sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Violeta Branca e sua época

Violeta Branca e sua época

                           Jorge Tufic

 

A semana de arte moderna de 1922, em São Paulo, apesar da violência renovadora insuflada pelos seus prógromos e lúcidos admiradores, não chegou por aqui senão após o ano de 1954, exceto por algumas tentativas poéticas isoladas, tendentes a um regionalismo ufanista ou apenas seduzidas pelo culto do verso livre sem qualquer liame com as velhas formas parnasianas de arte-pela-arte.

Francisco Ferreira Batista, em sua conferência feita em 1955, na escola de Serviço Social, subordinada ao título “Conceituação do Modernismo no Amazonas”, aponta “O poema do Tarumã”, de José Chevalier, como o primeiro artefato modernista publicado em Manaus, “equivalendo seus efeitos, na oportunidade, aos causados pelo discurso proferido por Graça Aranha, na Academia Brasileira de Letras”. Na primeira fase destes surtos individualizados, com intuitos simplesmente adesistas na divulgação de uma que outra tentativa poética “Futurista”, assim chamadas na época, fora a revista “Redenção”,de Clóvis Barbosa, surgida por volta de 1924, que dera abrigo à incipiente manifestação rebelionária de alguns pioneiros. Em 1927, o ex-deputado Francisco Pereira da Silva lança a coletânea “Poemas Amazônicos¨, fortemente marcada pela corrente modernista que se arraiga aos motivos da terra, dentro do esquema nativista sublimado pelo grupo “anta”, constituído por Menotti del Picchia, Plinio Salgado, Cândido Mota Filho, Raul Bopp e Cassiano Ricardo.

 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

ALENCAR E SILVA


ALENCAR E SILVA

 

POR JORGE TUFIC

 

 

       Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti, o autor que melhor estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo esse o qual, pela extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua obra poética. Deste modo, esclarece: ¨PUDE agora ultimar a análise, sem caráter definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois o livro – Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações e confrontos textuais¨. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um neo-misticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.

        Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários, memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia: ¨Painéis¨, poesia, 1952, ¨Lunamarga¨, poesia, 1965, ¨Território Noturno¨, poesia, 1982, ¨Sob Vésper¨, poesia, 1986, ¨Poesia Reunida¨, 1987, ¨Noturno Após o Mar¨ (crônicas e poemas em prosa), 1988, ¨Sob o Sol de Deus¨, poesia, 1992, ¨Ouro, Incenso e Mirra¨ (poema em cinco segmentos e cinqüenta sonetos), l994, ¨Solo do Outono¨, poesia, 2000, ¨Jorge Tufic: As Tendas do Caminho¨, ensaio, 2004, ¨Crepuscularium¨, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos: ¨Prosa Vária¨, ensaios, e ¨Poetas e Figuras na Paisagem¨, ensaios. Entretanto, como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à sede da Prudência e Capitalização, na tentativa  de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente da empresa seguradora, quem  nos sugeriu a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um soneto.  Sem demora, Alencar e Silva tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranqüilidade, os quatorze versos solicitados, e, assim, com este ¨passaporte¨ , oficializamos palestras e contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.


       A obra de que estamos nos ocupando, reúne todos ou quase todos os sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns avulsos, sem falar nos improvisos ou nas circunstâncias poéticas ou de foro íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo, nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do neo-simbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva, quando retarda ou deixa ao leitor a fruição  da beleza e da verdade. ¨Quero enxuto o meu verso e muito simples¨  Em  ¨O Soneto no Amazonas¨ (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de ¨Lunamarga¨ como exemplo de ¨linhas calmas e transparentes, despojado de lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de  inovação, por certos autores da corrente futurista¨.

      Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta, representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no  afeto e na convivência humana, de que nunca, jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer. 

                                                                                                    Jorge Tufic

 
 
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terça-feira, 27 de agosto de 2013

ALENCAR E SILVA


ALENCAR E SILVA

 

POR JORGE TUFIC

 
 

      Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se  como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem, contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos ou lingüísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à publicação de obras importantes da literatura amazônica.

