(Quadro do pernambucano André Soares Monteiro exposto na pensão de comida caseira Sabor do Adonai, no BOREL)
ODE À AMÉRICA DO SUL
X (balada enquanto seja)
Ao contrário de outras águas, nosso rio é movimento, serpe andina em debandada vai ele em busca do mar; desde que nasce de um fio por ondas rola barrento, vem à tona e vira vento, é estirão que sai do nada.
Rio de lendas ficou, matreiro, curvo e norato, seu berço de concha e lua, com três nomes de batismo, três caminhos sete bocas por onde bebe a tormenta; mas tem mágicas, puçangas, e a cada estória, se aumenta.
Pântano cósmico, diz-se por quem o lê pelo avesso, por quem ouve a queixa inata, por quem adentra seus peixes, por quem taboca faz beiço e sopra o fogo da enchente, pois este rio é começo da febre que torra a gente.
Ao contrário de outras águas, o Amazonas, como um todo, pode tornar a seu fio como náufrago do lodo.
Tentando lavar este sangue inutilmente derramado, de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota; ele vai mudando de nomes até unir-se às águas revoltas do lendário Urubamba. Este, por sua vez, se socorre do Apurimac, quando formam, juntos, o Rio Amazonas. Muito tarde, porém. Um grande exemplo despercebido. Esses rumores até hoje incessantes, este chamado das vertentes comuns, somente os poetas o sabem distinguir na diversidade que amalgama e na dor que ensina.
VIII Nos porões soterrados debaixo das cidades, deuses animais de terracota aparecem ao lado da serpente, e ao lado da serpente paradigmas antropomórficos. Foi assim que teus nativos, pescadores de Valdívia, dominaram os ornatos circulares: perfis abstratos, bizarras entidades híbridas sobressaem nos relevos celestes; e ao lado destes, ardósias cônicas, traçados olmecas. Um portal contendo símbolos xamãs e sarcófagos dourados, torna visível o silêncio dos mortos na estática de teus músculos altivos prateados de neve. A Quinta Era, afirmam ali, pertence a Tonatiú, o deus Sol, habitante dos leques das palmeiras; e há de ser confirmada por graves, extensos abalos. Pumas alertam para as ameaças que sobem das Ilhas Arqueanas.
VII Grande é o solar do tempo nesta aldeia onde um galope nunca se interrompe. Este chão de Pizarro em Guamachucho de lavas contraídas pelo medo. Escarpas traçam rápidas figuras, pousam brilhos de séculos vencidos. E um velho terremoto, agora fóssil, arroja um tigre do alto de um penedo. A noite é um vinho branco. Mas o sangue que transborda do lago, não descansa: quer vingar a cobiça, o fogo e a traição, estes três assassinos de Atahualpa, daquele em cujo peito o sol dos incas despedaça o seu último clarão.
VI A cidade perdida dos incas são tantas cidades quanto as portadas que levam à presença do sol; e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos, e dali às cavernas talhadas a ouro, e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram ao peso dos colossos que protegem a montanha das patas ecoantes de Espanha. Em cada milímetro quadrado das alturas que saltaram de mares incalculáveis, Amarus confundem a inteligência dos homens de Pizarro. Labirintos ficaram, boiunas coleiam na ouriversaria das auroras. E ninguém poderá decifrá-las. Para Iucay se evadira Manco. E uma das primeiras guerrilhas da história consegue fazer das trilhas enganosas o desgastante baralho das Cordilheiras. A imagem de raios solares com mais de cem toneladas, em que leito de Vilcabamba terá se consumido em miríades de estrelas? Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa. Em Viticos, chega a vez de Manco Inca. Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados. Tupac Amaru expira em Cuzco levando no olhar a música do império.
V Quantos equívocos te cercam antes e após a descoberta, por ti, do torno do oleiro, da roda e do arado? Que simpáticas figuras transoceânicas poderiam ter-te doado, oh América do Sul, carrinhos votivos de cerâmica, travesseiros de barro e selos em forma de bujarronas? E as tuas escritas? Terão sido trazidas por quem - fenícios, gregos, romanos – se colocam na origem de teus índios? Fascina acreditar, em vez disso, que provenhas, isto sim, de alguma centelha que se fez Avalon, Atlântida ou Atlas, segundo escrevem as aves migratórias quando te buscam nos pélagos, e adivinham teus ecos profundos nas cavidades do espanto.
IV Imitas um coração populoso e tranqüilo. Tens a forma de harpa ou alaúde com doze cordas festivas. E ainda podes ser vista como um rosto enigmático voltado para si mesmo. Desigualdades e semelhanças predominam assim, de um lado e de outro, entre vales, planícies e altiplanos. Em qualquer Atlas se lê, por exemplo, que há fome na Bolívia, que há tango, festas e greves na Argentina, que o Chile exporta minérios e vinhos, que o Brasil é o maior destes países, que o Equador tem reservas de prata e ouro, que o Peru não se expande, que o Paraguai continua bloqueado sem saídas para o mar. Em teu próprio nome, oh América do Sul, e em nome da história que te deram, hás de entender, no entanto, que ninguém pode ser feliz quando está cercado pela miséria, seja a miséria do egoísmo, seja a miséria das guerras; que ninguém pode ter paz quando há golpes e matanças do outro lado de suas fronteiras. Hás de saber entrementes que, por cima da fala dos caudilhos, paira a linguagem fluida ou tormentosa daqueles que te celebram; inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas ou se debruçam nas torres de vidro; ou daqueles, ainda, que se confundem com os traços das telas que azedam em teus sótãos e em tuas águas-furtadas. Estes homens de letras ou picassos anônimos entregues à corrosão que desfigura e ao abandono que mata.
Quantos martírios e sucessos pontilham tuas manchas ocres em cada solo ferido ou conquistado! Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança de teus ancestrais caribenhos? Do milho cor de cereja dos Aruakes? Dos artefatos barrancoides dos Walpés? Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio e a toada dos riachos verdejando os caminhos? Da antigüidade seletiva dos tucanos, muras e cambebas? Lembras-te, por acaso, da bola de sernambi que estes últimos te deram, ainda em pleno século XVII, e do jogo que eles jogavam num campo sem traves e sem torcidas?
Numa rede de dormir os brancos degustam teu massacre mas olvidam o teu legado, esse imenso legado que sucedera ao jugo, impiedoso e cruel, daqueles teus primeiros habitantes, plantadores de sombras, raízes da terra. Guitarras, malária, devastação e confisco, eles trouxeram de tudo. Mas tomam caxiri no delicado suporte de uma cuia rústica ou pitinga; alimentam-se de farinha de mandioca e têm muito de si no caboclo que se espreguiça para não ir ao trabalho; e têm muito de si na mestiça que se vende por las calles y los pueblos; e têm muito de si, também, nessa fusão de sons e melodias que fizeram do nheengatu das águas pretas a língua franca dos mitos e do lendário esquecido.