domingo, 30 de outubro de 2011

AGENDA 1965


30/mar.

Quase fim de março e os ventos de Brasília não sopram como estávamos esperando. Amanhã os Poderes da Nação comemoram o primeiro aniversário do Ato Institucional e seus resultados. A Revolução ou Golpe de Estado tem dado ênfase aos setores de Economia e Finanças, que nada apresentavam de positivo. Justificam-se os festejos cívicos em nome da subversão e da roubalheira dos políticos, mas ficam proibidas manifestações sobre os direitos cassados, presos ideológicos, exílio e desaparecimento de pessoas ligadas ao movimento sindical.

31/mar.

Leio ¨O Jornal¨, 16 páginas. Palpita-me a idéia de que a opinião pública está sendo levada para um beco-sem-saída. Os novos cérebros da Nação, estribados no positivismo comtista, observam, de longe, como podem ser adequados ao momento político a desorientação geral e o caos diante do amanhã. Não tendo em que se apegar dada a falta de tradição armada, cultural ou política, o povo se rende ao aparato militar, acompanha a marcha, também, dos confusos acontecimentos que se sucedem; teme a ditadura que, aliás, já se instala confortàvelmente em todos os estados brasileiros.
* O Governador Arthur Ferreira Reis convida o Clube da Madrugada para um jantar no terraço do Palácio Rodoviário, sede do Governo. O encontro ficou marcado para o próximo sábado. A aceitação do convite foi votada e aprovada por Assembléia Geral, tendo falado o clubista Jefferson Peres, entre vários outros, dando-se relevo, sobretudo, à personalidade do grande intelectual e historiador que é o Sr. Arthur Reis, agora investido na função de primeiro mandatário.
N. do A.: O Governo de Arthur Reis, o primeiro do golpe no Amazonas, andou lavando as mãos quanto aos chamados subversivos, mas foi bastante severo com os corruptos, Servidores Públicos e ex-Secretários de administrações anteriores. Todavia, o ponto alto de seu Governo esteve a serviço da cultura, com a publicação de quase duas centenas de obras de pesquisa, ficção, história, folclore etc. Mandava seu motorista parar o veículo oficial em qualquer rua ou avenida de Manaus, somente para abordar e cobrar de jovens escritores originais de sua autoria para que fossem editados nas Coleções do Governo. Eu fui um destes jovens, sem tempo disponível, contudo, para dar conta de originais devidamente estilizados e prontos para entrar no prelo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Apresentação do livro O Sétimo Dia, de Jorge Tufic



Apresentação do livro O Sétimo Dia, de Jorge Tufic

Zemaria Pinto*


Foi há exatos 25 anos que travei, por intermédio de jovens amigos comuns, contato pessoal com o poeta Jorge Tufic, a quem aprendera a admirar a distância. Uma qualidade desconhecida foi logo realçada naqueles encontros iniciais: a generosidade do poeta, capaz de dedicar horas de seu raro tempo para nos passar noções de poética – versificação, metro, ritmo. Falar, nem sempre bem, das vanguardas ainda em voga: a poesia concreta, a poesia-práxis, o poema-processo, a poesia de muro. Sobre os poetas que, parte do cenário mundial, começavam a ser conhecidos e estudados no Brasil, e mereciam nossa atenção, como Eliot, Pound, Cummings. A sua paixão pelo soneto, da qual eu não compartilhava, inicialmente. Tudo isso entremeado por deliciosos “causos”, envolvendo os amigos do Clube da Madrugada. O dedicado professor seria contemplado, 23 anos mais tarde, com o Prêmio Nacional de Ensaio, da Academia Mineira de Letras, para o seu Curso de Arte Poética. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso.” O professor Tufic não o era por acaso...
“Poeta não se define: é um ser à parte.” A análise de uma obra literária de qualidade dispensa a teoria literária e todos os seus (pre)conceitos, buscando engendrar uma nova teoria, específica e apropriada unicamente àquela obra sobre a qual nos debruçamos. Um novo livro de Jorge Tufic é uma oportunidade ímpar para deixarmos de lado tudo aquilo que aprendemos e iniciarmos um novo aprendizado do que é a poesia lírica neste início do século XXI.
Estreando em livro em 1956, com Varanda de Pássaros, Jorge Tufic construiu, nestes quase 50 anos, uma poesia rigorosa e reflexiva, mas sobretudo inquieta: Das pedras que lavro, diz ele no poema “Ofício”,
soltam-se, àsvezes,
clarões e
gemidos.
Estalos, brilhos
que imitam
palavras.


