quinta-feira, 28 de novembro de 2013

As noites voadoras de Jorge Tufic

 
      

As noites voadoras de Jorge Tufic

Rogel Samuel*


Na poesia de Tufic tudo voa, são estrelas, cintilam caminham no céu daquela Amazônia mítica, luas várias luas que se contam com as mãos, narrativas dos nossos mitos, viagem dos Dessana, canoas de cristal, transformadoras, estórias e sabenças de quem vive sozinho no meio do mato, faro de onça, muirakitãs da lua nua, que se despe na entressafra do amor,

despenca uma folha
e o verão estremece

Passarinhos que ouvem nossas conversas, na terra macia escrevemos nossos textos (nunca se sabe, tampouco, – porque se chama de vazio – o espaço da natureza).

Que será de ti, Amazônia? Cavidades, rangidos

Subitamente sou árvore,
flor, pássaro e livro.
Um livro cujas páginas
tomaram a cor e o risco
da música e da pedra.

..........
cinzel que não fere,
da jaula inconsútil.


(Texto escrito com “Quando as noites voavam”, de Jorge Tufic – Fortaleza, 2011.
Ele é o grande cantor da Amazônia!)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Quase teatro – puro cinema

Quase teatro – puro cinema

Caio Porfírio Carneiro


Almir Gomes de Castro lança um livro surpreendente – Kuriquiã –,biografia romanceada, de sopro épico. É a vida, na região acreana do Alto Purus, de imigrantes da família do brilhante poeta Jorge Tufic, que lá abriu os olhos para o mundo e viveu a infância e além dela, transferindo-se depois para Manaus. Vale-se Almir da primeira pessoa, como se o poeta contasse essa odisseia dos que vieram de longe, além mar, nordestinos e habitantes da selva, com os seus segredos, sustos, dura realidade e lendas, em amostragem um tanto teatral e cinematográfica. Surpreendente como o autor praticamente tudo transferiu para o campo das falas, exsurgindo disto uma visão bastante impressionista das personagens e da região. O narrativo, com isto, comanda a história, e o descritivo tornou-se quase elíptico, sem perder nenhuma qualidade criadora ou desvirtuamento da verdade. E o curioso vai mais longe: o poeta Jorge Tufic, personagem principal, narrador, pouco aparece, mas está presente nas entrelinhas como uma sombra quase palpável, e o drama e a trama da história fogem do caminho estreito e se ampliam na vida das personagens e da região.

Eu sabia palidamente das origens acreanas do grande poeta Jorge Tufic. E agora, neste livro, vi, palpitando, em que mundo ele nasceu, cresceu e absorveu desse mundo real e encantado, sem perder os liames seculares dos seus. A ótica narrativa abre-se muito, com suas tramas difusas e ao mesmo tempo unas, trazendo ao vivo a vida das personagens, e ele, o poeta, parecendo se resguardar, não fica em segundo plano, eis que é um espelho acompanhando tudo de perto.

A ascensão do poeta na vida, em Manaus, e projetando-se nacionalmente, vem em fulguração rápida. O livro é um recado: este é o seu passado, estas as suas raízes, laboratório da sua caminhada. E aqui chegou com nova arte poética, respeitada e admirada no país inteiro.

Este livro é cinema. Daria um belo filme.

Almir Gomes de Castro soube treliçar e destreliçar os cordéis para escrevê-lo. E o poeta é mais do que merecedor desta quase prece.

É tão fácil tirar a prova... Bastará ler o livro.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Monte Mor e Haicais

 
   



Monte Mor e Haicais





Jorge Tufic


Dois livros foram lançados pelo escritor e poeta Almir Gomes de Castro: Haicais, poesia, e Monte Mor, romance.

Quanto aos haicais escolhidos ou selecionados por mim, dentre centenas de autoria de Almir Gomes de Castro, preferi os guilherminos ou semiguilherminos, desprezando aqueles que mais pareciam trísticos, ou seja, simples poemetos compostos de três versos, muito comuns em língua portuguesa, desde os seus primórdios. Pois não foi à toa que o mestre Guilherme de Almeida, ao traduzir haicais japoneses e ao deparar-se com o ideograma, conservara a métrica da composição original, mas, sendo isto pouco para fazer a diferença, introduziu-lhes rimas capazes de aproximar das nossas as mesmas dificuldades que os famosos cultores do gênero teriam encontrado ao traçarem o desenho de suas metáforas, tendo em vista o momento poético ou do êxtase místico imposto pela beleza singular das estações de cada ano. Fada-se, portanto, ao limbo o trístico de nosso idioma metido a ser um haicai de língua portuguesa, devendo ficar, para sempre, o que toma esta forma:


Por onde passou
O vento do catavento
O sonho ficou.

Quanto ao romancista de Monte Mor, pertence ele à nova geração de escritores do Ceará, podendo estar entre os mais jovens, pela técnica, e os mais velhos, pela inesgotável temática da vida sertaneja propriamente dita, quando aprofunda a história de Lampião e do Padre Cícero, ou torna aos mistérios de velhas localidades interioranas, a exemplo da austera Baturité das primeiras décadas do século XX. Com pinceladas breves, estilo sóbrio e narrativa meticulosa, dá-nos o autor, neste romance, uma dramática sequência de fatos históricos e sociais bem próximos daqueles que teriam sido legados ao esquecimento, mercê da cortina de mistério que ainda hoje se ergue entre a ficção e a realidade.

