sábado, 31 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITES VOAVAM



A Canoa Transformadora dos dessana
e os textos de Brandão de Amorim
prepararam o caminho
para a Cobra norato de raul Bopp.


A Cobra-Grande de Bopp
descobriu, então, nas cores do arco-íris,


o testamento das águas
e o pânico das raízes sacrificadas.
dessa Grande enchente – contam –
só restara uma frutinha de beira-rio
que os peixes comiam.
Mas os sons e a vigília do poeta
trouxeram de volta a floresta.
diminutivos remaram com ele
para as Terras-do-sem-Fim.

desses variados estupros
submergira o poema,
desencalhara-se a noite.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITES VOAVAM

(Gravura de Heloísa Pires Ferreira)


IV

eles sabiam, também, como dois incêndios
e uma enchente
tentaram desviar a humanidade
desse velho caminho.


Mas ele, esse caminho, no entanto,
vinha sendo repetido.


As lendas, contudo,
fechadas, embora,
na aparência de simples brinquedo,
conservam a polpa de outros tempos
e mostram, de vez em quando,


o flash inesperado dos seres e das coisas
que ainda esperam retomar os seus lugares,
continuar a viagem.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITES VOAVAM



III

Tendo-se formado a terra,
a semente de tabaco deitou-se para brotar
e dar folhas.


então, dizem, uma faísca do céu
torrou essas folhas de tabaco,
e da fumaça delas
surgiram visões e falares que imitavam o sapo,
a rã, o macaco, a lontra, os ventos
e o eco das cachoeiras...


Por isso, as tribos já não se entenderam,
enquanto alguns desses lugares
deixaam de ser vistos,
logo sumiram.
Todas as casas distribuídas pela Cobra
foram, assim, transformadas em vilas
e grandes cidades.


os filhos do trovão, porém,
preferiram guardar-se em seus lugares
e costumes antigos.
eles sabiam, de pele sofrida,
como aquela fumaça podia gerar pesadelos,
sonhos, televisões.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITES VOAVAM



Um pássaro errante,
uma singela borboleta,
ou qualquer coisa inexplicável,
podia ser koéra,
a sombra de um corpo
que ficou sobre a terra.


Aqui, também, os dias se casavam
como se fossem gente:
“nossos dias podem casar-se aos teus”,
diziam as moças uanana
ao jovem desconhecido.


e o cheiro do piripiri
se derramava no vento.

sábado, 24 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITES VOAVAM


II
Aqui as luas
se contavam com as mãos.
Um sopro cheiroso de fumaça
conquistava uma tribo,
adoçava uma guerra.
o cachimbo, também,
sondava o futuro,
avisava a presença de estranhos,
aguçava os ouvidos.
Quando alguém amava,
seu coração mudava de lugar.
A lua tinha fogo bonito,
iluminava por fora,
mas queimava por dentro.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITE VOAVAM

 Jorge Tufic



Aqui as luas
se contavam com as mãos.
Um sopro cheiroso de fumaça
conquistava uma tribo,
adoçava uma guerra.
o cachimbo, também,
sondava o futuro,
avisava a presença de estranhos,
aguçava os ouvidos.
Quando alguém amava,
seu coração mudava de lugar.
A lua tinha fogo bonito,
iluminava por fora,
mas queimava por dentro.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

QUANDO AS NOITES VOAVAM




BOLékA
A ONçA INVISÍVEL DO UNIVERSO
(Mitologia Dessana – Tukano)

I
Contam que foi assim.
As águas baixaram tanto
que os peixes subiram para a terra,
tomaram forma de gente.

Uma Cobra do tamanho do arco-íris
espalhou essa gente pelas margens do rio.
Antes da pupunha e do arumã,
antes do dia e da noite...

das seis coisas invisíveis, como ganchos,
cuias, bancos, maniva, ipadu e cigarros,
destacou-se a mulher,
criada por si mesma.

ela aparece no desenho dos índios
sorrindo para os trovões...

enfeites e objetos de uso,
também estavam prontos, ali.
e as casas eram de pedra tão fina
que luziam por dentro...


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

AGENDA 1965



24/25/abril
Um sábado repleto. Domingo agradável, bom para vilegiaturas. Mas eu devo permanecer em casa, repousando. Quanto às novas, a semana entrante estará cheia delas. Pela Rádio do Brasil já ouvi que 74 fora o número de readaptações do Ministério do Trabalho. Cinco processos descem transformados em diligência.


domingo, 18 de dezembro de 2011

AGENDA 1965



23/abril
O Caderno Madrugada de domingo próximo vai ser um sucesso. Na verdade, esse Aluisio é um gênio do movimento editorial. Sua fibra de lutador vem de Esparta, passa pelo Desfiladeiro das Termópilas, enfrenta Roma em Cartago, para vir encontrar-se comigo na Biblioteca Pública de Manaus, onde nos conhecemos.- Dois poemas em gestação. - Amanhecerei ou não Inspetor do Trabalho? Pelo sim, na segunda-feira daremos contorno mais nítido à Operação base 2. As coisas parecem estar sabendo acontecer. Segundo o Saul Benchimol, as coisas sabem acontecer.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

AGENDA 1965



21/abril


Sábado os nossos processos entrarão em pauta de julgamento. Operação-base à vista, a partir do Diário Oficial da União. Mantenho-me em forma, sem dar um passo que venha em prejuízo (ou em mais prejuízo) de minha família. Amanhã estarei confeccionando uma lista da OB, primeira etapa, que trata da preparação disciplinar.