      Assis Brasil, no volume ¨A Poesia Amazonense no Século XX¨, relembra que ¨Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e ¨o equilíbrio clássico¨ da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em ¨dicção despojada e serena¨. Enfim, ¨amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua portuguesa¨. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da descoberta: ¨Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, A Tarde, de Aristóphano Antony, e A Crítica, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi feito em O Jornal, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento e no Jornal-Cultura, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e editor¨. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal, cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

ALENCAR E SILVA

ALENCAR E SILVA
 
POR JORGE TUFIC
 
 
      Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin, ¨Roteiro da Poesia Brasileira¨- ANOS 50, Global Editora, SP, 2007, sob a direção de Edla van Steen,- parte de uma série que trata das raízes até o ano 2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos processos criativos de nossa literatura. ¨Os anos 50 foram dos períodos mais férteis da poesia brasileira do século XX ¨ Tempo de grandes aventuras formais, suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da ¨poesia de muro¨, apoiada pelo Clube da Madrugada e outras correntes estéticas que fizeram história.
     ¨Poesia Reunida¨é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e cronista L. Ruas, de saudosa memória: ¨Gostaríamos apenas de dizer que Alencar e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo, o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética¨. E Elson Farias, no prefácio à primeira edição de ¨Lunamarga¨, não deixa por menos: ¨O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira: profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.¨ A fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de Paula, Anísio Mello... 
 

domingo, 25 de agosto de 2013

ALENCAR E SILVA


ALENCAR E SILVA

 
POR JORGE TUFIC
 

     Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.

     Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista de Anísio Mello, ¨Amazonas Ilustrado¨, de 1952, ano este que marca sua estréia na poesia, com o livro ¨Painéis¨. Em 1951 participou de uma caravana de poetas que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos ¨caravaneiros¨, também chamados de ¨monges¨, se inscrevem nos antecedentes do movimento madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu nome: a ¨geração madrugada¨.

     Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante, completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre, também poeta e dos bons, ¨ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação¨(¨Território Noturno¨, Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de ¨Noturno Após o Mar¨, livro de crônicas e poemas em prosa do autor deste livro, ¨Alencar e Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram, e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das sombras, a hora da alegria.¨

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

JORGE TUFIC: POESIA, ESSÊNCIA E MISTÉRIO

(TUFIC AOS 33 ANOS)

 

 

 

                                     JORGE TUFIC: POESIA, ESSÊNCIA E MISTÉRIO

 

 

                                                                       Por José Hélder de Souza

             

              Numa tarde de agosto de 1994, passeávamos Jorge Tufic e eu, pela Avenida Beira Mar, no Meireles, praia de Fortaleza, Ceará, à procura de um bar onde, como aconselhou T.S. Eliot, acertássemos nossos relógios pelos relógios das praças e sentássemos por meia hora e bebêssemos nossas cervejas (as cervejas para o Tufic, uísque para mim ou outra sorte de absinto, como queria Baudelaire), embora não fôssemos, não sejamos, “Homens Ocos”, naquele “reino crepuscular” e aceitássemos a afirmativa do poeta Eliot feita em Cambridge ao debuxar o “Retrato de uma Senhora”: “Pertence a ti (a nós, no caso) toda esta tarde”. Falávamos então, Tufic e eu, de poesia e da falta de poesia em livros ditos de poesia desta nossa época, nesta sobre-tarde de século e de nossas próprias vidas.

                  Sem afetado ar de crítico ou de erudito ledor de poemas, dizia eu, enquanto caminhávamos sedentos rumo a um bar do Mucuripe, ao poeta Jorge Tufic que para ser poesia, o verso precisa ter aquele indizível, inefável mistério, certa incoerência, eufemismos ou modo de interlúnio.

               Agora, nesta minha hora brasiliense também de sol-pôr, lembrando a peripática busca ao crepúsculo, frente ao mar em rumo de um boteco que fosse, encontro, na leitura de “Os Sete Pergaminhos”, V parte, página 121 de Poesia Reunida, do próprio Jorge Tufic (Edições Puxirum, Manaus – 1987), esta feição de mistério do verso, da poesia vigorosa, como se vê:

 

               “Vamos dar tempo, senhor,

               para que a lenda apodreça

               os ramos da verdade”.