São dois livros de leitura fácil, agradável, poética, novelesca e moderna, com todos os ingredientes para substituir horas de televisão pelo contato humano da palavra, da cor, da rima, do verso, da história viva tirada de dentro de nossa própria História. E mais não digo, a fim de não estragar a surpresa que vem por aí.

sábado, 23 de novembro de 2013

Tufic ao sopro do Zéfiro

              


POR
Francisco Carvalho


                       


Tufic ao sopro do Zéfiro


 

Recorro a um truísmo para dizer que o poeta Jorge Tufic já se tornou numa figura legendária da poesia brasileira do século passado e do milênio que se inicia. Críticos e resenhadores do país, independentemente de tendências e opções estéticas, não têm negado aplausos ao desempenho Francisco Carvalholiterário deste autêntico mestre da artesania poética, acreano de pais libaneses, nascido no final da terceira década do século recém-findo.

Numerosos livros de poemas e de ensaios enriquecem sua vasta bibliografia. Jorge Tufic é desses autores que exprimem, através do poema, sua paixão avassaladora pela beleza e fugacidade da vida, pelo legado existencial herdado de seus antepassados mais remotos. Profundamente ligado às raízes, sem renunciar à fidelidade e aos apelos do tempo presente, o poeta insinua-se nos meandros das realidades do cotidiano para se encontrar consigo mesmo, com as razões ou sem-razões do poema. Ou para confessar em versos como estes, repletos de evocações do seu rio tutelar: “Menino ainda, escolhi o meu caso./ Segui uma nuvem que vinha das cabeceiras” (Zéfiro com Soneata Barroca, Realce Editora, Fortaleza, 2004).

Mestre incontestável do soneto, essa teia mágica que ainda intriga os pretendentes de Penépole, Tufic passa incólume pelas “perpétuas grades” (Augusto dos Anjos) dessa autêntica jaula medieval, com certeza uma das mais polêmicas de todas as modalidades de poemas já concebidas pela fantasia humana. Os sonetos de Jorge Tufic são de uma leveza prodigiosa, e nisso reside um dos segredos de sua modernidade.

(Oportuno lembrar que o texto literário produzido sob o signo da norma culta é, necessariamente, terreno propício ao surgimento de numerosas figuras de sintaxe e/ou de pensamento, das quais é pródigo o idioma dos nossos ancestrais ibéricos. Essa opulenta nomenclatura de tropos faz parte do acervo arqueológico do próprio idioma, razão pela qual, na maioria das vezes, eles entram compulsoriamente na poesia ou na ficção sem que os autores tenham contribuído diretamente para isso. Seria utópico imaginar que a verdadeira poesia dependesse, aleatoriamente, de eventualidades ornamentais. Não seria absurdo imaginar que esses arquétipos podem ser encontrados até mesmo numa tediosa exposição de algum balancete sobre lucros bancários).

Poeta de muitas andanças pelo Brasil e outras paragens do mundo, espírito inquieto num corpo de beduíno, Jorge Tufic assimilou imagens e recordações dos lugares por onde passou. De tal que em seus poemas arrulham pássaros e regatos, rios e lagos que escondem mistérios, lendas de sereias e visões encantadas, duendes feiticeiros e outros seres fantásticos que habitam nos troncos diluviais da floresta amazônica. Além de colméias dos tempos da criação do mundo, construídas de fragmentos de diamantes lapidados. Sem falar nas flores exóticas cuja beleza e perfume enfeitiçam os homens, peixes, insetos e animais que se acasalam ou hibernam nas grutas, à espera de que os estios acordem no fundo dos lagos.


Jorge Tufic, foto de João Justino

No primeiro poema de Zéfiro, Tufic já celebra o rio tutelar: “Este rio profundo, mas / nem tanto como a noite e as palavras / que dormem nas conchas do lodo”. É a saga do menino que vai descobrindo paulatinamente o mundo poroso das águas. “A incansável descoberta dos mapas, / nomes que foram sendo trocados, / passaportes vencidos.” A referência a passaportes sugere que o menino já trazia, dentro de si, as encruzilhadas, rotas e caminhos que deveria percorrer ao longo da vida. Ao ouvir predição de pessoa estranha, segundo a qual haveria de ser famoso, deixou “que o menino ficasse ali, / para sempre / coberto de vagalumes”. O memorial do menino prossegue em seu lirismo minucioso: “Os morcegos de Sena Madureira / tinham asas de eucalipto. / Quando estas árvores foram derrubadas / eles passaram a dormir nos alpendres. / E a insônia tomou conta das janelas”. O poeta confessa que nasceu numa rua chamada Amazonas. “Ficava perto do rio / perto do mercado. / Era a rua mais perto do mundo”. A rua em que o menino dialogava com o futuro poeta nas esquinas do sonho.

Por esse tempo, Tufic contemplava “A noite pública / sobre telhados particulares”. Zéfiro com Soneata Barroca termina com o poema XIX. Um soneto no qual o poeta lavra esta inscrição para os tempos vindouros: “sou formiga, sou fonte, sou texugo, / larva na sequidão dos necrológios. / Quem foi ao bosque, livre-se dos ódios / que outros lugares roubam-me do estudo; / ali estão nossos ossos e o veludo / das luas sobre tantos episódios”. Restaria uma alusão especial aos treze sonetos de que se compõe a Soneata Barroca. Trata-se de poemas da melhor qualidade, seja pelos aspectos formais ou pela clarividência com que o poeta celebra as metamorfoses do cotidiano, onde muitos de nós naufragamos naqueles “instantes sem razão e sem verso”, a que se refere Carlos Drummond de Andrade.

