se dá ao cuidado de explicar claramente o que significa no contexto político de hoje¨ (¨Epístola ao Marechal¨).
17/nov.
Antes de mim totalmente, acordei com meus ouvidos cheios de sanhaçus. Estavam todos em nossa varanda, na rua Izabel. Folheio a Bíblia Sagrada, penso em Salomão. Penso nele e medito nos pássaros de seu tempo, que não devem ter sido outros, senão talvez na maneira afável como deviam ser olhados pelos homens daqueles princípios. Continuo a ouvi-los ao descer a estreita escadinha do frágil terraço, o trinar limitado às variações harmoniosas que vão do amanhecer ao crepúsculo. E nada mais do que isso.
20/21/nov.
São cada vez mais fluentes e acreditáveis os boletins do DASP.
* Como Chefe de Turma, minhas vantagens pecuniárias não chegam sequer para saldar o débito do BCP. E o que dizer das prestações da geladeira da firma Benchimol & Irmãos?
* Vai longe a leitura que faço de ¨A origem da família, da propriedade privada e do estado¨. É um livro que não deverá faltar em minha estante quando o térreo ficar pronto.
24/nov.
Vencemos as eleições do Clube da Madrugada. A vitória do Aluísio arrastou em sua chapa uma equipe bem entrosada na sistemática do movimento. Houve aplausos em toda praça Gonçalves Dias. Só dessa maneira é possível restaurar uma vanguarda seriamente preocupada com a divulgação das artes e da cultura no Estado do Amazonas. Não houve propriamente derrotados.
* Entre papéis velhos, o início de um trabalho sobre o poeta Elson Farias, a quem conheci em 1959, quando fundamos um grupo de jograis com a função específica de levar ao povo a mensagem de consagrados e não consagrados poetas de língua portuguesa. Nosso convívio literário foi longo e proveitoso. Os ¨Jograis de Manaus¨ apresentavam-se em público, nos teatros, casas de amigos e através do rádio. Com o tempo, desfez-se.
02/dez.
A vida – dizem os poetas antigos – está sitiada pelas brumas do sono. Será então este o resultado de um encontro que o homem realiza com sua própria alma? O sono nos embala, qual um rio a dormir sob noite estrelada, indiferente às sombras que habitam suas margens. Nalguns ouros crepusculares, o sorriso dos deuses parece inextinguível.
04/05/dez.
Leio no Boletim semanal do Governo Federal da Alemanha, os seguintes trechos de uma reportagem sobre Rainer Maria Rlke, por exemplo, quanto às causas reais de seu falecimento em dezembro de 1926: ¨Sua morte foi tão sublime como sua vida. Em realidade ele veio a falecer de uma leucemia perniciosa – reconhecida tarde demais por seus médicos de sangue azul – mas a lenda sabe dizer que ele se feriu ao apanhar rosas para sua gentil admiradora, a linda Nimet Eloui Bey, da terra dos faraós. Ele morreu, portanto, por causa de um minúsculo espinho, como num conto de fadas. Ora, lendas deveriam ser conservadas, caso elas forem bonitas. Algo é certo, entretanto: o desenlace trouxe consolo para Rilke, que acreditou na morte pelas rosas.¨
* Ivens Lima me entrevista para seu programa no rádio.
11/12/dez.
De Sérgio Augusto sobre ¨Tarzã, o Homem e o Mito¨ : ¨Pizarro não teria ido tão longe se soubesse que a fonte da juventude estava dentro de si mesmo. O prazer do maravilhoso é a água que conserva nos velhos o frescor do espírito da infância, o segredo que transforma a realidade em sonho e restitui a vida aos antigos mitos¨.
23/dez.
Estive ausente de minha escrivaninha improvisada, tratando de assuntos ligados ao meu propósito de adentrar o ano com pouquíssimas dívidas, ou nenhuma. Mas corre notícia de que o Presidente Castelo Branco assinou o Decreto de nossas readaptações, já esperado desde... Sendo verdade, não demora soa o telefonema da colega maior Dulcicléa Cardoso, e aí, sim, as nuvens carregadas serão varridas do espaço, e o espaço iluminado por miríades de balões multicoloridos.
24/dez. Lamentável e bizantina a discussão que mantive com o Luiz Saraiva, cunhado do Amazonino, no bar Avenida. Se alguém magoara alguém, esse cristal nunca pode ser emendado. Uma vez mais, devo lamentar o incidente.
25/26/dez.
Total das obrigações restantes do ano: 224.200, divididas entre dezoito pessoas físicas e jurídicas.
27/dez.
Sento-me com meu compadre e amigo Luiz Ruas na calçada do estúdio da Rádio Rio Mar, onde começamos um papo descontraído. Diz-me ele:
- Tudo na vida se resume numa questão de perspectiva. Eu vejo e sinto de um modo, você de outro. O que mais admira nisso tudo, é que em meio a tantas diversidades, ainda somos capazes de conviver uns com os outros.
Depois, ajunta:
- Um problema é um problema enquanto tiver solução. Do contrário é um absurdo, e diante do absurdo só cruzando os braços. Ou seja, conforme um axioma sefardita, para o que não tem jeito, já está dado jeito.
Precisei desse encontro e dele saio reconfortado.
29/dez.
Com efeito, soa o telefone no Gabinete do Delegado com a Dulcicléa informando do Rio que o Decreto com os nomes do Amazonas fora assinado pelo Presidente em 23 do mês em curso. Adiantou ainda que o mesmo será publicado no D.O. da União do próximo dia 31, o mais tardar. Por conta, houve uma prévia comemoração da turma com uma garrafa de Grants, no bar Jangadeiro.
30/dez.
O ¨Diário Oficial¨da União traz, hoje, dia 30, o Decreto assinado pelo Presidente Humberto Castelo Branco, que readapta para a classe de Inspetores do Trabalho, respectivamente, os servidores Mário Ferreira da Silva, Jorge Tufic Alauzo e João Batista de Almeida.
31/dezembro
Apesar dos pesares, Ano Velho, talvez eu tenha sido injusto contigo, ao tentar apressar um benefício que, noutras circunstâncias políticas, jamais seria alcançado.
* Mas já em teu final recebo a grande notícia que há três anos vinha sendo aguardada. Devo agora agradecer-te, pois somente agora compreendo os teus sábios caprichos de Mestre, fazendo-me sofrer para conquistar e dar valor ao troféu conquistado. Aqui me vejo, portanto, a sorrir entre as esperanças confirmadas e o desafio que apenas se esboça no limiar de minha nova vida funcional. Deo Gratia.
N. do A.: No mês de fevereiro de 1966, reservei parte de meu vencimento e fui, em pessoa, ao encontro de meus abnegados credores. Paguei a quase todos, já que alguns, mais íntimos, negaram o compromisso desejando-me sucesso no trabalho. Na verdade a gente, aos poucos, vai estranhando como tudo muda ao nosso redor. Mas essa já é outra história.
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