              

               São versos amazônicos, só possíveis na escrivinhadura de um poeta que conheceu o paul da selva onde se estiolam ramos e as lianas com que se entretece a lenda. É verdade, me parece.

                 ¨¨Não sei muito de deuses¨ - repitamos Eliot - mas os da mata amazônica, por certo, meteram-se nos versos do acreano Jorge Tufic.

 

            

             “No campo de marte,

               o torso de Aquiles penetra

               a carcaça do seu último galope. ¨

 

 

               Estes versos, embora tragam a intrínseca beleza da poesia e seu mistério – “o sal do verso”, como diz o mesmo Tufic, no soneto “Tarefa”, pág.59 – , poderiam ser escritos por qualquer um outro poeta de qualquer um outro país, com razoável cultura ou conhecimento de outros versos de outras lendas coevas.

               Mas versos como os deste trecho do poema “Fragas e Consonâncias para Nazim Hikmet” (pág.122) – “O arco-íris imita uma cobra / com duzentas lendas de escama” – só poderiam ser gerados nas brenhas amazônicas, onde “...a terra parou. A luz germina / o caos testemunha o grão do inseto, / hasteia o verde”. Versos feitos no entanto sem alusões patéticas à selva, aos meandros da mata diluviana, “o manto aluvial, descendente do bíblico” (Ferreira de Castro, A Selva, pág.193), que tanto assombrou, “galvanizou”, como ele mesmo diz, o romancista português.

               Também quando medita sobre modos de fazer poema, Tufic nos dá – “Poemática”, pág. 186 - a medida exata de sua poesia e onde aprendemos que isto é a “força incorpórea / da semente brotando em nossa mão” (a presença vegetal, sempre) ...”enigmas que circulam entre um / verso e outro verso / entre uma palavra e outra palavra”...

               Na coletânea de poemas A História, integrante de Poesia Reunida e que tem o delicioso subtítulo Cordelim de Alfarrábios (pág.221) vemos se confirmar a amazonidade de Jorge Tufic, digamos assim, se não for impróprio. Nos poemas desta parte do livro, vamos encontrar, de começo, a penetração dos colonizadores espanhóis e lusos desvirginando as matas e as águas primordiais, feitos que Tufic diz deste modo: a “Nova Terra... / com seus remansos de lenda / viu-se um dia ao calendário... / E por janeiros doada / por parte dos reis de Espanha, / ventos foram puídos / de tantas bandeiras rotas; seus rios tiveram sede / pelo sufoco das proas. / E as matas foram recuando / nos olhos do Curupira”.

               Depois, sem descair para o popularesco, como fazem alguns, com onomatopéias imitativas da natureza, percorre as lendas, os mitos da Amazônia:

 

               “Eram livres céus e terras,

               bichos, peixes, águas, fontes,

               livres de ver liberdade

               nas garças e jaçanãs...

               ar livre, praias cobertas,

               grávidas praias, de leve

               urdindo a fala esquecida

               dos uruás e tupanas,

               livres os fios das lendas

               para as tragédias humanas.”

 

               Seguem-se poemas celebrando os mitos, os heróis primitivos, animais e plantas e o homem mesmo, os filhos da mata, do homem que lá se formou desde a origem dos séculos até os simples e humanos heróis – como os soldados da borracha – da vida amazônica vista por Jorge Tufic, suas cidades com suas misérias e grandezas. Tudo num fluir de poesia verdadeira que eu gostei de encontrar dias depois de nosso encontro, Tufic e eu, na praia da Fortaleza.

 

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               Os versos de T.S Eliot aqui citados foram lidos e relidos em Tierra Baldia y Otros Poemas, Coleccion Los Grandes Poetas, Buenos Aires, 1954, e Poesia, tradução de Ivan Junqueira, Nova Fronteira, 1981.