domingo, 11 de dezembro de 2011

AGENDA 1965


20/abril

Já não tenho mais dúvidas: meus nervos estão em frangalhos. E a causa maior disso – minha mãe – parece longe da cura ou do cansaço. Pendulo entre o amor e o ódio, o fracasso e a vitória, a grandeza espiritual e o desejo de morrer para a bulha cotidiana, o mercado das vaidades, o teatro do egoísmo. Escrever um longo poema, desenhar um romance como faz o Rui Brasil, tentar uma novela, são planos antigos.- É hora de partir pelas ruas calmas da cidade, voltar ao batente.
* Dias sombrios penetram em nossos lares, trucidam as nossas esperanças numa democracia que começa com a legenda dos Inconfidentes: LIBERTAS QUA SERA TAMEN. Segundo LPS, estamos num País invadido pelas suas próprias Forças Armadas. Em todas as repartições públicas ali estão eles, punindo os civis em busca de promoções. Na minha, fizeram-me perder o direito à incorporação da Função Gratificada dois meses antes que este fosse adquirido. Teriam usado um colega meu para o ato, eventualmente no cargo de Delegado do Trabalho.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

ENTREVISTA

(óleo de Vieira da Silva)



Fonte: http://sambaquis.blogspot.com/2009/03/jorge-tufic-queima-roupa.html

1) O que é poesia para você?

Deve ser o substrato da primeira manhã do universo, algo que teria se fixado em minha retina nos albores de minha infância em Sena Madureira-Ac, lá pelos idos de 1935. Um cenário bucólico onde o rio, a mata, os igapés, violões à distância e o desafio dos cantadores nordestinos, soldados da borracha, tanto me deslumbravam quanto acenavam desafios que somente anos depois eu viria a aceitar, compondo o meu primeiro soneto. É um sentimento forte demais para uma criança que ainda não tinha amigos nem brinquedos.

2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Um iniciante no fazer poético deve perseguir os bons livros de poesia. Devorá-los em silêncio, de preferência contido diante de qualquer impulso ou chamado para os primeiros rascunhos, tarefa essa que deve ficar para quando dispor de muito papel para ser gasto. A ilusão de texto definitivo é um dos véus de Maia nessa fase de busca de estilo e de linguagem.

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Minha escolha de três poetas-modelos recai sobre Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Ferreira Gullar. O primeiro pela sua exuberância e riqueza de metáforas, o segundo pela simplicidade e o terceiro pela extrema economia verbal, sem abdicar do discurso lírico e da participação social.


Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira, Acre, a 13 de agosto de 1930. Viveu em Manaus durante 46 anos, dali saindo para morar em Fortaleza, em 10 de dezembro de 1991. É autor da letra do Hino do Amazonas, entre vários livros de poesia, ficção e ensaio, perfazendo os 50 títulos publicados. Pertence a várias entidades, entre as quais a Academia Amazonense de Letras, Academia Acreana de Letras e a Academia de Letras e Artes do Nordeste, sendo, além disso, detentor de inúmeros prêmios literários, com destaque ao Curso de Arte Poética, prêmio nacional da Academia Mineira de Letras para o ano de 2003. É Comendador da Ordem do Mérito Cultural do Estado do Amazonas, Cidadão Honorário de Fortaleza e colaborador do portal Cronópios da Internet. Foi objeto de uma primorosa reportagem do jornalista Jacques Menassa no jornal libanês Al Naher, já divulgado e traduzido para 80 idiomas. E-mail:

domingo, 4 de dezembro de 2011

POEMAS







Calendário
vida,
ainda se fosse possível
compreender esses códigos
gravados na cripta
dos teus avessos.


Então
as palavras já nasceriam
feitas,
a lã
não teria seus pastores,
nem os pastores
seus montes,
nem as montanhas
suas grutas de rapina,
nem o chão da terra
os rastros da serpente.


Nem os maus seriam chamados
para mudar o caminho
da história;
nem os bons haveria
porque a bondade
e o martírio
jamais se banham nem se repetem
nas águas do mesmo rio.




PROSPECÇÃO


Ninguém te vê.
Só os ventos te penetram.

Ninguém que esteja saciado
ou faminto
necessita de ti.

Neste exato sem nome
reintegra-te à nuvem que passa
e ao canto das aves.

o poeta, já o disse,
é um ser transparente.

Invicto. Desnecessário
entre porcos, hienas
e outros viventes

solidariamente incompletos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

VORAGEM

Voragem

Rostos que nunca vi, jacintos murchos
cujas sonatas frias me tocaram,
estes rostos não quero: eles são breves
no desfile das pálpebras cerradas.

Penso naqueles outros, familiares
rostos de toda vida. Cata-ventos
da rua ainda sem nome, alagadiço
porão da infância, arpejos e trigais,

dai-me a ver novamente ou mesmo em sonho,
estes semblantes nunca repetidos,
graves alguns, mas todos inseridos

na memória dos dias voluntários.
Cemitério, talvez, dessas lembranças,
todas, em mim, são rosas e crianças

SISTEMA

Sistema

O desenho de uma estrela
quantifica o papel
deslumbra o vazio.

A simplicidade
equaciona o absurdo.