Não à toa, a pedra é uma imagem recorrente neste livro de Tufic, ora como elemento natural, ora, no mais das vezes, como metáfora da liça cotidiana. Mas um poema não é apenas um amontoado de palavras. As pedras-palavras a que se refere o poeta precisam ser trabalhadas exaustivamente para que logrem alcançar o “estado de Poesia”. É o que temos neste O Sétimo Dia, uma referência explícita ao Gênesis, quando Deus deu sua obra por terminada e descansou, ou melhor deu-a ao uso do homem – que desde então tem-se dedicado a destruí-la. O “sétimo dia” é, pois, o dia da contemplação, do lazer, do prazer. É o dia da poesia. O poeta conclui mais uma coletânea a e entrega para deleite de seus leitores. Mas, com certeza, não descansa. Antes, trabalha lavrando pedras, pois tem sido assim desde o início, e é assim que ele chega, com este, ao 43° título de sua brilhante carreira.

“Poeta não se define: é um ser à parte.” Dividido entre “Sonetos” e “Poemas”, O Sétimo Dia traz um Jorge Tufic peregrino, desde Sena Madureira a Salamanca, passando pelo Cairo, por Alcântara, Machu Picchu, Nam Madol, Atlanta, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Lisboa e Singapura. Além, claro, de Manaus e Fortaleza. No soneto “Périplo”, talvez a chave dessa busca incessante, ele escreve:
Cidades inventei por toda partequando o tédio mostrou-me o seu reverso:nos sítios da miséria, o controversolixo da solidão que se fez arte.Perdi a mala, o sonho, o meu tabaco.Lavrando rochas, decepando luas,tudo me enoja, tudo me enche o saco.
Sinto falta de Beirute, mas o Líbano também se faz presente no “Soneto à Beringela”, vegetativa musa sobre a mesa; no “Soneto Árabe” – Amada os cedros voam. Pedras cantam / nos âmbares da terra. –, nos oásis, nas tâmaras, nos sândalos, nos desertos, nas tendas recorrentes, e, muito especialmente, no “Soneto para Kahlil Gibran”:
Letra por letra a doce voz do mestrevai-se passando para o coração.  O ser generoso cultiva a amizade e cultua a arte, alegorizada no “sétimo dia” genesíaco. Assim, Tufic contempla os amigos, como, entre tantos, Nilton Maciel, Almir Diniz, Marco Luchesi e a amada Izabel, e faz arte sobre arte ao dizer daqueles amigos que lhe preenchem a solidão, como Van Gogh, Borges, Huidobro, Rembrandt, Cioran, Bandeira, Kurosawa e o distante Van Pereira. Mas é o cachimbo, outra recorrência, o melhor companheiro da solidão, quando o poeta descobre “a geometria do incativo e momentâneo brilho do que passa.” São momentos de sonho, lições simples, de há muito cristalizadas na memória:
Não sei dizer passarinhosem dizer passarinhos,tal como ensinava a senhora de meus dias.Ela dizia de um modoque se via e se ouviao ser e o cantoa pluma e o vento;e, por detrás de tudo,o canto do encantotanto do pássarocomo dos passarinhos.A’sso-fir, em árabesão pássaros de pássaroe pássaro de pássaros.
Tufic nos dá lições de simplicidade e plasticidade: simplicidade plástica e plasticidade simples – pois essa é a essência de uma poesia que, sem pretensão de inventar, está sempre a renovar-se. Ouçam essa dúzia de versos colhidos a esmo:
Eu tive um lar, talvez uma varandacom árvores de fogo nos telhados;
Quantos metais se fundem nessa chama
Versos-medula plangem neste abraço
junta-se ao nosso o eco de outros nadas.
de luz & sobra paz & antemanhã
Late um cão neste verso, late late
Todos os mortos pulsam nas raízes
Palavras há também sobre os destroços
da noite plena como é pleno o sexo
De qualquer solidão brota a poesia.
para que eu chova estrelas, vento claro.
O ser generoso tem o ânimo elevado, ainda que sujeito a angústias episódicas, especialmente ao tédio dos domingos – porque o sétimo dia, meus amigos, é o sábado; o domingo é apenas o dia da “ressaca vital”, o dia da criatura sem o criador:
Como sugardeste solque tudo ressecaas tâmaras vitalíciasdo apogeu e da alegria?
Eu dizia que, a despeito dos domingos, o humor do poeta mantém-se vivo, seja olhando velhos álbuns de fotografias, seja num “anúncio” que beira o nonsense:
Aluga-se um velhoque já não serve pra nada.Garante-se, porém,que ainda olha e vê.E enquanto olha e vêcachimbaos pedaços da noite.