 

 

 


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A PALAVRA NA FICÇÃO


 
                                                                               
Tenho encontrado leitores que me fazem perguntas embaraçosas como esta: “O que devo fazer para aprender a escrever conto, novela, romance?” No mais das vezes, digo-lhes: “Comece lendo os clássicos.” Alguns me responderam: “Mas eu já li quase todos e, mesmo assim, ainda não sei como escrever um conto.” Ora, há dicionários, manuais, tratados que dão noções sobre espaço, ação, incidente, drama, conflito, unidade dramática, história, célula dramática, lugar, tempo, passado anterior ao episódio, tom, personagens, tipos, caricaturas, linguagem, concisão, concentração de efeitos, diálogo, diálogo interior, monólogo interior, discurso direto, narração, descrição, ponto de vista, foco narrativo, primeira pessoa, narrador onisciente, começo, fim. Também o conhecimento de tudo isto parece não ser suficiente para dar ao aprendiz de escritor o cadinho para a realização da obra de arte. E, por falar em cadinho, captei a seguinte lição de Adolfo Casais Monteiro, em Os Pés Fincados na Terra: “A arte não é invenção pura; o artista é como que um cadinho em que se realiza a mistura dos ingredientes que são o pó da experiência.” Muitos sociólogos ditos marxistas insistem em afirmar que toda pessoa é capaz de criar qualquer obra de arte, desde que se lhes dêem condições sociais e culturais para o exercício dessa capacidade. Ora, milhares e milhares de pessoas letradas, bem vividas se dizem poetas porque sabem escrever versos. No entanto, não são poetas ou não conseguem escrever bons poemas. Os gramáticos seriam então os melhores poetas, contistas ou romancistas.  

Muitos desses escritores principiantes estudaram gramática, leram os principais livros – da Antiguidade aos dias de hoje –, se debruçaram sobre manuais, tratados, dicionários de literatura, e, crentes de já saberem tudo e estarem prontos para a criação literária, tentaram escrever contos, novelas, romances. O resultado, porém, tem sido desastroso. Faltou-lhes o quê? Persistência? Nem sempre. Humildade? Talvez. Imaginação? Quem sabe? Talento? Não sei. 

Há quem pense ser mais fácil escrever contos ou poemas curtos que romances. Como se tudo fosse questão de tamanho. Ora, contistas são contistas, poetas são poetas, romancistas são romancistas. Alguns escritores conseguem ser bons como poeta, contista e romancista. Muito contista sonha com um grande romance e frequentemente o ensaia nos contos mais longos. Já o narrador mais afeito à arte de narrar nunca confunde alhos com bugalhos. Confunde-se também conto com crônica, o que é menos grave. Pior é chamar de conto simples anedota, piada, notícia, comentário etc. No livro A Nova Literatura: O Conto, Assis Brasil faz didática distinção entre conto, crônica, prosa poemática e poema em prosa. Crônica é um relato, bastante pessoal, onde o autor nomeia e descreve acontecimentos, criando enredos num tempo histórico passado. O poema em prosa e a prosa poemática são formas confessionais, ausentes de fabulação.

À medida que o homem avança no tempo em sentido contrário à caverna (ou todo movimento é um retorno?) mais se torna difícil expressar-se por conceitos. Assim, a oralidade primitiva se confunde cada vez mais com a escrita dos novos tempos. Isto não quer dizer que o caso, o conto oral tenda a desaparecer. Ora, como não encontrar semelhanças entre o conto rural, que se confunde com a lenda, e o conto urbano de feições realistas? Difícil também delimitar os campos do imaginário e do real. 

A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões entre narradores e teóricos em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações sofridas pelo gênero. Muitos estudiosos elaboraram vastas enunciações do conto. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada conceituação e a cada transformação seria preciso um novo batismo. 

Os manuais, os tratados, os dicionários não tratam de questões menores ou de noções rudimentares da arte de escrever literatura. Pois eu quero aqui dedicar algumas palavras a essas “outras noções” de como escrever “corretamente” prosa de ficção. Ou como não escrever “incorretamente” prosa de ficção. 

Comecemos pelo emprego exagerado de lugares-comuns e gírias. Os livros estão cheios de “nariz aquilino”, “lágrimas de crocodilo” e outros chavões. Se não é possível a metáfora, que se descreva o nariz do personagem com criatividade. Vejamos a gíria na frase: “O gatinho andava ao meu redor.” Ora, daqui a alguns anos quem poderá imaginar que o narrador se referia a um rapazinho e não a um felino? O escritor poderá passar como genial: o “gatinho” seria uma metáfora.