Jorge Tufic

NA ACADEMIA DE LETRAS E ARTES DO NORDESTE

A foto registra o encontro de Jorge Tufic e Vicente Alencar, da Academia de Letras e Artes do Nordeste – ALANE e Academia Cearense de Letras – ACL, com Genuíno Sales. Nomes de destaque das letras de Norte e Nordeste, registrando-se que Tufic também pertence à Academia Amazonense de Letras

SONETO DO ERAM

Soneto do Eram (Jorge Tufic)





A moldura da infância eram pitangas
esquecidas das telas de Van Gogh.
As cercas eram poucas e distantes,
só meninos brincavam na paisagem.
Desses confins recortem-se os brinquedos
feitos a mão das sobras de meu tio,
construtor da cidade, mestre fino
cujas mãos eram bálsamo e verniz.
Manhãs e tardes vinham para o sono,
bichos falavam, bandolins ao longe
tinham letras, figuras, sentimento.
Deste passado há lendas e mistérios.
Guarda cada um de nós o que lhe cabe
saber das coisas que ninguém mais sabe.

TUFIC

Jorge Tufic






(Poética)

Comunicar-me? Antes seja com a vida
que me circunda, enigma sem palavras.
Depois o resto: a seca geografia
dos léxicos varridos pela fuga
dos centauros bordados pela chuva.
Me deixo então fluir secretamente
em tudo que me amplia ou me reduz
- meu corpo sobre lâminas imóvel
- minhas sandálias rotas de evangelho.
Agora, sim, de posse da linguagem
que me habilita, como o peixe ao mar,
comunico ao leitor possivelmente
algo mais do que sou - talvez aroma
de rosa a se cumprir num outro idioma.


Jorge Tufic
Sena Madureira - AC (1930)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

POEMAS

Sistema

O desenho de uma estrela
quantifica o papel
deslumbra o vazio.

A simplicidade
equaciona o absurdo.







Antologias


Poetas e girassóis
estão sendo moídos,

E o pó de seus dedos
clareia os moinhos.





Búzios


Por que se fala tanto
na solidão dos relógios?
Ainda mais solitários
são os búzios, que guardam
nas aurículas de cálcio
os estigmas da terra
os rumores do caos.
E assumem a contagem regressiva
do éter e do granito.





Calendário


Calendário
vida,
ainda se fosse possível
compreender esses códigos
gravados na cripta
dos teus avessos.

Então
as palavras já nasceriam
feitas,
a lã
não teria seus pastores,
nem os pastores
seus montes,
nem as montanhas
suas grutas de rapina,
nem o chão da terra
os rastros da serpente.

Nem os maus seriam chamados
para mudar o caminho
da história;
nem os bons haveria
porque a bondade
e o martírio
jamais se banham nem se repetem
nas águas do mesmo rio.

A POESIA RENASCE

A poesia renasce - Jorge Tufic
Blog de poesiawm :Poemas de Wender Montenegro, A poesia renasce - Jorge Tufic
A meu ver, com este novo livro de poemas, Wender Montenegro já pode se candidatar para uma segunda lista de poetas emergentes, sempre a critério de Fábio Lucas, cuja sensibilidade não perde o sucesso, nem aplaude o equívoco. E veja o leitor que da primeira lista de Fábio não constam nomes badalados; antes, pelo contrário, ela retira os quase desconhecidos da sombra e do nada. Uma página de ouro: Wender dedica um de seus poemas a Francisco Carvalho, no qual extravasa o cântaro de sua percepção diante das metonímias, do caminhar sob pedras, do cais imaginário.
Pintar de ferrugem cada luz e riso; semear gerânios sobre cada grito. Este é um dos pilares em que se assenta o desejo do poeta, ao fazer da linguagem convencional um código fértil do voo que fica torto apenas para fazer a diferença entre o som da harpa e as teclas do piano. Agora o milagre, sempre a nos trazer do hipotético passado as imagens do afeto: o Chevalier de Ipanema, ligado ao Roniquito, amigo de Vinicius de Morais, era filho de meu querido irmão maior Ramayana de Chevalier. Daí porque esta página da coletânea, Ipanema, traz-me de volta a mansão da Dias da Rocha, em Copacabana, onde teria nascido o genial Roniquito, cuja língua viperina ele herdara do pai, que manteve, durante anos, a "Cadeira do Carrasco", uma coluna do jornal "O Dia", do Rio de Janeiro.
"Casca de nós", ou seja, a proteção externa dos suplícios internos, poesia, enfim, é o título que faz destas páginas um abrigo perene aos mais belos poemas de quantos tenho lido, talvez, além de outros recursos, pela audácia metafórica de estrofes como essa, a primeira do poema intitulado "a lua é uma vaca": a lua é uma vaca do rebanho de Deus / a sua cauda eriçada / mordida pelo ladrar dos cães / assanha as marés. São muitas, contudo, as pausas de encantamento e reflexão contidas neste livro, embora, em algumas, persista ainda o vezo de tematizar o próprio fenômeno poético, como se disto pudesse fluir uma nova Castália de estremecidas benesses.
Nem por isso podemos negar que todos os poemas deste volume número 2 da saga lírica de Wender Montenegro, impressionam pelo modo contencioso dos versos, a preocupação drummondiana com o "estado selvagem" de nosso cotidiano, sendo, inclusive, louvável esta sua adesão aos ínvios atalhos do pântano manuelino de barros, sem deixar de lado o pântano cósmico da Amazônia, sob a flauta do uirapuru.
Poesia é metáfora, revelação, descoberta. Ela não pode servir a nada e a nenhuma causa que lhe tire essa força. A nossa força.