Sempre imaginei que os verdadeiros poetas são bons em tudo o que fazem. (Deixo aqui a ressalva de Horácio, em A Arte Poética, segundo a qual até mesmo o bom Homero tem o direito de cochilar algumas vezes.) Pouco importa que escrevam poemas rimados e metrificados ou poemas em versos livres, sem medida e sonoridades coincidentes. Na épica, na ode, na elegia, no epigrama ou no madrigal, o verdadeiro poeta sempre diz a que veio. É o que acontece com Jorge Tufic, que oportunamente publicou plaqueta à maneira dos repentistas nordestinos ou dos chamados folhetos de cordel. Com o mesmo “savoir-faire” com que escreve poemas eruditos, onde celebra o amor, a vida e a morte sob o viés metafísico, Tufic canta, em tom de menor intensidade, diversos outros assuntos ligados à natureza, ao ser humano e aos bichos de modo geral. Um exemplo de sua verve nessa vertente caudalosa da poesia popular: “Ao som, portanto, maduro, / dessa batalha encourada, / visto a roupa do vaqueiro, / seu gibão, sua toada / e curto o couro dos bichos / que morrem de madrugada”.

Tufic está por dentro dos saberes e feitiços dos pajés, pessoas dedicadas às reflexões e estudos dos fenômenos da natureza que se revestem de conotações sobrenaturais. Segundo o poeta, em Quando as Noites Voavam, “os pajés costumam ver uma escada que tem a ponta no setestrelo e a base na fonte sagrada que alimenta as reservas do líquido primário” (p. 43). Logo mais adiante, esta informação para iniciados em estudos amazônicos: “Pelas bordas da fonte, rãs se petrificam de olhos nos mosquitos. E a linfa, de alegre, não pára de cantar”. Desconfio que o engenhoso Tufic teria sido eminência parda de algum pajé para tratar de assuntos relacionados com bruxarias e outras coisas desse tipo. A segurança com que trafega nos labirintos e mitologias da selva lhe confere o diploma de pós-graduação nessa área inacessível ao comum dos mortais. Vejam a intimidade com que fala o poeta dos poderes da “Cobra Grande, que ajuda o boto a entrar nas moças surdas aos conselhos do pais”. Pelo discurso poético de Tufic, a gente fica sabendo que “os filhotes da Cobra Grande deixam a barriga da moça” que se deixara seduzir... “A água vai subindo, engole a casa. Nas palhas que submergem, cobrinhas arrastam seu avô para o fundo das águas”. Surrealismo à flor da pele.

 

Francisco Carvalho

da Academia Cearense de Letras

O SONHO É NOSSA CHAMA

 
 
Jorge Tufic


Este novo livro do grande poeta cearense Francisco Carvalho surpreende pela totalidade poética, liberta afinal de separações estróficas, quando traz de volta aos leitores sonetos já publicados e dez inéditos, miniaturas essas que, por sua vez e pelo simples motivo de que as rimas chegaram ao seu máximo limite toante ou consonante, extrapolam dos cânones tradicionais, sem, com isso, deixarem de inventar e reinventar a utopia de Petrarca, Camões, Jorge de Lima, entre tantos outros, nunca em desnível com os mais ferrenhos cultores desse gênero de arte, tão brasileiro quanto universal. Nota-se aí, por outro ângulo menos visível a quem não acompanha, de perto, a trajetória do autor, que a maioria deles passara pelo crivo de uma releitura crítica, e foram selecionados.

Em “Algumas Palavras”, nos explica o mestre: “Não adianta citar nomes, mas é sabido que os verdadeiros poetas estão honestamente empenhados na produção de uma arte poética que se distingue pela universalidade da linguagem e pela prática de uma forma mais flexível às exigências da modernidade. Escrevendo sonetos ou poemas em versos livres, revelam qualidades literárias que os consagram à admiração da posteridade. Afinal de contas, se o soneto está realmente fora de moda, ultrapassado na forma e no conteúdo, por que tanta gente continua a escrevê-lo com tamanha convicção? Deve existir alguma explicação para isso. Há quem supunha que a preferência pelo soneto seria uma forma de opção pelo caminho mais fácil. Será?”

A prova em contrário, ou a resposta cabível, nós vamos encontrar ao longo dessas 98 páginas da excelente coletânea de 170 sonetos éditos e 10 inéditos, dando-nos estes a leveza de uma nuvem-personagem que nos encanta e tira o amargor da vida inteira através de uma dança em que vai se detendo, ora como “pombas que voltam do exílio”, ora em diversos lugares da infância do poeta, ora ainda a esperar numa esquina, desdobrando-se e metamorfoseando-se como coisa real ou “engano dos sentidos”. “A Nuvem e o pássaro”, aliás, já foi título de um outro livro de Francisco Carvalho.

Tudo para indicar, se é que deva ser necessário, o que logo sobressai da primeira impressão de leitura, ou seja, a unidade quase palpável do texto, agora tomado na sua totalidade, e mais que isso, a emoção que transmite de um roteiro estético carregado de símbolos e metáforas que também incursionam, mas sem transbordamentos ou evasivas, pelos domínios da metalinguagem.  Francisco Carvalho consegue ler a si mesmo do jeito que gostaria de fazê-lo com os outros. E atinge o máximo. Parabéns, amigo!

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Solo das chuvas

Solo das chuvas

Jorge Tufic


Quem o disse? Pelo menos oito palavras se enraízam por muito tempo na escritura de cada autor, seja ele poeta ou ficcionista. Às vezes até para sempre. No caso da poesia, são as chamadas palavras-chaves, ou constantes, usadas para expressar ou dar forma aos sentimentos pares, que nelas encontram as nuances, o toque e o rastro dos objetos cativos. Dançamos a dança de Zorba: o fogo, de permeio, entre a vida e a morte. Quer seja a nossa, cotidiana e pertinaz, quer seja a dos laços afetivos intimamente difíceis de aceitar, a menos que outros se interponham, lhes dando continuidade.