Há escritores que abusam da grafia distorcida de vocábulos, na certeza de estarem sendo fiéis à língua do povo, realistas, e de estarem preservando o idioma português. Ora, por que escrever “home” em vez de “homem”, “bêbo” em vez de “bêbado”, “eu tô com fome”? Neste caso, para ser fiel ao propósito de escrever como fala o zé-povinho, melhor seria: “eu tô cum fomi”. Guimarães Rosa fez malabarismos para não cair nessa esparrela. Escreveu sempre a fala do povo do sertão mineiro, porém com invejável inventividade, sabedoria, consciente do significado de cada sílaba, de cada vocábulo, de casa frase.

O mau uso dos diálogos tem sido outro pecado de muitos escritores. É o caso de personagens do tipo zé-prequeté falando como literatos, isto é, o oposto do uso excessivo de gíria ou transcrição da fala do joão-ninguém. José de Alencar é criticado por ter posto nos lábios de seus índios o modo de falar dos portugueses. Porém, o romantismo tinha lá suas leis, como a de que os diálogos nunca reproduzissem a fala dos “sem fala”. O sertanejo que falasse como o doutor da cidade, com acatamento e respeito às normas gramaticais.

Há também o vício da repetição exagerada de vocábulos, na mesma frase, no mesmo parágrafo, no mesmo capítulo, no mesmo conto. Os mais comuns são: “que”, “mas”, “estava”, “era”. Vejamos este caso: “João dos Bois ia levantar mais tarde. Antes de levantar...” Contemos os “que” neste trecho: “Mieko achava que devia voltar à lavoura novamente e conversa com o Noriel a pedir que ele não contasse a ninguém o que tinha acontecido.” Do mesmo livro é a frase: “Foi só depois que o Roberto tinha levado a Arume que a Mieko achou que podia escrever.” 
Semelhante ao senão apontado é o uso forçado de figuras de linguagem, o emprego desnecessário dos artigos, o descuido na conjugação dos verbos, os cacófatos. Tudo isso é muito comum em narradores brasileiros do final século XX e depois. Para isto, dizia-se: “Fulano não tem estilo.”  


Passemos aos personagens. Um dos erros mais comuns é o excesso de personagens em contos. A não ser que somente dois ou três deles participem diretamente da ação. A primeira causa disso será o surgimento de personagens desnecessários, sem lugar na ação, supérfluos. Depois, a confusão no enredo. O tamanho da narrativa não comporta muitos personagens. E não será a evolução do gênero que irá mudar isso.  


E para que personagens sem nome? Cabível em contos com muitos personagens. Somente os principais, dois ou três, terão nomes.  


Outro equívoco de alguns narradores: o aparecimento súbito de um personagem secundário, irrelevante, e o seu repentino desaparecimento. Melhor excluí-lo da história.


Vejamos a descrição dos personagens. O narrador não precisa descrever o caráter dos personagens. Se fulano é mau ou bom, não cabe ao narrador qualificá-lo e, sim, ao leitor. Suas ações e suas palavras o pintarão aos olhos do leitor. Também é ocioso descrever o aspecto físico dos personagens, especialmente em conto. No romance realista e naturalista a descrição não podia faltar. Como não se deliciar o leitor com o corcunda de Notre-Dame? Porém, a descrição não se fazia gratuitamente. Sem o aleijão do personagem o romance não existiria. A descrição de defeitos ou características não faz sentido, a menos que o aspecto físico do personagem seja imprescindível à história. Se fulano é cego, manco, perneta, se assim descrevendo o personagem quis o narrador simplesmente “enfeitar” a história, homenagear alguém, seja lá o que for – a descrição então será uma excrescência. 


Agora a questão do narrador. Durante muito tempo prevaleceu em prosa de ficção a onisciência do narrador, fosse personagem ou não. Porém, tudo mudou a partir de James Joyce. O narrador onisciente desapareceu. Os pensamentos dos personagens não podem ser do conhecimento do narrador. “Fulano tencionava matar sicrano.” “Ele se sentiu culpado de alguma coisa.” A interferência excessiva do autor-narrador é um mal maior para a narrativa. Assim como o excesso de observações e explicações. Não deve o narrador dar informações, sobretudo se inúteis à trama. Exemplo: “Na curva do caminho surgiu um cavaleiro: era o Vadico, um velho conhecido que batia muito na mulher.” Tal informação é até sem sentido no conto, vez que Vadico nem sequer volta à cena.  