“Poeta não se define: é um ser à parte.” O nosso querido confrade Alencar e Silva já percebera isso no ensaio Jorge Tufic: as tendas do caminho (lançado aqui, neste salão, a 23 de março do ano passado). Diz o Alencar: “vem o Poeta construindo e diversificando os seus caminhos, percorrendo e iluminando as suas sendas e cumprindo, enfim, o itinerário que se traçara ao adentrar as terras-do-sem-fim da poesia.” Esses caminhos que se bifurcam e se multiplicam são os caminhos da inquietação que só o verdadeiro artista experimenta – mesmo quando em estado de contemplação, mesmo quando apenas cachimba em seu cachimbo, feito “não de roseira, que a rosa é o fumo, mas do aroma e da nuvem passageira.”
Eu, que não gosto de adjetivos, pinço deste livro um soneto magnífico, que, se não fosse pela obrigação ritual da apresentação que me foi pedida – e pelo orgulho-narciso de assomar a esta tribuna –, poderia ter lido logo no início desta fala e dado por encerrada minha participação, pois se trata de uma síntese de tudo o que falei até aqui, uma autêntica Poética – uma definição viva do que é a poesia, o poeta, o fazer poético:
Poeta não se define: é um ser à parte.De homem se veste, de animal caminha,mas algo nele de anjo se avizinhaquando em fatias brancas se reparte.Cheira o pão de seus versos; faz-se artepela dor que humaniza e que espezinha;não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,mas a dor que se empluma no estandarte.Pode ser o domingo que se anula, um galgo que tropeça, o lenço esgarçoque, sendo de Marília, ainda tremula.Para si mesmo estranho ele se enigma,avesso ao paletó, caderno esparso,nada o liberta, nunca, desse estigma.
Muito obrigado.

(*) Discurso em sessão pública da Academia Amazonense de Letras, no dia 18 de junho de 2005, apresentando o livro O sétimo dia, de Jorge Tufic.
Foi publicado no n° 27 da Revista da AAL.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

AGENDA 1965


25/mar.
Como sempre, meu pai vem pegar dinheiro para o Mercado, o pão, o querosene da geladeira ou carvão destinado ao fogareiro de minha mãe, no qual ela assa a cafta, a berinjela, a cebola, o peixe etc. É pena que às vezes, próximo ao dia do pagamento, meus recursos se encolham, mas raramente tenho faltado com essa ajuda aos velhos. Finalmente, quase todos os dias eu almoço com eles.
26/mar.
Levante no Rio Grande do Sul.
* Aproxima-se a data de vencimento da letra em poder do Banco Comercial do Pará. * Escrevo uma prece em vez de redigir notícias ou copidescar matérias que me chegam pelas mãos do Chefe.

27/28/mar.
Amanheci filósofo: A angústia humana é uma resposta da alma aos pedaços que o mundo lhe tira, a cada momento. -Uma ¨vida completa¨(Cecília Meireles, para rimar com poeta), sugere ausência de ¨dor¨, imunidade aos incríveis predadores da energia vital, como sejam os componentes da angústia. A incompletude de que tanto se fala, depende, assim, de uma escolha de fé ou de caminho. A poesia, em Cecília Meireles, teria sido este caminho. Portanto, o legado (a obra, o feito, o gesto libertário, a canção e a liberdade) completa a existência. - Sabê-lo é o que, sem tocá-lo afunda, enquanto se cava.
* Meu Ex-Libris: duas lanças cruzadas (brasão) e a legenda: ¨Ractio Virtus Est¨ Boas influências de um passado feito de glórias, nos transmite o poeta Luiz Bacellar.
* Palmas na varanda. É o Maciel acompanhado de um amigo seu. Encomendo-lhe o desenho do brasão, conforme o Ex-Libris rascunhado pelo Bacellar. Razão é Força.
* Com Amazonino e Assis num bar da Praça São Sebastião.

domingo, 23 de outubro de 2011

FIOS DE LUZ, AROMAS VIVOS


FIOS DE LUZ, AROMAS VIVOS

Leitura de “Retrato de mãe” de Jorge Tufic

Rogel Samuel





É um tema banal, popular, vulgar. A mãe, já tão gasto motivo dos cadernos poéticos e saudades, pois todos nós tivemos ou temos a mãe a saudar, a lembrar, a louvar, a chorar. 

