sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ODE À AMÉRICA DO SUL



Quantos martírios e sucessos

pontilham tuas manchas ocres

em cada solo ferido ou conquistado!

Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança

de teus ancestrais caribenhos?

Do milho cor de cereja dos Aruakes?

Dos artefatos barrancoides dos Walpés?

Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio

e a toada dos riachos deixados a caminho?

Da antigüidade seletiva dos tucanos,

muras e cambebas?

Lembras-te, por acaso,

da bola de sernambi que estes últimos

te deram, ainda em pleno século XVII,

e do jogo que eles jogavam

num campo sem traves e sem torcidas?

 

 

Numa rede de dormir

os brancos degustam  teu massacre

mas olvidam o teu legado,

esse imenso legado que sucedera ao jugo,

impiedoso e cruel,

daqueles teus primeiros habitantes,

plantadores de sombras,

raízes da terra.

Guitarras, malária, devastação e confisco,

eles trouxeram de tudo.

Mas tomam caxiri no delicado suporte

de uma cuia rústica ou pitinga;

alimentam-se de farinha de mandioca

e têm muito de si no caboclo que se espreguiça

para não ir ao trabalho;

e têm muito de si na mestiça que se vende

por las calles y los pueblos;

e têm muito de si, também,

nessa fusão de sons e melodias

que fizeram do nheengatu das águas pretas

a língua franca dos mitos

e do lendário esquecido.

 

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ODE À AMÉRICA DO SUL

ODE À AMÉRICA DO SUL





Jorge Tufic





Que o boné de Pablo Neruda 

e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bisontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colmeias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

O SUBSOLO

O SUBSOLO



Jorge Tufic
.
Legiões de minúsculos roedores
descobrem meus poemas.
Cevam-se deles.
Uma colônia de tropos
um arsenal de elegias
um supermercado de haicais,
dividem agora os cupins
em várias e desconexas
correntes de solidão.

.
Nenhum manuscrito foi poupado.
Nos restantes da broca
o desenho da fome,
as marcas do escuro,
a doce fúria branca.
Tinta, mofo, papel, palavras
espaço mecânico,
abismos pensados,
metáforas roucas,
danaram-se então para longe,
sob o terror organizado
que liberta os signos cativos.


(Poema-coral das abelhas, 1999)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

CANTIGA, APENAS CANTIGA








CANTIGA, APENAS CANTIGA



Louvo a deus,

louvo a formiga,

cada coisa em seu lugar. 

Louvo a difícil cantiga,

louvo a pedra,

louvo o mar.



Quem não louva a tudo isso

quem não se enxerga

a louvar,

é mais bruto do que a pedra,

muito mais surdo

que o mar.



Louvar é dar sentimento

Quem louva

a Deus se transfere,

nunca cessa de louvar:

louva o mundo que nos fere,

e ao tempo

que faz sarar.



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

SONETO INGLÊS PARA ANIBAL BEÇA


SONETO INGLÊS PARA ANIBAL BEÇA
 
Hoje sei que o meu tempo foi de algemas.
Atado ao mundo, pássaros de areia
se largaram de mim: lestos fonemas
trazem de volta o néctar que incendeia.
Habitante da noite, volta e meia
danço e cavalgo estranhas partituras.
Onde a poesia? Látego e correia
a suíte é rosa, música e nervuras.
A lua imensa bebe, nas alturas
todo o clarão que sobe dos teus dedos.
0 mar se expande em conchas e loucuras
solos e flautas contam seus segredos.
 
Tenda de Omar Khayyam, quem não te habita,
salsa-songo na pauta transfinita?

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA
 
ROGEL SAMUEL
 
 
 
  Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.
 
Depois vem a casa, a cozinha, as comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, que a Mãe preparava... mas tudo isso passou. Onde estão as comidas, os pratos de lentilha, a terrina de azeite para as coalhadas, as cebolas fritas? Tudo passou... Como, ao redor da casa, o vento. Como passou o vento do tempo. Também passam a cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantantes, e passaram. E o que passa é aquele Calendário sem datas, o chão do passado, o que passa. A casa da mãe. O que passa. O chiar da frigideira. Os convites. O passado convida o leitor no seu chamado culinário: a mãe é aquela cozinheira das almas, das afetividades, da fraternidade, da ternura, o amor recende dessa mãe cozinheira, que ainda manda seus recados e canta, é assim que ela aparece, suada e infinitamente bela e luminosa, centro da vida familiar. Social.
A mãe é o corpo da “vida privada”.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

SONETO

Morto para sempre? O que dizer,

se a própria metafísica se esquece

que o pilriteiro, em ramos, não floresce

onde não há ninguém para morrer?


Morto para sempre? Ser ou não ser,

nostalgia de um quando que apetece...

O que nasce, definha; e o que amanhece

há-de ao nada, sem dúvida, volver.


Desperta-se do sono com a surpresa

de Lázaro da breve noite escura

ao lento enrubescer da natureza.