Mencionar nomes de cidades, logradouros, somente se absolutamente necessário ao enredo. Dizer que fulano mora na Rua São Sebastião ou na Avenida Dom João poderá ser necessário, sim. Se não o for, para que o nome do logradouro? Nunca explicar o óbvio. Como assim: “Em Fortaleza, a bela capital do Ceará, vivia fulano.” Aliás, nunca explicar nada. “Isto aconteceu porque...” Melhor o mistério. Cada leitor fará uma dedução. Nunca opinar. “Aquela mulher era má.” Cabe ao leitor o julgamento dos personagens. O narrador não é juiz, não decreta nada. Sua função é tão-somente narrar. 


Moreira Campos, um dos mestres do conto brasileiro ou um dos melhores discípulos dos grandes mestres, seguia à risca as lições de Tchecov. Em “Breves palavras”, apresentação do livro Dizem que os cães veem coisas, escreveu: “Sou fiel, quanto à síntese, ao conceito de Tchecov: ‘Se a espingarda não vai atirar no conto, convém tirá-la da sala.’” Ainda desse mestre a advertência de que, “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira.” 


Em suma: para escrever boa prosa de ficção é preciso além de conhecer todas as técnicas de narrar e muito talento  saber lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, cortar, remendar, costurar palavras, frases, parágrafos inteiros. E não ter medo do cesto de lixo, de ser cruel consigo mesmo. Não ter complacência com o vício, o erro, a mediocridade. Não ter piedade nem de si mesmo nem de personagens.  



O QUE É CONTO?

O que é conto?
Jorge Tufic

Os manuais e os dicionários de literatura ensinam que o conto deve ter em si um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, uma única célula dramática. Por isso, o conto rejeita as digressões e as extrapolações, ou seja, o passado anterior ao episódio é irrelevante, assim como o são os sucessos posteriores. Sendo o tempo limitado ao momento do drama, também o espaço seria circunscrito a uma sala, um cômodo. Sendo tudo tão restrito, por que as personagens seriam muitas? E a linguagem do conto? A da concisão, com predomínio do diálogo. Chegado o epílogo, o contista há de ter guardado um enigma. Ou o desfecho inesperado, embora determinado desde o começo. E mais uma infinidade de regras, limites, modelos.

Se todos os contistas assim elaborassem contos, há muito teríamos deixado de lado esse gênero cada vez mais rico, por se empobrecer, se uniformizar. Pois não é difícil escrever conto com obediência ao enunciado nos manuais. Os próprios escritores de manuais, os dicionaristas, os professores de literatura, os estudiosos do conto seriam bons contistas. Bastava-lhes seguir o modelo. E assim se deu durante muito tempo. E assim se dá há muito tempo. Não se pode negar, no entanto, que bons contistas não se afastaram de todo (ou em todas as composições) desse molde. Machado de Assis elaborou contos de estrutura tradicional. Guimarães Rosa também. E tantos outros. Assim como escritores medíocres realizaram contos de forma nova, moderna ou revolucionária. Ou seja, o bom conto tanto pode se moldar na tradição como na inovação. Ou não se moldar a nada.

Wilson Martins, no artigo “Contistas”, fez estas observações: “Em termos de literatura, escrever um conto não é contar uma história por escrito — é contá-la com estilo literário, ou seja, com elegância linguística, verossimilhança, sábia estruturação no desenvolvimento da intriga, desenho convincente no caráter dos personagens e invenção de pormenores, tudo concorrendo para defini-lo como obra de arte literária. Também nessa arte tem validade a lei de economia segundo a qual a moeda má expulsa a boa: desanimado com a enxurrada de pseudocontos publicados por pseudocontistas, Mário de Andrade, em desespero de causa, declarou ser conto tudo o que os autores designam como conto – afirmação sarcástica cuja ironia passou larga e convenientemente despercebida, com este resultado inesperado e não menos irônico: passou a ser conto tudo o que se publicava como conto...”