Mas Jorge Tufic é um poeta excepcional, e não foi piegas: com que realizou sua obra-prima, sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe, ou da personagem mãe.

O livro todo está no blog


O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. E começa por uma invocação.

  1. Venham fios de luz, aromas vivos

misturar-se às palavras, à centelha

do louvor mais profundo deste filho

que se depura e sofre com tua ausência.

Venha o trigo do Líbano, a maçã

de que tanto falavas; venha a brisa

tecer mediterrânea esta saudade

que vem de ti quando por ti me alegro.

Que venha a primavera, saturando

vales, planícies, colorindo os montes,

noites de luar caiando os muros altos.

Venha a pedra da igreja onde ficaste

quando em febre te ardias. Venham lírios

rebrotados de ti, dos teus martírios

O que lemos aí é a invocação de um sabor (de um saber), de um elemento gustativo, a maçã, o trigo, me o visual, fios de luz, e o táctil elemento do vento, e os aromas, a paisagem, a planície, os montes e as noites, a pedra, a febre, o martírio.

É a invocação.

Venham fios de luz para tecê-la, aromas vivos para senti-la, às palavras do filho descrevê-la, proclamá-la, proferi-la.

Ler é nomear sentidos, fazê-los funcionar, dar-lhes corda, os sentidos estão e/ou partem dali. Ler é um ato de mobilidade, de por em movimentação os sentidos. Mas não todos. Não há um todo, um limite. Por isso, diz Barthes, o esquecimento crítico é um valor do texto, haverá sempre sentidos esquecidos, nunca se poderá reunir todos os sentidos na arena da rigidez de uma grelha analítica.

Na filosofia se definem falar e dizer, num certo sentido: O falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas.

O poeta profere o “nome da mãe”, invoca-a. Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, vem em fragmentos, pouco  nítida, mas forte, sentida, ou pressentida, sim, começa ele a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe, mãe-primavera, mão dos vales, planícies e que logo todos nós assumimos como nossa, e quem consegue falar da própria mãe morta sem tornar-se piegas? Conjuntamente, nossa mãe síntese-simbólica,  Fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu. Tema freudiano, pois. Abismo psicológico.

No segundo soneto aparece D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no texto, onde há citações, pós-modernidades.

O autor aí diz: “Calma, não chore, é apenas literatura”.

A descrição, o retrato começa pelos cabelos, tranças, a voz, a lembrança. A fonte do  pão, do leite, da flor, do fruto. Mãe que é para “amar depois de perder”, como no verso de Drummond. Na verdade, Tufic só de lembrá-la um soluço arrebenta-nos a crítica.


sábado, 22 de outubro de 2011

AGENDA 1965


20/21/mar.
Aproveito uma pausa na Redação, e anoto os receios que me assaltam diante da eventualidade em prosseguir me desgastando entre dois expedientes, além das obrigações que tenho com o editorial da página do Clube da Madrugada, inclusive revisão das provas. Trabalhar diuturnamente sem a contrapartida em espécie, me cansa e me envelhece antes do inverno chegar.
N. do A.: Vem a seguir uma frase de que não me recordo o motivo, condenando os dias acima ao mais fechado esquecimento, dando a entender que alguma decepção ou tragédia estivessem nessa ordem cronológica.


23/24/mar.
Desde o dia 17 – exceção feita aos domingos – que trabalho como Redator de ¨O Jornal¨, situado na avenida Eduardo Ribeiro, entre as ruas 24 de Maio e Saldanha Marinho.Meu horário começa às 16:hs e vai até às 24 ou mais. Ao chegar em casa, ainda leio e anoto algumas ocorrências na agenda. O Ulisses é um bom Secretário de jornal, excelente colega, uma dessas pessoas ligadas à história da Praça 14 de Janeiro e seu mais genuíno folclore.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A LÍBIA EM 1389 OU 1980


A LÍBIA EM 1389 OU 1980

Moammar El Kadhadafi – LE LIVRE VERT

Neste livro, espécie de calendário alusivo ao ano de 1980,

Kadhafi  proclama:



O Povo Árabe recupera seus direitos pela revolução.