Para sempre se morre? Assim, precário

vai-se o corpo visível da impostura,

mas fica, dele, o corpo imaginário.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

SONETO PARA GOETHE

DUETO PARA SOPRO E CORDA




SONETO PARA GOETHE
O olhar de Goethe envolto pela história,
deslumbrado em saber-se parte dela:
Goethe na Itália como pôde vê-la
nos mármores pesados de sua glória.
O olhar de Goethe fixa a trajetória
dos tempos que se fundem; e a seqüela
das mudanças fatais  abre a janela
sobre a praça dos deuses e da escória.
Deambula este sábio que à paisagem
da antiguidade empresta a doce imagem
de um sonhador que pensa, enquanto voa.
Faz-lhe bem penetrar nos ventos mornos,
dar ao silêncio músicas e cornos,
que, mesmo em pedra, o velho Pan ressoa.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA
 
ROGEL SAMUEL
 
 
É um tema banal, popular, vulgar. A mãe, já tão gasto motivo dos cadernos poéticos e saudades, pois todos nós tivemos ou temos a mãe a saudar, a lembrar, a louvar, a chorar. 
 
Mas Jorge Tufic é um poeta excepcional: com que realizou sua obra-prima, sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe, ou da personagem mãe.
 
O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. Começa por uma invocação.
O que lemos aí é a invocação de um sabor (de um saber), de um elemento gustativo, a maçã, o trigo, me o visual, fios de luz, e o táctil elemento do vento, e os aromas, a paisagem, a planície, os montes e as noites, a pedra, a febre, o martírio.
 
 
1. Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios
 
 
Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, vem em fragmentos, pouco  nítida, mas forte, sentida, ou pressentida, sim, começa ele a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe e que logo todos nós assumimos como nossa (quem consegue falar de sua mãe morta sem tornar-se piegas?), conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, a Fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.
 
Tema freudiano, pois.
E no segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso?
 
É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro. No livro há citações, pós-modernidade. Ou seja, a obra se diz: “Calma, eu sou apenas uma obra literária”.
A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança. A fronte do  pão, do leite, da flor, do fruto. Mãe que é para “amar depois de perder”, como no verso de Drummond. Na verdade, Tufic, só de lembrá-la um soluço arrebenta-nos a crítica.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Pacote poético

Pacote poético
 
 ROGEL SAMUEL
 
Em 30 de setembro de 1999 escrevi um texto que aqui transcrevo com algumas modificações:
 
Recebo um pacote pelo correio, um pacote amarelo que apalpo e que sinto, há objetos dentro, possivelmente livros: sim, são cinco novos livros de Jorge Tufic que eu lhe pedi pelo telefone e eu fico me lembrando que, há quarenta e três anos atrás, ele publicava o seu já clássico “Varanda de pássaros”.
 
Como pode Jorge Tufic manter 50 anos ininterruptos de poesia apesar da crise por que passa a produção cultural brasileira e a amazonense em particular? Porque depois daquele grupo do Clube da madrugada muito pouco produziu a poesia de Manaus.
 
Eu era adolescente e Tufic já era dono de uma grande obra que se afirmava principalmente nos seus sonetos extraordinariamente inovadores e pós-modernos.
Na década de 80 eu já morava no Rio de Janeiro (cheguei no dia 2 de janeiro de 1960) e nós nos correspondíamos por carta. Depois ele se foi para Fortaleza e o perdi de vista. Soube que foi homenageado no Rio de Janeiro, onde moro, mas não o vi porque estava viajando.
 
A última vez que o encontrei foi em Manaus, no restaurante Galo Carijó, onde eu gostava de almoçar sempre que estava em Manaus e onde também deparei ali com o Thiago de Melo, donde se conclui ser aquele bar um ponto da poesia perene.
 
Voltei a comunicar-me com ele este ano, quando eu tomei a ousadia de aventurar-me a candidato a uma vaga – a de Áderson Dutra, primo de minha mãe – da Academia Amazonense de Letras: fui derrotado mas valeu, pois me pus em contato com velhas e novas amizades. 
Agora, recebo alguns livros e várias pequenas publicações, entre as quais o belíssimo “Agendário de sombras”, uma coleção de sonetos dos quais cito, ao acaso:
 
Necessito do rio e da paisagem
que me vira partir quando menino.
da visão surpreendida ou desse quanto
pode haver em redor do meu destino.
eram coisas e seres do meu tempo,
partes de mim que a vida, em seu balanço,
foi deixando passar, nuvem sujeita
aos ventos, matéria sujeita ao ranço,
rubros sóis de verão, coleita breve
de azeitonas e ocasos, também contam.
Soldado entregue ao chumbo dos brinquedos,
ao som, talvez, das águas deste inverno,
quero sentir na pele evanescente
como eu seria agora, antigamente.
 
Ao poetas menores como eu, Tufic aparece como uma alta torre nos Himalaias, com a força da sua Linguagem, algo inimitável e inatingível. Mas como pessoa ele tem a gentileza dos mais nobres corações e nos brindou com imerecidas dedicatórias.
 