Em José Telles, fenômenos como estes preenchem os vazios de sua lírica, ao mesmo tempo em que alimentam a notória evolução de sua arte maior, cada vez mais dedicada, absorvida e entregue à economia verbal, ao minimalismo ou momentos-monumentos revelados ao apelo das metáforas, sobretudo aquelas por conta das quais a necessidade do discurso pertence aos ecos de sua própria leitura.

Eu entendo que o mistério lunar desse modo, no autor deste livro, não abre mão do silêncio como a órbita de suas constelações temáticas. O silêncio-personagem, confidente ou antagônico. O silêncio da culpa com suas “goteiras de saudade”. A paisagem com suas tardes viúvas. O silêncio das fraturas em tempos de aceitação. A pedra e o sangue das raízes; a dor e o pânico nos sargaços da idade madura; lembranças, fugas, cicatrizes, brindes, contrapontos, falésias, alpendres, águas paradas; o azul e o tropel, também silencioso, das horas insólitas.

Poemas longos e bem sucedidos completam o volume, numa prova a mais de que fôlego e talento poético não lhe causam fadiga.

Pós-modernidade, revisitação aos parâmetros surrealistas, abstracionismo ou a súmula de tudo isso para obter a essência do canto que se degusta, tanto das perdas que o mundo lhe impõe, quanto dos ganhos que nada representam sem a forma das mãos e do olhar de sua mãe, como a vejo num dos mais belos poemas desta coletânea?

O jogo nascera com o dom da palavra. A escrita é um desses contatos. Mas o lúdico é atributo comum. Um lance de dados. Nem a matemática se aproxima do acaso. Quem acerta um número ou completa uma sena, não fora, contudo, obra do acaso. Alguma coisa existe e subjaz ao fenômeno, ao verso e ao simples acaso. A isto se dá o nome de arte. A arte do poeta, a arte que fez este livro pulsar, inscrever-se no bronze, na prata e no ouro.

Nele, José Teles alcança o melhor que poderia ter sido feito, entre uma produção e outra, desde que se estreara com seus “Poemas Estivais”. E posso afirmar que ele já tem seu lugar garantido entre os maiores poetas brasileiros do século XXI.

 

 


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Folhas da Selva, haicais de Aníbal Beça

Folhas da Selva, haicais de Aníbal Beça



Jorge Tufic

                          

                      O autor deste livro, poeta Aníbal Beça, já lida com as fibras do haicai (viajando com Bashô) desde que a primeira folha desse curioso ideograma poético japonês consegue respirar o aguaceiro do inverno e sente, na forma do crisântemo, o zen da primavera.

                           Neste Folhas da Selva o haicaísta amazônico retesa ao máximo o arco de seu dia esponjado de lua, água, movimento e descoberta, até onde uma síntese verbal pode servir de exemplo à fixação de um sonho acordado, seja quando surpreende a resistência da flora ao calor insuportável das chamas, seja quando o aroma do café matinal se mistura ao domingo e sabe ao travo da baunilha.

                         Sutileza, respeito à tradição oriental, e sobretudo poesia, marcam a leitura desses textos que são, ao final, um só e bem estruturado poema, constituído de muitos outros do mesmo quilate, parecendo mais uma leve e  prolongada sinfonia, cujo tema central, a natureza, alterna com a bulha da cidade, o colóquio doméstico, o muro ácido dos gatos e o boi de piranha, entre armários e sapatos.

                      Dividido em partes condizentes com as várias fases de seu périplo em torno da magia floral encarnada nesses trísticos de origem nipônica, Folhas da Selva aproxima de nós o que só uma lente microscópica consegue fazer para transformar um simples pistilo silvestre numa galáxia de rosas. Na intensificação de vivências da infância e da província de seus amores, o poeta invoca, também, os mitos do folclore amazônico, a singeleza vencida pelos grandes edifícios plantados sobre bosques e sítios pitorescos, enfim, a nostalgia dos trilhos “riscando por ruas tortas – o bonde e a minha vida”.

                      Súmula aproximada, talvez, dos melhores haicais do Autor, esta obra nos dá, porém, a medida exata daquilo que é feito com amor e arte, conhecimento do ofício versus aplicação da palavra dentro do próprio motivo que a inspira; além de ser, daqui por diante, um breviário de consulta e alimentação para o verdadeiro modo de caminhar pelas sendas de oku.  Ali donde se ouvem os estalos da semente que leva à flor, ou da flor que leva à semente.  

                      Entretanto, o certo é que Aníbal Beça, dedicado cultor do haicai, procura reunir precisamente em formato de Livro (agora com L maiúsculo) o que seria a visão ou a ideia do poeta sobre esse tipo singular de composição ideográfica, antes de manejo coletivo, mas que sublinha a liberdade de cada um sob o paradigma de “achar” o melhor como um belo exercício que faz do homem uma árvore de palavras, gorjeios, tenuidades, vazios, saltos repentinos, ecos e ressonâncias.

                      O poeta, instalado frente ao computador, beneficiário da Internet, por mais que se esforce ele não troca o seu chão nativo pelos bisonhos fantasmas da virtualidade eletrônica, mas utiliza os recursos práticos da engenhoca moderna para tornar viável o sonho de permanecer incólume aos possíveis estragos do avanço científico.