O nome oficial da Líbia será República Líbia Popular Socialista.

O Corão é a lei da sociedade na República Árabe Líbia Popular Socialista.

O poder popular direto é a base do regime político na República Árabe Líbia Popular Socialista.



Havia um Conselho para decidir os atos do governo. Baseado, como se vê,

na palavra maior do Profeta. O sagrado e o profano nas instituições oficiais,

e a palavra final sob as ordens ditatoriais do jovem Coronel que acabava de

ascender ao ¨trono¨da Líbia.



Como conciliar o céu e a terra nas mãos ainda tintas de sangue dos insurretos

contra o terror que acabava de tombar pelas armas do povo?



É a hora da mudança, mas também da reflexão.



Jorge Tufic

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

AGENDA 1965


18/mar.
Acabo de ser admitido na função de Redator de ¨O Jornal¨, com salário fixado acima do mínimo regional. Examino de perto o novo terreno que devo explorar, enquanto as chuvas de março aumentam o nível dos igarapés.
19/mar.
Leitura após uma noite pouco tranqüila. Os problemas, eternos problemas. Jornal, Repartição, Jornal.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

RETRATO DE JORGE TUFIC



Por Rogel Samuel



  1. Nossa infância era toda iluminada

pelas fontes da tua juventude.

Armadura que tínhamos freqüente

para afastar as sombras e o perigo.

Eram fartos os dias com teus peixes

mergulhados no arroz: postas de ouro

não largavam seus brilhos nem suas luas.

Na escassez, entretanto, te inquietavas.

Ainda te vejo, o porte esbelto indo

por aqueles baldios transparentes

onde a luz, de tão verde, pincelando

os ermos, quanta música expandia!

Voltavas quase noite ao doce abrigo,

e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.





Aqui a mãe dá a vida, ela é fonte da juventude, da proteção, a fartura, a nutrição.

O texto é escrito com o forte intuito de buscar, de recuperar a imagem da mãe no passado do próprio texto, aquela linguagem, aquela criatura divina, dama antiga, fada e santa, busca infinita de volta à fala do útero materno, ao ninho antigo, àquele aconchego materno, onde tudo estava em paz, onde nela nos alimentávamos, nos encontrávamos com nossa originária semente, e para isso, para esse canto, o poeta pede a voz do pássaro, o pedal das nuvens, procurou, como Narciso, na água dos regatos, a imagem aquela que em nós dela nunca se esquece.

Mas nada. Somente nos versos há a sua fotografia.



  1. Fui pedir ao canário que me desse

um raspão do seu canto fragmentário;

fui às nuvens do céu pedir mais nuvem

para o leve pedal que emite a voz;

debrucei-me, também, sobre os regatos

em busca de tua face; a brisa, enfim,

tentara descrever-te mas não pôde.

Andei, assim, por montes e calvários.

Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.

Nada pude captar, nenhum remorso

fora maior que o meu nessa procura.

Somente agora, mãe, na tecelagem

destes versos que fiz para louvar-te,

em tudo posso ver-te e posso amar-te.

Os versos são para louvá-la, recuperar a sua imagem, o seu amor.

O que a lembrança traz, porém, gera o pavor, o horror da recordação, o recordar daquela cena que não devia de ser nunca levantada, a agonia, a morte, a terrível e insuportável cena, daquela que foi fonte da vida, da alegria fonte, da proteção origem, abrigo, auxílio, amparo, e por quê?, como de repente aparece este “estavas, posta no esquife” - Não! Não quero vê-la! Não a posso ver, ainda que ela esteja ali liberta como num trono, entronizada no Eterno,  sonho rente à luz, Iluminada – a morte vem também como vieram galáxias, vales luminosos, auroras – mas por teres desaparecido mais sombrios os dias aqui deixados – como no soneto de Camões:



  1. Estavas, posta no esquife, igual a todas

as defuntas convulsas, lapidadas.

Tão branca e tão distante companheira

destes ventos na pausa da agonia.

Quisera ter morrido quando foste,

nave de ti somente, abrindo rotas

na invisória partida, nesse coro

latente em nossas almas. Parecias

dormir, então, liberta como um trono.

Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,

corpo de insones ânforas, mãezinha,

que sei de ti nos guantes da saudade?