Dentre sua produção recente, no ano passado ele publicou “Sinos de papel”, um delicioso livro de haikais que bastaria para o consagrar:
 
Paineira caiada
Por uma lua de espuma
Tão cheia de nada.
 
Jorge Alaúzo Tufic nasceu no dia 13 de agosto de 1930 e publicou seu primeiro livro aos 25 anos de idade. A Amazônia dele se orgulha.
 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA
(A poesia de Jorge Tufic)
 
Rogel Samuel
 
 
 
 
Prefácio: As noites voadoras de Jorge Tufic
 
Na poesia de Tufic tudo voa, são estrelas, cintilam caminham no céu daquela Amazônia mítica, luas várias luas que se contam com as mãos, narrativas dos nossos mitos, viagem dos Desâna, canoas de cristal, transformadoras, estórias e sabenças de quem vive sozinho no meio do mato, faro de onça, muirakitãs da lua nua, que se despe na entressafra do amor,
 
despenca uma folha
e o verão estremece
 
Passarinhos que ouvem nossas conversas, na terra macia escrevemos nossos textos (nunca se sabe, tampouco, - porque se chama de vazio – o espaço da natureza).
 
Que será de ti, Amazônia? Cavidades, rangidos
 
Subitamente sou árvore,
flor, pássaro e livro.
Um livro cujas páginas
tomaram a cor e o risco
da música e da pedra.
 
..........
cinzel que não fere,
da jaula inconsútil.
 
(Texto escrito com “Quando as noites voavam”, de Jorge Tufic – Fortaleza, 2011.
Ele é o grande cantor da Amazônia!)
 
 
 
 
 


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

SONETO A UMA TELA ESQUECIDA

DUETO PARA SOPRO E CORDA



SONETO A UMA TELA ESQUECIDA
Douradas estações fazem seu lume
de ontens sangrados e amanhãs nevoentos.
Que somos nós? Tutores desses ventos,
breve fulgor, insólito perfume.
Celebrar esse instante era costume
sob as copas de bosques cismarentos;
dele jorraram vinhos sumarentos,
dele a canção do afeto e do negrume.
Entre o sono e a vigília, amor e tédio,
crestam videiras; lá, barra-se o dia
que à cena empresta um rústico debrum.
Assim pintores viam, sem remédio,
fixar-se o tempo escasso da alegria
na sucessão de um brinde apenas um.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE


BOCAGE

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França:
Êste, com mogingangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sôbre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança:
Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:
Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-me alva langonha
Rebenta-lhe do cú merdoso esguicho.


IX


Arreitada donzela em fôfo leito,
Deixando erguer a virginal camisa,
Sôbre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachacho estreito:
De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branca crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito:
A voraz porra as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A môça treme, os olhos requebrados:
Como é inda boçal, perde os sentidos:
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

SONETO PARA BOCAGE

DUETO PARA SOPRO E CORDA



SONETO PARA BOCAGE
Que sabes tu de mim, rosto sereno,
mão armada de cálamo, chinelo
diante do pé lanhado e não pequeno,
em tudo a imagem de polichinelo?
Que sabes do que sou, profundo anelo,
sempre avesso ao teu lodo, embora ameno
ou pálido me adentro em teu castelo
e bebo do teu vinho e teu veneno?
Que sabes deste outro que procuro,
Se reverbero enquanto te consomes,
e entre nós se levanta um novo muro?
Fardo que me aprisiona, quem imagina
ser um monstro fugaz, com tantos nomes
a fera em que me escondo e me assassina?

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O LÍRICO E O ERÓTICO

O LÍRICO E O ERÓTICO


Um aspecto característico da dupla personalidade de Elmano Sadino, nome árcade do nosso poeta, vai-se encontrar em Nize, Marília, Márcia, entre outros anagramas de suas amadas, e nomes reproduzidos na forma verdadeira, que tanto aparecem sob a roupagem lírica dos sonetos e poemas recolhidos em suas Obras Completas, como na obra considerada fescenina. Vamos exemplificar com Nize, personagem bastante familiar do fazer erótico de Bocage:


Não lamentes, oh Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a c’roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado;
Essa da Rússia imperatriz famosa,
que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta;
Não fiques pois, oh Nize, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo pêta.


A mesma Nize aparece, depois de falecida, neste soneto-epitáfio profundamente evocador de sua inocente beleza anímica, interior, materializada na pureza dos olhos sofridos, que aos poucos a morte lhe fora apagando. Soneto XXXIX (39) das Obras Completas



Já no calado monumento escuro
Em cinzas se desfez teu corpo brando
E pude ver, ó Nize, o doce, o puro
Lume dos olhos teus ir-se apagando.
Hórridas brenhas, solidões procuro,
Grutas sem luz frenético demando,
Onde maldigo o fado acerbo e duro,
Teu riso, teus afagos suspirando.
Darei de minha dor contínua prova,
Em sombras cevarei minha saudade,

Insaciável sempre, e sempre nova.
Té que torne a gozar da claridade
Da luz, que me inflamou, que se renova
No seio da brilhante eternidade.