VORAGEM


Voragem

Rostos que nunca vi, jacintos murchos
cujas sonatas frias me tocaram,
estes rostos não quero: eles são breves
no desfile das pálpebras cerradas.
Penso naqueles outros, familiares
rostos de toda a vida. Cataventos
da rua ainda sem nome, alagadiço
porão da infância, arpejos e trigais,
dai-me a ver novamente ou mesmo em sonho,
estes semblantes nunca repetidos,
graves alguns, mas todos inseridos
na memória dos dias voluntários.
Cemitério, talvez, dessas lembranças,
todas, em mim, são rosas e crianças.

AGENDA 1965



19/abril

Reassumo na DRT-Am. Izabel ameaçada de transferência para o município de Itacoatiara. Esse Armando do Ministério da Agricultura, onde ela trabalha, procura encrenca. Nada a fazer, mas conto com a boa vontade do Ulisses que promete interferir junto ao Dr. Edson Rosas. - Volto a ter pesadelos. Agora são portas fechadas, tribunais, acúleos, torniquetes , vozes, pavor. Há muito que eles invadem minhas noites, destroem minhas colheitas, assassinam meus anjos.


domingo, 27 de novembro de 2011



17/18/abril

Deixo o prédio do jornal a zero hora, e saem comigo o Ulisses Azevedo e Aluísio Sampaio. Após muita conversa debaixo da marquise da Loja Singer, decidimos tomar o rumo do ¨Las Vegas¨, isto é, apenas eu e Aluísio, já que o Ulisses queria dormir. A chuva torna-se mais forte, insistente, dominadora. Ficamos no ¨Las Vegas¨até às 04hs da manhã.- O domingo irisado nas águas do Rio Negro me faz pensar no tempo perdido, sem o registro de um só verso num caderno à parte, dos incontáveis que tive. Depois do almoço, uma brisa errante do Igarapé me traz de volta o Carlos Drummond de Andrade que andava comigo:¨ Tarde dominga tarde, pacificada como os atos definitivos¨. Adaucto Rocha gostava de repetir : ¨Um dia escreverei meus versos calmos¨. Assim o faremos.


sábado, 26 de novembro de 2011

Nós, os quase extintos

Nós, os quase extintos



Nós , os quase extintos

(Na foto: Coelho Neto)

Rogel Samuel

Nós, escritores independentes, somos seres quase extintos na face da terra.
Nossa sobrevivência hoje se deve aos blogs e sites.
Somos todos nós, poetas, cronistas, romancistas, homens de letras, que fazemos da literatura nossa razão de ser, uma centena de milhares de seres, esquecidos da media, cuja produção continua firme, mas que raramente recebemos dos leitores a capacidade de “viver da pena” como se dizia antigamente.
Poucos conseguem viver do que escrevem no Brasil, como Coelho Neto, Humberto de Campos que sobreviveram do que escreviam. Até Machado era funcionário público.
Creio que hoje somente poucos, como Márcio Souza, vivem de direitos autorais.
Uma solução curiosa e inteligente foi a alemã. Pelo menos era assim na década de 90: as bibliotecas públicas cobravam uma pequena taxa de uso para o fundo de aposentadoria do escritor alemão, e as livrarias eram “obrigadas” a colocar os autores alemães na frente dos demais. Na vitrine.
No Canadá as livrarias emplacavam assim cada livro nacional: “ESTE É ORGULHOSAMENTE UM AUTOR CANADENSE”.
Por que hoje estou neste estado deprimente?
- Ontem eu entrei na Livraria Saraiva no Shopping Rio Sul e vi que os autores nacionais sumiram de cena. Só nas estantes laterais, marginais. Nenhum programa da tarde de domingo da TV homenageia um poeta, um cronista nacional.
Seremos seres em extinção?

MUDAMOS DE CICLO POIS SEJAM FELIZES

MUDAMOS DE CICLO! POIS SEJAM FELIZES

Cansei-me de ti, Natal,
mas nunca do Senhor Cristo:
não me convence o banal
que fazem de tudo isto.
Ainda assim, Feliz Natal
e um Ano Novo bem longe
desse triste carnaval.

Jorge Tufic

Poema-Coral das Abelhas: por que não?


Poema-Coral das Abelhas: por que não?


http://ofingidor2008.blogspot.com/


Tânia Du Bois



Que imensa gruta / é o homem / quando / fecha os olhos

Por que não reconhecer que ao ler o livro de Jorge Tufic, Coral das Abelhas, saltam razões para sentir que sua escrita é missão para enriquecer horizontes? Ou seja, que há passagem se abrindo onde encontramos poemas com certo mistério.

Vejo este azul, / mas vê-lo não basta. / Ele que vai do inseto /
ao forno das estrelas / – nas quais, universo, / devora-se e canta.

Por que não se entregar a essa leitura e sentir que autor e leitor dialogam e juntos despertam o pensamento ao coração, permitindo ouvir o silêncio? O silêncio e a rosa / perdem-se juntos. Tufic entrega-se de alma ao bosque, às árvores e às pedras e nos faz sentir o prazer tomar conta da liberdade, como expressão da arte.