Que sabemos de ti quando te vais,

se o teu vazio é feito de punhais?



Que significa “estavas, posta no esquife”? Tão branca e tão distante como os versos de Camões que ecoam. Esses sonetos a fazem ressurgir aquela Inês posta não no esquife, mas no trono, depois de morta. Mas aqui o sujeito também morre, “como num trono”, pois ela morta não está, mas dormindo livre; e agora ignota, que sei que sabemos daqueles seus punhais?

E os sentidos se perdem, pois a morte, toda morte é inexplicável, não podemos explicitá-la, submetê-la a um conceito. Ela reside além da conceituação. A morte tudo mata, inclusive o pensamento, a linguagem e o discurso. Que podemos nós dizer na porta da morta? Que é a morte, senão um não, que não admite explicação, como disse outro poeta. Lágrimas de Orfeu significa a morte do poema, a morte do Eterno, depois de a mãe ser “posta em esquife”, naquele terrível verso camoniano, as relíquias, os pertences, o vestido de linho desbotado, o sapato, o chinelo, a nuvem, tudo posto num saco tosco, humilde e roto, o legado de uma tristeza infinita, porque o tesouro se enterrara com ela mesma, e não há como dizê-la, depois de a mãe ser posta em esquife cessa o ato poemar. A morte da mãe é a morte da literatura. De um lado a mãe-poema – do outro o nada, o vazio, o vácuo, o olho cego negro da morte.

“Para nos darmos conta da ação psicológica de um poema, teremos pois de seguir duas linhas de análise fenomenológica: uma que leva às exuberâncias do espírito, outra que vai às profundezas da alma”, escreveu Bachelar, em “A poética do espaço” (p.187).

O canto se engasga em rugidos carcerários, impotentes, de barro, quilhas, peito, e onde o poeta revela seu modelo Jorge de Lima, a poética inconsciente, seu traçado. A viagem que leva à morte, ao fim dos tempos, às ampulhetas, as ressonâncias. A que escuro mar foi levada aquela amada? Aquelas viagens se tornam a viajar. A lembrança neste fim que sempre volta, algo inumerável, roupas no tanque, fantasmas trastes. A voz da mãe. Calvário de lembranças.

O soneto pós-moderno é aquele que faz reflexões literárias, como a lembrança de Mansour Chalita. Ou seja, o poeta ressalta o caráter literário da obra, que se refere a si mesma. O poeta como que diz: “isto é literatura”. Ou “não chore, isto é apenas literatura”.



AGENDA 1965


16/mar.
A partir de amanhã, férias. As dificuldades financeiras aumentam. Às 13 horas saio da Repartição. Com o amigo Alberto, no São Marcos. Já em casa, na Joaquim Nabuco, me deparo com uma cena confrangedora: a casa totalmente molhada pelas águas da chuva e devido aos buracos nas telhas de barro, gastas e portanto vulneráveis às correrias dos gatos que vivem nos quintais. A cama de minha mãe quebrada, entre vários outros aspectos desoladores, requerem providências urgentíssimas, mas falta o melhor. Almoço ligeiramente, consigo deitar e dormir até às 16 horas.
N. do A.: Decorridos mais de 42 anos, custa-me crer que tenhamos passado tão baixo e vivido tão perigosamente naquele centro de Manaus densamente habitado por comerciantes bem sucedidos e pela classe média. Nossas tias da rua dos Andradas ajudavam no que podiam quanto à alimentação. O drama de meus pais e da casa onde moravam não apresentava nenhuma visibilidade ao público, escondido por uma fachada enganosa. Ao relembrar passagens de nossa vida que não querem ter acontecido, explica-me o poeta Dimas Macedo que algo nos mantém ¨dopados¨ ao longo de tais acontecimentos, por mais longos que sejam.

17/mar.
Dou início à leitura do 3º. Volume de ¨Ascensão e Queda do Terceiro Reich¨, de William L. Shirez. Mais tarde, falo com o Ulisses na porta de ¨O Jornal¨, quando sou convidado a procurá-lo amanhã para uma conversa sobre uma vaga de Redator na Empresa Archer Pinto & Cia..Ltda. A situação no Vietnam continua desesperadora, ameaça evoluir para uma terceira Guerra Mundial.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

RETRATO DE JORGE TUFIC




RETRATO DE JORGE TUFIC


Rogel Samuel




  1. Lentilha, azeite doce, o acebolado

chia na frigideira de alumínio;

a casa está repleta de convites

para a janta frugal e acolhedora.

