quinta-feira, 30 de maio de 2013

CDA PENSA


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE PENSA
Era uma vez Drummond no banco duro
do bonde antes da náusea, apenas flor:
lia o jornal sem letras lendo o muro
nos tantos feitos para o desamor.

Mas, quem era Drummond nesse futuro
onde o passado argila-se na cor
do riso que de súbito misturo
ao Drummond proletário, agro de amor?

O Drummond que se inclina nesta foto
lembra um nenúfar, contemplando, ignoto,
o além dos móveis, lajes, artefatos.

É uma cegonha em busca de sua imagem
refletida na pedra, essa paisagem
de Itabira, um suspiro entre retratos.



terça-feira, 28 de maio de 2013

ZARATUSTRA


ZARATUSTRA
  
   Ao gênio de Nietzsche

Tudo é claro na voz de Zaratustra,
eco profundo, solitária voz.
Zaratustra é a certeza do que frustra,
Zaratustra é o cristal de todos nós.

Zaratustra é a montanha. E nada custa
romper com a treva em busca dessa foz,
olhar duplo que os âmagos perlustra,
águia e serpente num conúbio atroz.

Ver alguém que padece e fazer nada,
ter piedade ao invés de audácia plena,
unir-se á covardia, à mão armada?

Isto é ser homem, ciclope de barro,
oxidado animal de alma pequena,
do super-homem vergonhoso escarro.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

SONETO DO INSTANTE FUGAZ


SONETO DO INSTANTE FUGAZ
Conta-me, pluma, a sutileza agreste
dos mínimos estalos, da leitura
que o sol derrama sobre a fonte pura,
do inquieto lume que as palmeiras veste.

Seja a manhã teu código celeste,
tua insolúvel, grávida procura
de onde pousar os fios da loucura
tecidos, como a ti, de algum cipreste.

Voluntário pesar que, entanto, assume
desde sopros de vento ao que lamenta
fechado numa palha ou num perfume,

conta-me pluma, como o tempo leve
passa do gris ao breu de uma tormenta,
sem que, fugaz, te deixe a mão que escreve.



segunda-feira, 20 de maio de 2013

O CRISTO DE SARAMAGO


O CRISTO DE SARAMAGO
A rede, sim, transluz-se e colhe o peixe.
A terra é sangue, inútil proteção
ao cordeiro aflitivo – que se o deixe
manumisso da horrível sagração.

A tempestade, o mar, o rubro feixe
se azula em mim nos touros de um clarão...
Ventos, parai! Que o mundo não se queixe
dessa fúria de Deus em minha mão.

Que são curas, milagres como o vinho,
meus pássaros de areia, o gesto santo
no adiar-se a vida para mais caminho?

Uma simples mulher curou-me, um dia,
das chagas com suas lágrimas; e o quanto
dera-me alívio à cruz donde eu pendia.


terça-feira, 14 de maio de 2013

SONETO A UMA AGENDA



SONETO A UMA AGENDA
Para quem chega ou sai, vide na agenda
telefone, endereço, e assim, talvez,
o número da campa onde o freguês
terá deixado a última legenda.

Todo um passado nela se desvenda
com a rolagem dos anos. No entremês
de novas baixas, outros, por sua vez
plantam seus nomes e refaz-se a lenda.

Nomes famosos como Pedro Nava,
poetas humildes como Jota Cê,
já se foram da letra que os guardava.

Antigas pautas mostram-nos, porém,
que entre os vivos há mortos; estes que
nunca respondem, nada, pra ninguém.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

MAKUNAIMA



Makunaima
Recria o Mundo

depois das águas grandes,
o mundo ficou seco e oco.
Pedaços de carvão ficaram rolando no solo,
como ecos de pedras,
vozes de rio, gemidos de fogo.
então, Makunaima acordou.
e do barro de sua vigília
retirou aquele homem, sua forma de barco,
seu peito cavado.
no outro lado de roraima
seus feitos continuaram.
Homens e mulheres foram sendo mudados
em rochas, antas e javalis.
Perto de koimelemong, um cervo
mergulha na terra a cabeça de pedra.
sobre uma grande onda na serra de Aruaiang,
pousa uma cesta de luar.
A serra do Mel parece conduzir
um silêncio de aragem
e vai sem ter vindo.


sexta-feira, 10 de maio de 2013

SONETO PARA UM VELHO TELHADO


SONETO PARA UM VELHO TELHADO

De calha em calha ondula o gato; a janta
Vai chegando ao final sob este espaço
Onde não chega o ácido mormaço
Quando a tarde é mais forte e a lua tanta.

Diante do gato um pássaro levanta
Seu vôo meticuloso, ao gesto e ao passo
Do romântico chano: agora é de aço
O brilho visceral que a noite espanta.

Enquanto ossadas limpam-se da mesa,
Secam lá fora os grilos da incerteza,
Telhados ardem na paisagem suja.

Não sei mais desse gato. O passarinho,
Mandei que fosse em busca de outro ninho.
Naquela casa, pia uma coruja.


terça-feira, 7 de maio de 2013

SONETO A UMA TELA ESQUECIDA


SONETO A UMA TELA ESQUECIDA
Douradas estações fazem seu lume
de ontens sangrados e amanhãs nevoentos.
Que somos nós? Tutores desses ventos,
breve fulgor, insólito perfume.

Celebrar esse instante era costume
sob as copas de bosques cismarentos;
dele jorraram vinhos sumarentos,
dele a canção do afeto e do negrume.

Entre o sono e a vigília, amor e tédio,
crestam videiras; lá, barra-se o dia
que à cena empresta um rústico debrum.

Assim pintores viam, sem remédio,
fixar-se o tempo escasso da alegria
na sucessão de um brinde apenas um.



sábado, 4 de maio de 2013

SONETO PARA BOCAGE



(GRAVURA DE HELOISA PIRES FERREIRA)


SONETO PARA BOCAGE
Que sabes tu de mim, rosto sereno,
mão armada de cálamo, chinelo
diante do pé lanhado e não pequeno,
em tudo a imagem de polichinelo?

Que sabes do que sou, profundo anelo,
sempre avesso ao teu lodo, embora ameno
ou pálido me adentro em teu castelo
e bebo do teu vinho e teu veneno?

Que sabes deste outro que procuro,
Se reverbero enquanto te consomes,
e entre nós se levanta um novo muro?

Fardo que me aprisiona, quem imagina
ser um monstro fugaz, com tantos nomes
a fera em que me escondo e me assassina?



sexta-feira, 3 de maio de 2013

Matintaperera


Matintaperera

o espaço é de lua
– Matintaperera
A lua é de sono
– Matintaperera
o sono é de medo
– Matintaperera
o medo é um assovio
– Matintaperera
o assovio é de vento
– Matintaperera
o vento é um pássaro
– Matintaperera
e o pássaro é gente
– Matintaperera
o que a gente deseja
– Matintaperera
Amanhã de manhã
vem buscar o tabaco
– Matintaperera

Ali vem Makunaima.
Um lado de seu corpo é um bananal maduro,
o outro lado é um rio de peixes tão lisos
que nem a água segura.
Quem, por acaso, já viu, conheceu,
este herói de rede mijada,
tronco amolecido,
sempre com as mãos cheias de vespas
para espantar os intrusos do seu reino
de aningas, passiflora escondendo
pegadas de jabuti,
carrapatos de sogra
e tiriricas copiando navalhas que decepam
(até mesmo) rola de mosquito?