As árvores do mogno, / a paineira / e a flor do mucunã, /
Testemunha que a pedra está grávida e sonha. //
Uma família inteira de pedras / conversa neste bosque.

Por que não desfrutar do livro que reflete sentimentos nobres e nos leva a pensar sobre o embalo do tempo, provocando a sensação de bem-estar e de saudade?

Do primeiro esquecimento / guardo a pitanga de chuva /
a neblina dos rios amarelos / e a bolsa de prata /
onde minha mãe também guardava / a solidão metálica / dos búzios.

Por que não reconhecer que Coral das Abelhas abre espaço na literatura, na certeza de encontrarmos nas imagens de Jorge Tufic o sonho a ser revelado através da sua palavra?

Poetas e girassóis / estão sendo moídos. //
E o pó dos seus dedos / Clareia moinhos.

Por que não confiar em sua imagem e em suas palavras, onde a leitura é situação de ação? Por que não dizer que a poesia de Tuffic traduz e perpetua a liberdade, o que a diferencia das razões e dos sentimentos? Por que não dizer que temos razões para acreditar que Coral das Abelhas é a leitura onde sentimos a brisa nos cabelos? Por que não?

Nos questionamentos residem as respostas, diante de um autor de imagens fortes, como refletido nas páginas do Poema-Coral das Abelhas.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

AGENDA 1965



16/abril

Tristezas e contrariedades neste Horto fechado para visitas. Dentro dele apenas eu e o número dos anos que vivi. Me ocorrem os versos de uma antologia de poetas ingleses: ¨Morrem moços os amados dos deuses¨. Infelizmente ou não, eu já me distancio da hipótese de ter sido amado pelos deuses. Ou então as labaredas que tinham para mim não foram suficientes para devorar-me como estaria previsto.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A SOLIDÃO DA ÁRVORE

                               A SOLIDÃO DA ÁRVORE

                                   MARCUS ACCIOLY

     Durante a Bienal da Floresta, do Livro e do Leitor – realizada no Rio Branco, Acre, pelo escritor Pedro Vicente – refiz uma viagem feita muitas vezes, há muitos anos. Após um frugal café da manhã no Inácio Pálace Hotel, o novo, pois o velho era Inácio Parece Hotel, eu e o poeta Jorge Tufic, a convite de um grande amigo, o boliviano Miguel Ángel Ortiz, saímos de Rio Branco, em direção a Cubija, no Estado de Pando, na Bolívia. As nossas memórias funcionaram de modo diferente: Tufic se pegou com o menino que ele foi no Acre, Miguel, com a sua vida na Bolívia, e eu, com o tempo de um arcaico Rio Branco, que se escondeu por dentro, ou por detrás, do moderno. Assim, chegamos à recente cidade de Capixaba e só no desvio para Xapuri, onde o rio Acre se encontra com o próprio rio Xapuri, é que nossas memórias se encontraram. Visitamos a casa, o Centro Cultural e o túmulo do seringueiro  Chico Mendes (que cantei no meu livro – Latinomérica) e logo voltamos à mesma estrada que obrigava Miguel a fazer do seu Honda um cavalo saltando os obstáculos.
     A paisagem exibia a devastação sem medida, desde que a borracha cedeu o seu lugar ao gado e o gado à incipiente cana-de-açúcar. Inúmeras castanheiras se aproximavam e se afastavam do acostamento, como uns resquícios da floresta de Hamelet. Cortei o nosso silêncio, sob o silêncio surdo do motor, com uma pergunta: “Quantos metros tem uma castanheira?” Tufic tentou medir, com o olho, enquanto Miguel respondeu: “Cerca de 40 metros”. Algo de doído ligava, em mim, a castanheira da floresta à castanheira da praia, ou amendoeira, quando Miguel prosseguiu: “Como é proibido, por Lei, derrubar castanheiras, elas ficam assim, separadas delas mesmas e da selva”. Observei aquelas árvores solteiras e percebi que algumas de suas ilhas verdes tinham secado. “Parece que elas escaparam, mas estão morrendo, não é, Miguel?” “Pois é, no conjunto elas tem o besouro que, através das plantas e dos cipós, faz a proliferação. Assim, isoladas, o besouro não consegue alcançar a copa e, aos poucos, elas vão morrendo”. “Qual é o tipo de besouro?” “É o mungangá”. “Ah, sei, o cavalo-do-cão, que também reproduz o maracujá rasteiro ou sobre as árvores”. Tufic riu um pouco e disparou: “Esse aí é um cavalo do Nordeste”. Percebi que estava entre um acreano e um boliviano e falei um trecho de cantiga do meu livro Guriatã – um cordel para menino: “Manda música, maestro, / moda má, música má, / mau mestre, muita munganga, / munganguento mugangá”. Tufic aproveitou a deixa e disse algumas cantigas do seu livro: A insônia dos grilos. A partir de então a viagem se tornou um recital.
     Depois que atravessamos a ponte e chegamos a Cubija, a cidade também já era outra. “Em Rio Branco, eu só reconheci o Rio Acre, acho que, de Cubija, se Tufic comprar todos os uísques que pretende, só vou reconhecer a alfândega” – eu disse e quase não aconteceu outra coisa, pois, além das bebidas, ele apenas comprou diversas camisas de seda. “O seu caso, Tufic, ao que parece, é de seda e sede” – eu provoquei e ele consertou: “Ao inverso: é de sede e de seda”. Aproveitei o seu “inverso” e, novamente, passamos a dizer algo “in verso” ou “em verso”. Miguel visitou o amigo e ex-governador do Estado de Pando, Felipe, que, com a esposa, Marilu, nos levou à parrilhada. Tufic quase não comeu, em compensação, esgotou, sozinho, mais do que um quarto de uma das garrafas.
     De volta, eu disse a Miguel: “Comprei tanto bagulho, que tive de comprar uma mala”. “Pois é, Tufic já leva a dele, como um camelo”. Tufic não respondeu. Voltei-me do banco dianteiro e Miguel percebeu pelo espelho que Tufic sonhava. Tirei a máquina da sacola e fui fotografando aquelas castanheiras tristes, da beira da estrada, como se quisesse que elas não morressem. Para cada foto, Miguel diminuía a velocidade. “Era bom que fosse assim, Miguel, que tudo passasse, ficasse para trás, mas as árvores estão na máquina e na memória”. “Pois é, e o pior é que ficarão mais na memória do que na máquina”. Tufic acordou de repente e perguntou à-toa: “Vocês estão falando de máquina ou de memória?” “Da máquina da memória e da memória da máquina, Tufic” – eu disse, enquanto Miguel desviou de um buraco e Tufic, com a vantagem do tombo, regressou ao seu sono, ou seu sonho, de poeta.    