                     Segundo Bashô: “Não durmas duas vezes no mesmo lugar; deseja sempre uma esteira que ainda não tenhas esquentado.” Ou como diz Aníbal:

                                                                                                     Pluma de pássaro
                                                                                            pousa suave no pátio –
                                                                                                     nasce um cabelo branco.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Simplicidade e magia


Simplicidade e magia


Jorge Tufic

 

             É como defino o modo desta nossa colega de Piripiri, cujo livro, que me parece de estreia, vem de ser lançado, em Fortaleza, por este espantoso Oboé, um instrumento de cultura que entre nós está  mais afeito ao sopro que dá do que ao sopro que recebe. Ou seja, ele tem preenchido, ao longo desses anos, consideráveis lacunas nas ações de apoio às atividades literárias do Estado do Ceará, o que constitui um exemplo que ainda não foi seguido.

 

             Sobre Eliene César depõe o escritor Altevir Alencar: “Eliene retira da sua infância e da sua adolescência, da paisagem de sua querida Piripiri, a matéria prima de uma poética enternecedora que fala diretamente ao coração da gente, transmitindo mensagens emocionais que se fixam na retentiva de quem lê com os olhos da alma”.

 

             Na verdade, raras são as páginas deste livro que não nos oferecem momentos para refletir, ou sonhar. Ou pedras de toque através das quais se avaliam os poderes ainda não totalmente revelados da autora, a exemplo deste começo do poema “Solidão”: “No vácuo de minha solidão/ Disperso-me/ ...já não sei onde estou.¨

 

             O tom descritivo de suas estrofes, a delicadeza das imagens, as conclusões axiomáticas a que chega nos estágios da incompreensão ou dos absurdos de nossa existência, os discursos de circunstância, mesmo quando faz concessão aos filosofemas personales, ou sente necessidade de poetizar sobre a própria poesia, seu lirismo não é apenas do eu-lírico, mas parece falar por milhares de outros seres que vagueiam entre o “nós” e a parábola de Narciso.

 

             A simplicidade de Eliene, como podem verificar da leitura de seu livro, consiste basicamente no repouso que lhe concede a emoção de um poema, conforme se lê numa de suas epígrafes. E ainda: “Nem todo suspiro de um poeta/ se transforma em poesia;/ Nem todo poema é resultado de um sonho seu;/ Tudo que emana de seus pensamentos é, simplesmente, o desejo de poetar!” Um desejo, diga-se de passagem, que atinge os seus mais ambiciosos objetivos na constante descoberta de si mesma, na adoração de seu mundo interior e na esperança que se multiplica: tudo nos limites de um colóquio voluntário entre o que foi e o que ainda lhe resta.

 

             A magia de Eliene é o que se encontra, afinal, nas entrelinhas do sentimento maior que ela externa pela sua gleba nativa, a que nunca devem faltar os amigos, o brinde da confraternização aos gols de uma tarde esportiva ou na longa viagem pelas estradas do Piauí, aventuras etc..

 

              Piripiri, como devem saber, é uma lenda da nossa Amazônia. Do tempo em que os bichos falavam. O cenário dessa história, se não estou enganado, era o Baixo Amazonas. Ali as moças de uma tribo encontraram um jovem índio que por onde ele fosse deixava um perfume no ar. Tão forte e ao mesmo tempo suave, que a todas cativara. Chamava-se  Piripiri. Ao morrer, deixara em seu lugar uma planta de nome Piripirióca.

 

             Tal referência, tendo muito a ver com esse município do Piauí, terra de nossa poetisa, da poetisa desta noite, a nossa querida Eliene César, serve também como um recurso poético para dizer-lhe que, ao retornar aos seus pagos misteriosos, já não ficaremos tão sós; pois ficará conosco a sua poesia, o aroma que nos doa, a planta verbal do milagre olfativo e do verbo encarnado.

 

             Que assim seja.

 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Poemas para minha aldeia


Poemas para minha aldeia


Jorge Tufic




São raros, hoje, os textos de poesia que não temem a crítica por assumir uma postura independente da parafernália daqueles que estão mais para as letras de música pop, do que mesmo para uma lírica moderna, ainda em paz com a arte do soneto, do verso livre, das redondilhas que lembram Rosália de Castro, a par de cânticos e louvores da terra, quase evocativos de autores como Ronald de Carvalho e Judas Isgorogota. Pois este Poemas para minha aldeia, de Sarah Rodrigues, traz-nos de volta as delícias de todo esse cancioneiro perdido entre as névoas de um passado recente, sem, contudo, deixar de ombrear-se aos maiores de nossa atualidade, quer pela escolha e desenvolvimento de seus temas, quer pelo senso lapidário de suas estrofes solares, com maior empenho formal quando elege o soneto como seu modo predileto de forjar os momentos eternos da vida e da morte. Exemplos disto iremos encontrar naqueles intitulados de “O corpo da paixão não terá sono”, “O olhar se perde agora na moldura”, “Coração deserto”, “A velha seringueira”, o dedicado a seu pai, para citar apenas alguns de uma série realmente antológica.

Os demais são poemas intercalados que tratam de motivos diversos concernentes ao planeta amazônico, seu amor à terra, com a imagem do rio, das paisagens e dos fenômenos cromáticos e meteorológicos, num diálogo permanente de quem ama a vida e sabe cantá-la tão bem quanto os pássaros mágicos do lendário perdido. Ou seja, daquele que só os poetas compreendem nas vozes da natureza.

domingo, 10 de novembro de 2013

Centauros urbanos



Centauros urbanos


Jorge Tufic

 

Neste livro, que considero um dos melhores da trajetória poética de Francisco Carvalho, hão-de encontrar seus leitores, nas duas vertentes que lhe nutrem a inspiração e o trabalho –  quais sejam, o lirismo e a problemática do ser – pascalino ou litúrgico, como vivente de uma esfera sujeita à morte e à decomposição – aquela pausa maior em que nada pode ser resolvido senão através da poesia. É nessa fronteira, também, que o filósofo E. M. Cioran descarboniza o pessimismo de seu famoso breviário: “o universo não se discute, se exprime”.