Nos arredores brinca o vento: a cerca

divisória, talvez, nada separa.

Vizinhando quintais vozes fraternas

cantam, mandam recados de ternura.

Assim te vejo, mãe, rosto suado

na lida da cozinha ou pondo a mesa.

Terrinas de coalhada, o pão redondo

a recender de ti, mais que  do trigo.

Calendário sem datas, chão de outrora,

como tudo passou se tudo é agora?



Que dizer do quarto soneto?

A mulher amada, substituto da mãe. Ou da natureza. “Pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar”, disse Bachelar, em “A poética do espaço”.

Escreveu Dom Ramon Angel Yara, bispo de La Serena, Chile, no seu igualmente “Retrato de Mãe”: "Uma simples mulher existe que, pela imensidão de seu amor, tem um pouco de Deus; E pela constância de sua dedicação, tem muito de anjo; Que, sendo moça, pensa como uma anciã e, sendo velha, age com as forças todas da juventude; Quando ignorante, melhor que qualquer sábio desvenda os segredos da vida, e, quando sábia, assume a simplicidade das crianças;
Pobre, sabe enriquecer-se com a felicidade dos que ama, e, rica, empobrece-se para que seu coração não sangre ferido pelos ingratos; Forte, entretanto estremece ao choro de uma criancinha, e, fraca, entretanto se alteia com a bravura dos leões; Viva, não lhe sabemos dar valor porque á sua sombra todas as dores se apagam, e, morta, tudo o que somos e tudo o que temos daríamos para vê-la de novo, e dela receber um aperto de seus braços, uma palavra de seus lábios. Não exijam de mim que diga o nome dessa mulher, se não quiserem que ensope de lágrimas este álbum porque eu a vi passar no meu caminho. Quando crescerem seus filhos leiam para eles esta página: eles lhe cobrirão de beijos a fronte; e dirão que um pobre viandante, em troca de suntuosa hospedagem recebida, aqui deixou para todos o retrato de sua própria mãe...” (Tradução de Guilherme de Almeida).

Que dizer do quarto soneto? O soneto da permanência da mãe. Mãe não morre nunca. Somos nós mesmos. Ou “calendário sem datas”.



  1. Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.

Neste verniz antigo, neste cheiro

suavíssimo que vinha do teu corpo,

do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.

Em tudo, minha mãe, teu vulto amado

se desenha mais firme, e, lentamente,

vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa

desses anos que pesam sobre mim.

Em tudo, minha mãe, vejo este lenço

que à passagem da dor recolhe o traço

do sorriso que foste a vida inteira.

E, mesmo quando morta, entre açucenas,

ainda ressai de ti, poder divino,

a canção que adormece o teu menino.



O poeta vê a mãe, significa que ela está aí, presente, que ela é uma presença.

Essa é a permanência da mãe, mesmo morta, ainda canta, ainda existe, ainda alivia, ainda consola, ainda sorri.

A mãe é eterna!

Sim, mas morre: é o quinto soneto. A morte do eterno. A queda dos deuses... E num domingo!  É o soneto da morte, do fim. O Eterno, como bem viu Hannah Arendt, é a eternidade do instante. O imortal é a presença da lembrança. 



  1. Numa tarde opressiva de domingo,

o estrondo de tua queda: a irreversível

fratura que me dói quando te lembro

de olhos fixos em mim, quase a dizer-me

adeus, lágrimas ácidas rolando

sobre abismos drenados- tal o impacto

na dureza do chão, tal  a dureza

do impacto na ossatura envelhecida.

Ninguém para colher-te o desamparo

desse tombo sem grito; apenas gestos

e vozes pressentidas me indicavam

zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,

de tão covarde, cínico e vilão,

faz da morte uma simples diversão?

A volta do tempo materno, do seio materno, ou seja, do ninho, a infância iluminada época da Mãe, mãe protetora armadura fonte. Nossa juventude dela vinha, nossa fartura se originava nela. A poderosa Mãe, entretanto pobre, que se inquietava na escassez. Mãe bela, esbelta, musical. Mãe mítica! Poderosa fantasia posta em ouro. Brilhos e luas. Amada que quando voltava trazia o mundo inteiro em seus cabelos, em suas vestes, em suas mãos.