MARCUS ACCIOLY é poeta. E-mail: marcusaccioly@terra.com.br
          

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

BIENAL DA FLORESTA DO LIVRO E DA LEITURA DO ACRE (Ignácio de Loyola Brandão)



BIENAL DA FLORESTA DO LIVRO E DA LEITURA DO ACRE (Ignácio de Loyola Brandão)

 "Não abrace táxi, junte com cambito"

RIO BRANCO -  Se alguém pedir: por favor, pode me destentar este cheque, e você souber que o sujeito é farinha de cruzeiro, destente. Se tiver dinheiro, tudo bem, é tarefa que você pode realizar sem abraçar táxi. Vai ser como juntar com cambito. E se avistar um homem usando bosoroca não estranhe, ele é homem mesmo. Ao ouvir “cuida, menina”, não se preocupe. Agora, saindo por ai, cuidado com as peremas. Grande e vasto é o Brasil, digo sempre, sem medo do clichê. Porque é mesmo.

Felizmente, viajar por causa da literatura tem me ajudado a conhecer o país e, principalmente, descobrir as múltiplas variações de nossa língua. Vou incorporando aos meus caderninhos os vocabulários locais, além de trazer dicionários regionais. Destentar é descontar. Abraçar táxi é trabalho difícil (diga tachi e não táxi), é sofrer. Bosoroca é uma bolsinha onde se carregam cartuchos. Cuida, menina significa se apresse, avie-se! Farinha de cruzeiro é gente boa, confiável, enquanto juntar com cambito é coisa fácil de fazer. Peremas são mulheres dadas, oferecidas, assanhadas e até mais do que isso.

Aos dicionários de gauchês e e de pernambucanês, já acrescentei o baianês e o cearês. Agora tenho o acreano, do Gilberto Braga de Mello, delicioso.  Gilberto, como todo acreano, firma pé. Apesar da reforma ortográfica, os acreanos, com E,  se recusam a se tornar acrianos, com I. Que se mantenha o E, clamam, indignados. Ouçamos, minha gente, essas vozes distantes, elas não estão separadas do Brasil.

Eu tinha saído de minha palestra no auditório da Filmoteca que está acoplada a Biblioteca Estadual, uma preciosidade encravada no centro de Rio Branco, a capital. Um edifício moderno, funcional, com grandes janelas, muita luz, internet com acesso grátis, chão sofisticado com ladrilhos hidráulicos, originais, vindos do antigo prédio que havia no lugar. Uma das mais belas bibliotecas que vi no Brasil, opinião compartilhada por um especialista de gabarito, José Castilho Marques Neto, que comanda o Plano Nacional do Livro e Leitura e, encantado, não se cansou de fotografar tudo. Os acreanos (com E) estão dando uma lição ao Brasil em matéria de biblioteca.

A biblioteca fica de frente da praça onde aconteceu a primeira Bienal da Floresta do Livro e da Leitura, nome poético, para um evento ocorrido em 35 stands de livrarias e editoras, alem do uso de auditórios por toda a cidade. A idéia da Bienal foi do jovem governador Binho Marques que convidou Pedro Vicente Costa Sobrinho, um potiguar naturalizado acreano, e Helena Carloni, que dirige a bela (repito) biblioteca. Juntou-se a eles Daniel Zen, presidente da Fundação Cultural. E tudo aconteceu.

O homenageado foi uma figura singular e sempre bem-humorada, o contador de histórias e artista plástico Francisco Gregório Filho, cuja figura lembra um patriarca com sua barba branca e magreza de um asceta. Um homem que há meio século batalha pela cultura acreana, tendo sido várias vezes presidente da Fundação Cultural do Estado. Acreanos são Chico Mendes, Marina Silva, Armando Nogueira, João Donato, Glória Peres. Cerca de 40 escritores agitaram a semana, entre eles Luiz Ruffato, Marcus Acioly, Marcio de Souza, Fernando Monteiro, Luiz Galdino, Nelson Patriota, Jorge Tufic, Fabio Lucas, Homero Fonseca, Jomard Muniz de Britto, Alexei Bueno, Gilberto Mendonça Telles. Tudo bancado pelo governo. Clodomir Monteiro, presidente da Academia Acreana de Letras, nomeou a Fabio Lucas e a mim membros correspondentes da AAL. Somos de lá e somos de cá. Academias se abrem umas as outras.