 

A marca expressiva do Autor, festejada desde que se estreara nas “artes músicas”, continua, ao ver de alguns críticos, inalteradamente progressiva em cada uma de suas gloriosas etapas, não sendo estes Centauros urbanos uma exceção à regra: ele é uma prova a mais de sua força verbal e do poder que lhe anima para atingir o núcleo metafórico dos mais límpidos diamantes da escrita.

 

Ao prosseguir nas minhas anotações, tendo em vista escrever alguns parágrafos sobre o livro, detive-me um pouco numa resposta de Lêdo Ivo quando fora este solicitado a fazer uma seleção antológica de sua obra poética. Disparou, então, este mestre das nossas desilusões da literatura “que todos os poemas de sua autoria foram escritos simultaneamente”, e que ele não percebia neles “o emblema do passado ou o estigma do presente. Todos eram contemporâneos, habitavam o mesmo momento” (Vera Lúcia Oliveira, Revista da ABL, pág.201, ano 2002).

 

Assim tem sido e assim contemplo, a distância, a impregnante e sugestiva poesia de Francisco Carvalho, magnum opus que está a merecer uma edição especialmente cuidada por editores qualificados, reunindo sua obra completa, sem prejuízo de que o vate, ainda por longos anos, prossiga dividindo o seu tempo entre a burocracia da Universidade Federal do Ceará e a colheita umbrosa de Hafiz, ou das insônias de Van Gogh.

 

Mas qual o preceito, a diretriz do poeta?

 

Em nenhuma lógica se enquadra o poeta, em particular o poeta cujo original tenho aqui para honra da minha escrivaninha. Ele é ubíquo, introvertido, onilateral e onipresente; numa palavra, demiurgo. Nessas viagens, por acaso, ele vai ao encontro de Proust, Homero, Fernando Pessoa ou Rimbaud. Pode até ser barroco, no que tende a sentir, como no primeiro citado, as tenazes do “tempo perdido, a obsessão do tempo como evanescência, o apego inútil à sensualidade do instante, as horas que voam, o vanitas vanitatum, a vida sonhada mais que vivida, o ser e não ser entre dois agoras, entre há pouco e daqui a minutos”. (Augusto Meyer, Proust, Vida e Obra, Correio da manhã 19/11/96, Rio de Janeiro).

 

Tais sentimentos se fundem e se estilizam por uma representação mais forte do objeto invocado, ou pelas ambiguidades, traços estes comuns na poética de Francisco Carvalho. Há outros ângulos, porém, um denso textuário, riquíssimo e vasto, ao dispor dos leitores.

 

Deste modo, quem tenha observado o “movimento” ou os “movimentos” na poesia desse veterano, há-de notar que ele sabe, tanto quanto os mais atentos exegetas ou filólogos, que a persistência dos hábitos adquiridos em séculos de cultura estratifica os conteúdos da palavra. Quando ele diz, por exemplo, “formigas elétricas”, “papoulas de arame”, ou repete a preposição “sem” como se fora “cem”, numeral, dialetizando a ausência de algo com a possibilidade “real” do que pode ser visto e captado, isto revela, sobretudo, um domínio da experiência exaustiva sobre o léxico estático, de que se devem tomar por empréstimo um mínimo de peças para um máximo de jogo.

 

E, então, como se veste o poeta em sua nova performance?

 

Aqui são fios de lã, no recesso doméstico, em atrito com os “pneus no asfalto”. São galos “prenunciando genocídios”, onde as vidas íntimas se evaporam. É a noite “que chega dos pântanos/e solta sua matilha de dentes amolados”. São “torres que desabam”, “destroços do apocalipse”. “Uma aranha tece a teia/ nos galhos ressequidos/ de uma roseira morta”. Em “Reflexão Urbana”, “Homens e robôs manipulam algarismos/ e fórmulas matemáticas/ para um mundo devastado pela fome”.

 

Ao lado dessa temática atualíssima, contudo, ambientada agora nos centauros mecânicos, essas incríveis entidades alegóricas que se tomam de amor pelos oráculos da cibernética, não deixa o poeta de quedar-se, elegíaco, diante da bela da tarde, ou fechar-se na câmara do tempo circular, transmentalizando o inescrito de sua provisoriedade acadêmica, oposta ao sensu cosmicu. Mas, não será por isso, nem por aquilo que o Esteves vai ficar sozinho ou que as águas do Tejo se possam deslembrar de Camões ou das serestas coimbrãs. Convém frisar, ainda, que Francisco Carvalho não abre mão, neste livro, nem da metalinguagem nem do metapoema, tudo conforme as acepções conferidas a este verbete pelo mestre Batista de Lima, ao discorrer sobre a poesia de Mário Quintana, (Batista de Lima, Caderno Cultura, Diário do Nordeste, 23/02/03).

 

Concluindo: trata-se de um livro denso, com muitos poros semânticos a recenderem visões apavorantes, por um lado, como na “Ode ao Episódio”, e, por outro lado, a nos chamarem a atenção para o João Pimenta, carregador de anjos, entre tantos outros achados raríssimos do mesmo cotidiano, a exemplo das “formigas elétricas”, dos “caninos podres das espigas”, do balir da flauta...Valeu, Poeta!