Segundo Assis Brasil, em A nova literatura (Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1973), o conto brasileiro se renovou com Samuel Rawet, cuja estreia se deu em 1956 na coleção Contos do Imigrante. E assim argumenta o crítico: “Aquela história linear, de começo, meio e fim, prima-pobre da novela e do romance, quebrava sua feição tradicional em busca de outros valores formais (...) o conto adquiria uma forma autônoma, não mais ligado ao convencional do enredo.”

Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.

            Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica.

Estreou em livro Graciliano Ramos aos 41 anos de idade. Isto não quer dizer que tenha começado a escrever tarde. O exercício de escrever está para o escritor como o exercício de andar e falar está para os recém-nascidos. O aprendizado faz-se lentamente. Escrever, no entanto, não é um mecanismo inerente a todos. Como não o é compor música ou pintar quadros. Exercitar o ato de escrever pode resultar num São Bernardo, após anos e anos de exercício contínuo, diário, quase febril. Ou pode redundar em historietas de gosto discutível. Isso quando o candidato a escritor é muito pretensioso. Quando não o é, termina escrevendo artigos ou reportagens. Se chegar a tanto.

A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte, nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.

O narrador (autor de prosa de ficção), como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver.

Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.

           A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas.

           Todo contista sonhará escrever um grande romance? Contos mais longos seriam ensaios para romances? Talvez sim, inconscientemente. Ensaio que não deveria ser levado ao palco, sob pena de vaias do público. Os bons narradores escrevem contos ou romances e novelas. Nunca confundem alhos com bugalhos.

Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Ora, uma peça curta, como conto e poema, será sempre uma peça curta, mesmo que momentaneamente inserida num volume junto a outras. Quando se fala de “Cantiga de esponsais”, pouco importa se foi publicada neste ou naquela coleção de Machado de Assis, embora só pudesse estar em Histórias sem data, porque assim o quis o autor. Mas isso não significa nada para o leitor (é de interesse do pesquisador, do estudioso, do historiador etc).

Os gêneros literários estão em constante mutação e interligação. No Brasil ainda se praticam contos aos modos de Flaubert, Balzac, Eça de Queirós, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Maupassant, Tchecov e outros, todos diferentes entre si. Uns se perdem no meio do caminho e enveredam pela crônica. Outros querem escrever História, que também é crônica. Há até o conto-ensaio. A maioria, no entanto, permanece presa aos ditames do velho e bom realismo. Uns não se afastam do sertão ou do mundo rural. Outros se transviam pelos becos das urbes. Há os que não sabem de matos nem de ruas e preferem os meandros da mente. Uns leram muito, outros nada leram. Uns souberam vagar pelos abismos de Poe, pularam fora dos livros, outros permaneceram de olhos vidrados na paisagem aberta diante de suas janelas. Uns se exercitaram mais, outros se contentaram com os primeiros mugidos. Tem sido assim, é assim, será assim sempre. 

Não há mais o conto, no sentido tradicional, dicionarizado do termo. Conto é apenas termo literário de manual e dicionário. Para orientação dos editores e dos professores de literatura. Quem disse que Machado só escreveu contos, romances, poemas e crônicas? Gilmar de Carvalho escreve legendas, Carlos Emílio escreve delírios verbais, Jorge Pieiro escreve contemas, outros querem imitar Maupassant ou Tchekov. O que importa não é a forma, se há atmosfera ou não, se há enredo ou não. Ser ou não ser conto, isto é lá para os filósofos. Importa ser arte literária.

Quanto à literatura amazonense, eu lhes sugiro, aqui, se for o caso, recorrerem aos meus livros “Existe uma literatura amazonense?”, “Roteiro da Literatura Amazonense”, “Curso de Arte Poética” e  “Amazônia: o massacre e o legado”, todos ao dispor de consulentes e estudantes na sede da Academia Amazonense de Letras, na qual são mantidos, também, os arquivos pessoais de cada membro desta Casa. No entanto, a partir de 1982, com o surgimento da nova geração de escritores e poetas, essa história muda de rumo na questão do suporte (Internet), podendo ser avaliada nos sites e nos blogs, a exemplo da palavradofingidor, de Zemaria Pinto, hppt://Jorge-tufic.blogspot.com/, entre vários outros que interligam a palavra ao vasto universo amazônico.