“Olhe para cima, verá isso apenas aqui,”dizia Val Fernandes, fotógrafa que dia e noite, sem parar, registrou cada momento, cada pessoa, cada gesto na Bienal. Às margens do rio Acre, um céu turquesa, de filmes orientais, numa cor que nenhum impressionista conseguiria produzir, estendia-se avassalador sobre nós,  enquanto cervejas geladas e empadas enormes chegavam na mesa deste bar do Mercado Velho, construído em 1929, e recém restaurado. Para um lado, as águas seguem em direção ao rio Purus, que penetra no Peru. Pelo outro, vão em direção à Bolívia, marcando fronteira em longa extensão. O poeta Naylor George, apaixonado pela sua cidade, conhecedor de cada canto, cada prédio, cada rua, cicerone dedicado, me diz que daqui é mais fácil chegar ao Machu Pichu que a São Paulo. Aqui estamos mais próximos dos Incas e Maias, se quisermos nos exceder na imaginação.

No rio, lá embaixo, catraias navegavam de uma margem à outra. Custa 50 centavos a travessia. Foi lembrado o tempo em que havia dois cinemas na cidade, um no Primeiro, outro no Segundo distrito. Um dos ricos, outro dos pobres. Em Rio Branco pode-se dizer que, como em Paris, há rive gauche e rive droite. O filme era o mesmo nos dois cinemas, as sessões começavam com diferença de horários. Assim, terminado o primeiro rolo em um, o catraieiro Goiaba, figura popular, agarrava a lata e corria, atravessava o rio, no braço, a remo, entregava no cinema. A sessão inteira era ir e vir. Dias de enchente, águas revoltas, sofria o pobre Goiaba. Dizem que ele nunca trocou um rolo.

Depois de visitar o mercado de verduras e frutas (que nada tem a ver com o mercado antigo, tombado), onde pode-se comprar a banana comprida (cada uma tem entre 30 e 40 centimetros), a farinha de mandioca amarela, a pimenta ou castanhas do Pará preparadas artesanalmente, saborosas, atravesse para o Segundo Distrito e percorra as casas e lojas restauradas que pertenceram aos sírios libaneses, primeiros comerciantes na fundação da cidade. Caminhe pelo calçadão à beira rio cheio de bancas de flores amazônicas, entre elas a Uirapuru e a Caatinga de mulata e de mangueiras centenárias  tombadas pelo Patrimônio.

Aqui nos idos 900 ancoravam os batelões e as chatas que traziam mercadorias da Europa para os ricos (as mulheres usavam vestidos com alças de ouro), que freqüentavam o fechadíssimo, Tentamen, clube da elite, restaurado em todo seu esplendor e hoje é alugado para festas e eventos. Ainda existem exemplares gigantes do Apui, arvore cuja seiva os índios usavam para colar ossos fraturados. Vá até a gameleira imensa onde a cidade se iniciou. Diante do rio, o bar do Grassil Roque com um caldinho de feijão fervente de explodir a língua. Ao lado, na Varanda do Porto, do Telmo, bebe-se cerveja em mesas quase lançadas ao espaço sobre o rio Acre.

Em frente, uma das dezenas de Casas de Leitura (com centenas de poesias pregadas nas portas e paredes) que a cidade possui, que acolhe principalmente crianças. Além dessas casas, pelos parques espalham-se os Quiosques com bibliotecas que o povo utiliza a granel nos finais de semanas, feriados, fins de tarde. Admirado com a noite fresca? São os ventos que sopram da Cordilheira dos Andes, na crendice popular.





Crônica de autoria de Ignácio de Loyola Brandão publicada no Jornal Estado de São Paulo,  dia 18/06/2009.


AGENDA 1965


14/abril

Paguei ao Banco Comercial do Pará. Crédito aberto. Levo a Eliana ao SESC-SENAC. Assistimos a um filme francês: ¨O rebanho de lobos¨. Entro de serviço no jornal.

15/abril

A luta no Vietnam. Sinais artificiosos do CTA-102, captados pelas nações que se dizem amantes da paz. A Semana Santa, o exagero, a miséria. Afirmam os jornais que o mundo ficará pasmo quando tiver contato com a super-civilização de um planeta que existe em nossa galáxia, cujos acenos periódicos alarmam a população da Europa.
* Como se costuma dizer, há leituras em todos os níveis. Mas, creio, não em todas as posições, a menos que raramente. Daí, pois, adiar-se, vezes para sempre, a leitura de certos livros que não ficam a depender, unicamente, da nossa experiência de vida, senão também da leitura de outros textos que lhes tenham servido de base. Em Jung, no entanto, desde que se tenha alcançado os 49 anos de idade, o próprio texto de suas memórias ou confissões é que toma a iniciativa de abrir-se ao leitor, revelando uma série de conteúdos que, diga-se de passagem, já estavam intimamente ligados ao vago mundo de suas reflexões. No meu caso particular, esta confissão do mestre me toca a sensibilidade:¨Quanto mais se acentua a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumenta meu sentimento de parentesco com as coisas.¨

domingo, 20 de novembro de 2011

Para L. Beethoven

Para L. Beethoven


Meu corpo entrego ao teu silêncio de água,
aos arcos de tua música pairante,
onde as vozes da terra, no seu pasto
de nuvens, resplandecem como lágrimas.
Não sinto mais feridas nem abalos.
Meu sangue jorra lento dos violinos.
E uma luz crucifica-me nos ares
de chuva, por tuas rosas lapidados.