 

Nota: as obras completas de Francisco Carvalho foram publicadas anos após esta resenha. E até hoje, graças a Deus, o poeta continua a produzir o melhor que pode, e sempre podendo mais.           

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Adeus, amigo Neto!



Alencar e Silva, na Academia Amazonense de Letras,
em julho/2007.

Jorge Tufic




Hoje, dia 25 de setembro de 2011, se aparta de nós o poeta-irmão Joaquim de Alencar e Silva (o Neto, como sempre foi chamado), e, em seu lugar, nesse Rio de Janeiro que ele tanto amara, fica a primavera recém chegada, somando às flores do seu velório uma galáxia de bogaris e crisântemos, numa festa também de rosas ao lírico de LUNAMARGA e tantos outros livros de sua autoria. Chegou-nos a notícia através de um telefonema do Max Carphentier, e, logo, pela Internet, começa a expandir-se a foto do poeta e um resumo de sua biografia. Tudo muito rápido, enquanto as grandes famílias Dutra e Alencar pranteavam o trespasse desse inigualável pai e esposo, sem a menor quebra de harmonia entre sua pena de ouro e os encargos decorrentes do aconchego doméstico, frequentemente dividido com os amigos de longos anos, parentes e a gente humilde de Botafogo, bairro onde a Casa de Rui Barbosa permanece como um símbolo de tradição e respeito à história de nossa cultura.

Para mim, que devo tudo o que sou a ele, no que tange ao saber e ao aprendizado das letras, e apesar do quadro de saúde nada esperançoso que vinha apresentando nos últimos meses, a notícia dada pelo Max à Izabel, pelo telefone, encontrando-me eu ausente de casa, conseguiu nos abalar como se o mundo acabasse de ser atingido por aquele meteoro de que nos fala Henri Klibnik, autor de “La Grande Peur de Lan 2000”. Sem ação, contudo, restava-nos apenas ficar imaginando o que realmente teria acontecido ao Neto, sem ninguém disponível, nesse domingo, a nos dar qualquer luz nesse túnel de angústias e dolorosas interrogações, tendo às voltas dramas e tragédias como estas das cidades desertas pelo final de semana, a par de uma inexplicável ausência de profissionais da saúde nos postos de atendimentos. Em seguida, porém, telefonou-me o Renato Farias, ansioso também para obter informações concretas sobre aonde poderia se dirigir para o último adeus ao querido amigo. E, por último mesmo, recebi o telefonema do Saulo, quando, enfim, já não tinha mesmo jeito, choramos juntos.


Alguns meses antes, presenteou-me o Alencar com um bilhete de passagens Fortaleza-Rio-Rio-Fortaleza, com estada em sua própria residência, em Botafogo, tempo esse, de dez dias, em que estivemos juntos, ajudados pela Hilma, sua filha, na escolha de 200 sonetos de todos os seus livros, para futura publicação, cujo prefácio escrevi, tomado por uma alegria e um orgulho imensamente juvenis, chegando a sentir-me azul diante desse mistério narcísico, segundo uma parábola de Oscar Wilde, em que o discípulo se vê como se fosse o mestre, olhando-se em seus olhos.

Antes de meu retorno a Fortaleza, ele e Nair, sua esposa, deram-me um terno novo do poeta, para que eu o provasse, e, dando certo, ficasse com ele como lembrança daqueles dias memoráveis. E assim o fiz, não contendo as lágrimas, já a bordo da aeronave, quando pude compreender o segredo e o mistério do verdadeiro afeto, diante do mar e da eternidade.

 


 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Palavras de leitor

Palavras de leitor

Jorge Tufic

Se é que existe uma poesia espontânea, leve, despojada, sem, contudo, abdicar da metáfora e do insight, aqui ela se encontra neste livro de Maria de Fátima Maia, em cujas rimas ocasionais, teatralização comedida e um lirismo permeado de sabedoria e bom humor, a simplicidade é o toque mágico de belíssimos poemas, alguns em tom de oração, outros contidos mas cheios de encantamento e ternura.

Há versos, neste livro, que mal tocam a superfície do papel, e nem precisam de reticências para flutuar entre o sonho e a realidade, entre a lágrima e o riso, entre o gesto grosseiro e a fuga para dentro de si mesma, esse abrigo sagrado donde se emana o bálsamo das grandes revelações em processo, embora lento, mas seguro do caminho que palmilha.

A poética de Fátima desvela um pouco de seu estofo bibliográfico, talvez ainda modesto, mas rico das influências recebidas a partir de Florbela Espanca, a quem dedica um dos poemas de “Palavritas”. É importante ressaltar, inclusive, a diversidade de estilos e técnicas com que deita e rola, dominando os segredos da métrica e do mais puro minimalismo, de causar inveja aos poetas que ainda insistem em confundir hai-kai com o trístico português.

Magia, precisão verbal e pudor diante da esfinge que nos devora com seu olhar feiticeiro, dão à textura de cada “objeto” deste volume um brilho diferente do outro, sendo todos, contudo, personas de uma única face iluminada pelo signo das transfigurações criadoras. Daí que, aos passos de hoje, ecos vindouros responderão com mais poesia ao que antes se reduzira a meras indagações em torno de sua existência abstrata, ou simplesmente hipotética. Por outras palavras, a tematização do fenômeno poético, de que ninguém jamais escapara, vai cedendo terreno à captura dos símbolos refratários.