A palavra na ficção, problematiza-se ou resulta em ficção. Ave, palavra! De quem saúda, no voar do pássaro, o poder, imenso, que nos engrandece e torna sublimes.

domingo, 18 de agosto de 2013

A METONÍMIA E A SINÉDOQUE

(LIRIA PALOMBINI, GRAVURA)


A METONÍMIA E A SINÉDOQUE
 
                   Não se deve confundir a metonímia com a metáfora, pois a figura metonímica tem o seu objeto real e a este objeto se acha ligada pela nomeação ou “transformação” daquilo ou de algo que com ele se relacione (de causa a efeito, de matéria a objeto, de continente a conteúdo, de ação a sujeito, do genérico ao específico etc.). Como Waterloo, que substitui a derrota de Napoleão Bonaparte no poema “O Livro e a América”, de Castro Alves:


O Livro este audaz guerreiro
que conquista o mundo inteiro
sem nunca ter Waterloo...

                   Sinédoque é a figura do todo que nomeia a parte, ou da parte que nomeia o todo. Vela por barco; água por lágrima etc. Dirigindo-se a uma área específica do ensino de Literatura, alguns mestres advertem tanto para o significado (lógico) das palavras, quanto para a significância destas como instrumentos de poesia, onde a semelhança aparente metáfora/metonímia/sinédoque, confunde os leitores. Será, portanto, fundamental observar as diferenças entre os planos de idealização e a realidade em foco.



II.5.5 - O SÍMBOLO
 


                   Como significado ou representação de algo, o símbolo, em poesia, concretiza-se em, ou passa de metáfora a símbolo pela repetição ou pela incorporação de elementos afetivos, estéticos, entre outros, com força necessária para fixar, geralmente numa só palavra, o terror ou a beleza dos fenômenos evocados. Nelly Novaes Coelho exemplifica o “corvo” como símbolo da morte e do jazigo, citando Bocage. Na galeria dos animais – escreve o professor e crítico Othon M. Garcia – quantos não são os símbolos ou personificações de sentimentos, idéias, vícios e virtudes do homem? A águia, talento, perspicácia e também velhacaria; o cágado e a lesma, lentidão; o cão, servilismo e também fidelidade ao homem, seu senhor; o chacal, voracidade feroz; a coruja, sabedoria; o camaleão, mimetismo e versatilidade de opiniões; o leão, coragem e bravura; a lebre, ligeireza; o rouxinol, canto melodioso; o touro, força física; a pomba, inocência indefesa; a víbora, malignidade... Símbolos... Símbolos... (Comunicação em prosa moderna, Othon M. Garcia, 7ª ed., Fundação Getúlio Vargas).
 


II.5.6 - A ALEGORIA


 
                   Figura inseparável da fábula e da parábola, a alegoria detém um poder de transfiguração total. Suas normas, como espécie de figura, remontam a Quintiliano, que a dividia em pura (a um passo do enigma) e mista, esta última provida de indicações marginais possibilitando a associação da coisa descrita com a subentendida (PDAP, Geir Campos, etc). Com mais pormenores, explica Nelly Novaes Coelho, ob. cit.: “Na transfiguração alegórica já não se trata de um termo real, mas de um todo real (A) que se oculta sob um todo ideal (B). Na alegoria o plano literal vale por si, mas só adquire a sua real significação quando transposto para o plano figurativo. Veja-se, por exemplo, o soneto de Olavo Bilac, “Sahara Vitae” (= o Saara da vida), onde temos – no plano literal da figuração poética – a visão de uma caravana que atravessa o deserto e que é exterminada pelo simum, vento muito quente e avassalador que sopra do centro da África para o norte. Pode-se afirmar que tal soneto é todo ele expresso com signos reais (= a caravana, o céu, o sol, o simum etc.), porém o valor essencial de sua mensagem poética repousa em seu plano significativo transliteral: a visão da vida humana como uma dura e sofrida caminhada para a morte. Aceito nessa perspectiva, ele passa a ser lido como uma série de sugestivos signos metafóricos.”


                   Caindo em desuso e transformando-se desde a Antiguidade Clássica e a Idade Média, a alegoria assume, na prosa, “formas especiais” como o apólogo, a parábola e a fábula.