Estas rosas que alteram nosso dia,
e abrem na tarde a súplica dos dedos
que se libertam, pássaros, do barro.

E tocam, com sua forma torturada,
a flor do azul contida e descontida
neste adágio de pedra e de luar.

sábado, 19 de novembro de 2011

HAICAIS

Foto de LjaljaKuznetsova

Haicais, quando os faço,

são vistos como imprevistos

fenômenos do espaço.

AGENDA 1965


09/10/11/abril



Financeiramente arrasado.
* Com minha filha Eliana na matinal do Cine Guarany.
* Em sonho eu tentava explicar ao Pe. Nonato que, lá um dia, quase todos os nossos contemporâneos terão ido passear; com eles a perfídia e os escassos momentos de grandeza humana.
* Deixo a redação do jornal e tomo o rumo da porta. A noite está deserta. Alguns cães ainda esperam encontrar restos de comida para uma ceia ao luar. Guiam-se pelo instinto, farejam, perseguem ternamente a sombra dos boêmios. A caminho de casa eu sinto a presença de um que me segue, como se estivesse certo de que nós precisamos um do outro. Mas sabe que estou chegando, retorna.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O INCA

O INCA

Jorge Tufic

Deu-se que amanhecia. Onde? Para aumentar seu espanto, como nunca antes se havia mirado ao espelho de alguma coisa, depa­rava-se ele com as estranhas visões de uma cidade que ainda tinha habitantes. E o mais surpreendente: eram figuras de cera, mas dotadas de boca, pernas, cintura e barriga. Não podiam, contudo, enxergar o que lhes viria pela frente, embora o tempo anterior de suas vivências consternasse pela visível melancolia de seus trajes provisórios.
Falavam, quem sabe, um dialeto formado pelas últimas silabas de Ur, ora lembrando os bipes da Internet, ora tomando por empréstimo os falares dos Índios sonhados por Curt Nimuendaju. Chegara a ver um menino seguido por um cãozinho; e, mais além, um ca­sal de estátuas cujo autor vendia balas de chocolate a turistas de um planeta que, há milênios, chamava-se Terra.
Ladrões de metáforas poéticas davam conta de suas penas cultivando magnólias sobre lajes de basalto. Os amigos do bar, pensara, devem ter-se aposentado das praças, e a rua que procurava estaria agora em repouso, talvez, no lixão municipal das atrocida­des humanas.
Mas ele tinha um encontro e não deixaria por menos localizar a padaria do bairro X, ao lado da qual se instalara um cinema para deficientes totalmente irrecuperáveis, já que as imagens projetadas na tela nasciam de impulsos magnéticos e eram devolvidos ou processados numa central, de filtros solares construída em Macchu Picchu, durante o massacre da colonização espanho­la.
Macchu Picchu. Como voltar agora à cidadezinha de Lusara, com tantos séculos de atalhos, labirintos negros de breu, e es­sa chuva de gotas semelhantes a pepitas de ouro líquido modelando-lhe o corpo, destruindo-lhe a alma?

DESAFIO

DESAFIO

Jorge Tufic

– Estou mais alegre que a rua
nos dias de carnaval;
riso tamanho da lua,
longe do bem e do mal;
quem for mais feliz no mundo
me fale de igual pra igual.

Todo balão muito cheio
fica fácil de estourar;
gosto mais desse entremeio
não sendo terra nem mar.
Felicidade é uma dança
que poucos sabem dançar.

Pois eu lhe digo que estouro
de ser feliz quando quero;
gargalhar é o meu tesouro
soltar peidos meu bolero;
sou dono de mar e terra
tenho tudo e nada espero.

Assim foi que Zé Gamela
se emparelhou com o Zambeta,
cada qual numa janela
a olhar o mesmo planeta;
só que um tocava flauta
e o outro toca punheta.

Dalva se chamava



VARANDA DE PÁSSAROS


Rogel Samuel

Depois de 40 anos, consigo "Varanda de pássaros", de Tufic,

Um clássico.

Logo de saída, ao relê-lo, sinto que Dalva era seu nome, uma cidade, o orgulho de uma cidade.

Dalva, a estrela. O inevitável.
O poeta ainda jovem, muito doente, de amor de poesia de lua, no fogo da paixão febril, como Dalva no peito, a consuimia.

Dalva se chamava.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

AGENDA 1965



07/08/abril

Dormi até bem tarde. O ferimento no pé cicatriza, com rapidez. Na sala, o Maciel executa um desenho para a Campanha de Alfabetização de Adultos.
* Deparo-me com o João Batista na redação de ¨O Jornal¨, e, pelo aspecto, me traz boas-novas. Com efeito, diz-me ele que os nossos processos já vão a plenário na semana que vem, segunda-feira. Dali seguirão em forma de Decreto à Presidência da República. Pelo visto, a ¨operação base¨ poderá ser iniciada em maio deste ano. Problemas urgentes deverão merecer prioridade, abrindo-me as portas do mundo. Deus é louvado em cada passo desta longa e angustiante espera pelos nossos direitos. São três anos!