Não será necessário dizer que a gente lê os poemas deste livro de um fôlego só. E o que vem a ser poesia senão uma busca contínua e pertinaz de seu nome verdadeiro, ou seja, do que é isso, afinal. Até que parece, às vezes, uma redundância tentar defini-la exatamente com as palavras de que ela nunca poderá sair, como sai a libélula de uma árvore.

E como faz, por brincadeira, Maria de Fátima Maia.

sábado, 2 de novembro de 2013

Voz Ceará, de Stella Leonardos

Voz Ceará, de Stella Leonardos

Jorge Tufic
 
 
                A seleção de “fragmentos” que dinamizam a rapsódia, se funda também nos princípios da Legenda e da Saga, a primeira incorporando a clássica “Legenda Sanctorum” ou “Legenda Aurea” (coisas a dizer, vida dos santos: legere = reunir, escolher), e a segunda como “relato, narrativa referente ao passado e, mais particularmente, ao passado remoto, tal como se transmite de geração em geração” (Jolles, André, in  “Formas Simples”, Cultrix, 1976). Dentre as várias experiências narrativas de Mário de Andrade, insere-se “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, publicado em 1928, chamado, às vezes, de “idílio”, outras, de “rapsódia”, que assinala, segundo Massaud Moisés, “o caráter miscelânico da obra, ou sua indeterminação no painel dos gêneros literários”. 
 
                Neste “Voz Ceará”, a que a autora, Stella Leonardos, também denomina de rapsódia, nos surpreende descobrir como esta “voz” arrecada uma extensão bastante considerável de história, lendas, costumes, mistérios, fauna e flora, além de abraçar, com o tépido encantamento de seus versos, uma área igualmente consagrada de nomes da poesia cearense contemporânea, a exemplo de Virgílio e Luciano Maia, Artur Eduardo Benevides, Francisco Carvalho, folcloristas da cepa de Florival Serraine e cantadores da fama de João de Cristo Rei, João Lucas Evangelista e José de Matos. 
 
                Muito mais do que isso, ela conta, qual fosse um passarinho ágil e noturno, o que vê e o que tantos não viram ou deixaram de ver, mas de que ouviram certamente falar sobre estes inúmeros cearás que atravessam suas páginas, fazendo-nos deter, aqui e ali, ante passagens deveras exemplares da forma e do modo áspero desse imenso nordeste brasileiro, versátil e contraditório. Tecendo à vontade, sabendo que dispõe, para o feito em lavra, da matéria insone dos fatos consumados e do eloquente testemunho dos barcos e da paisagem, Stella empresta a cada traço verbal a leveza dos “elles” em que seu nome fulgura. Ela tem os olhos colados nas proas das jangadas, que por sua vez a olham, familiares, e transmitem, através de suas metáforas, a odisseia regional das “três raças-mamães brasileiras”. 
 
                Raramente um poeta, como ela, soubera harmonizar os elementos singulares da fala corrente, espontânea e carregada de significados, com uma linguagem tão fluida e tão bela, onde os espaços entre as frases constroem, alternado ao espaço gráfico propriamente dito, aquele sopro visível da poesia enlaçada à palavra mágica, inseparável do mito. 
 
                Começar a leitura desta rapsódia nos parece igual a reviver, de olhos abertos, de um lado, uma história que pouco conhecemos, e de outro, o avesso de uma realidade que somente a visão épica do rapsodo consegue transpor para a escrita. E aqui homens, serras, bichos, caminhos e tragédias, como que voltam filtrados por uma luz que se reflete na paisagem dos evos. Lendo-a, algo se restabelece dentro de nós: talvez a certeza de que tenhamos sido este passado; e o crédito de novas esperanças alteia-se nos arcos dos sonhos que ainda podemos viver e tocar para outros futuros. Como as jangadas, entre outros versos de SL:
 
 
                                               “Pertences de herdados mares?
                                               ou eu é que lhes pertenço?”
 
                                               .................................................
 
                                               “por sofridas tentativas
                                               de erguer a Cruz a caminho
                                               rumo à sonhada conquista
                                                            do inóspito território”
 
                                               .................................................
 
                                               “a voz ceará prosseguindo,
                                                              cantando dos povoadores
                                               arribados de mar brabo,
                                                               por terras híspidas vindos:
                                               – conquistemos estas bandas
                                                               ocupadas pelos índios!” 
 
                O poeta aceita, neste particular, a ótica dos velhos colonizadores – e passa a olhar os índios, não mais como donos da terra, mas como simples ocupantes do espaço a ser conquistado. 
 
                Não é, contudo, a Clío que Stella Leonardos rende a homenagem de seus afiadíssimos acordes poéticos; é à doce Polímnia, essa musa da retórica, cujo discurso persuade enquanto transfigura. É assim que a vislumbramos, nós, seus leitores, no decurso de uma leitura sem pressas desnecessárias, senão apenas faminta de prosseguir ao longo de um texto elaborado sem o rigor dos formalistas ou parnasianos, mas aberto como o sol de uma túnica diante do altar de Apolo. 
 
                Rendilhado febril, diríamos até certo ponto obediente aos paralelos da linearidade artesanal e aos desenhos de um mapa interior que se vai revelando, em carne, terra e osso, mediante pesquisa, confronto e vivência da própria autora, este poema é único, no todo e em parte. Composto com a matéria viva da memória e do louvor a que e a quem merece ser louvado, é o Ceará, afinal, de Ana Triste e o Ceará dos jovens “padeiros” de hoje, que esplende e se eterniza em cada lance do bilro, no traçado da rota e no pouso, avelíssimo, das imagens fecundas.