quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony



Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony



Jorge Tufic



“Cromos Amazônicos” é o mais denso, talvez, de todos os livros inéditos de Américo Antony, somente comparável ao seu irmão mais próximo intitulado “Crisóis”, seguido de perto pelo “Grinaldas Selvagens”, “Canções Perdidas e outras dispersas” “A Alma do Silêncio”, entre vários ainda não classificados para uma titulagem definitiva.

Polariza este livro o já nosso familiar acento melancólico do poeta que se busca encontrar, após anos de ausência, com o berço nativo de seus legítimos antepassados e uma profunda nostalgia, possivelmente cósmica, diante de um mundo lacerado pelos equívocos da História.

Confirma-se, no entanto, que ninguém soube, como ele, Américo Antony, desvendar as queixas do verde, os mínimos segredos telúricos da selva desconhecida, ainda hoje, por quantos se aventuram no empenho de conquistá-la. A metáfora do poeta, contudo, transcendentaliza-se, mas nunca se hermetiza. Ou quando se hermetiza, ainda mais clara se torna. Pode-se até dizer que o seu vocabulário afetivo se concentra, quase sempre, em torno de núcleos temáticos na aparência repetitivos; mas isto é ilusório: seu estilo e sua linguagem emanam da simplicidade que rejeita o supérfluo, colando-se deste modo singular ao fluxo natural de sua dicção predileta.

Américo Antony, embora dono de vasto léxico regionalista, não refoge à tradição poética: cita os deuses das mitologias grega e romana, em sinal mais que evidente de que os tempos primeiros de Jurupari cederam, ou cedem, às pressões externas; e que o futuro já deverá ser pensado como um novo sol que está vindo em contrapartida daquele que nos fugira.

A obra inédita de Américo Antony é bastante volumosa, perfazendo um total de 600 ou mais poemas, devidamente selecionada, ou seja, dando-se por temporariamente “excluído” um volume de páginas ainda não classificadas e tituladas, com inúmeros sonetos d’occasion, mais o “Dardos de Fogo” e a confusa miscelânea de poemas e sonetos a que o poeta não chegara a dar os devidos títulos de sátiras e epigramas, uma espécie de variante que discrepa sobremodo da verdadeira saga poética do autor.

Poeta solitário, contando apenas com poucos amigos, dentre eles alguns jovens que seriam, anos depois, fundadores do Clube da Madrugada, Américo Antony, talvez por este motivo, tudo fazia para conservar seus escritos marcados pela gratidão do artista aos raros, porém fiéis, admiradores que em nenhum momento de sua vida deixaram de acompanhá-lo, rendendo-lhe os merecidos tributos.

Daí nossa alegria em descobrir, já desbotados pelo bolor das intempéries, velhos papéis manuscritos pelo mestre; num destes, ainda intacto, uma epígrafe de Alencar e Silva retirada de um artigo sob o título “Clarões da Selva”, com data de março de 1953, no qual o poeta de “Território Noturno” fala sobre a poesia de Américo; e, como parte do livro “Canções Dispersas”, emerge um soneto dedicado a Jorge Tufic, a quem caberia, em 1987, como presidente do Conselho Estadual de Cultura, a iniciativa de publicar seu longo poema amazônico “Conory”.

Prosseguindo na reunião da obra dispersa do famoso “Ermitão da rua Japurá” daí resultara a formação de mais dois tomos da obra antonyana, além das já referidas “Cromos Amazônicos”, “Crisóis” e “Grinaldas Selvagens”. São eles: “Alma do silêncio”, “Dardos de fogo” e a confusa miscelânea de poemas e sonetos a que o poeta não chegara a dar os devidos títulos gerais.

Em “A alma do silêncio”, o poeta como que apura e intensifica a sua ojeriza pelo terrorismo sociopático da urbe moderna ou modernosa; contrapõe-se a ela assumindo uma atitude de suprema indiferença aos valores mundanos em favor do eu espiritual que só se revela ao contato dos elementos primários, como a água e a pedra das cachoeiras, a flor e o cântico soturno das aves nascidas da luz e do mistério que alimenta as raízes do sonho. O mundo do poeta já não é mais o mesmo. Torna-se incompreendido.

Em “Crisóis”, tanto quanto nos “Cromos Amazônicos”, o poeta sente-se à vontade em dar expansão ao estro temático que o liga às nascentes perpétuas do amor telúrico e da fábula racionalista. Mais neste, porém, do que naquele, o vate amazônico “pensa” tanto quanto se inclina e se rende aos encantos da natureza.

Em “Grinaldas Selvagens”, com surpreendentes “aquarelas” como este soneto que ele intitula “O sorriso da montanha”, o símbolo da flor já contrasta com os primeiros movimentos articulados à destruição das florestas. Sintomático o uso do plural quando a floresta, a biota, é una pelo simples fato de constituir-se um todo, mas que, obviamente, formado por segmentos, ou seguimentos orgânicos, partes, enfim, da totalidade, sem cujas partes nada representa. Daí, florestas. Saber, sabença, conhecimento lúcido de pajé. O soneto deste livro sob o título “Contra a destruição da floresta” é um grito, como há outros no texto, cuja mensagem atualiza, pari passu, qualquer oportuníssima vontade para rever e para reler Américo Antony à luz das estrofes que se fizeram (e ainda se fazem) nas várias moradas de Jurupari.

Enfim, tudo neste opus corre por conta de uma incurável paixão pelos motivos da mata amazônica, de um, quem sabe, enigmático deslumbramento estético pelo todo que se junta às partes e das partes que celebram a totalidade inexaurível do próprio mito.

A primeira incursão pela obra de Américo Antony se dera por iniciativa do Conselho Estadual de Cultura, com base na Resolução s/n, DE 1975, que resultara neste ensaio de Jorge Tufic – “Américo Antony – O último cisne” (aqui reproduzido sob o título de “Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony” – publicado na edição n.º 04, ano I, em julho de 1978, do LIVRORNAL (o livro em jornal).

Fazer o inventário e levantamento do acervo, quer inédito ou édito deste grande poeta amazônico, seria essa, com certeza, a preocupação do colegiado, por mais árduo e tardio que fosse o resgate de mais de 600 manuscritos de sonetos e poemas aleatoriamente reunidos em caixas de papelão, pastas e cadernos deixados por ele.

A inclusão do estudo feito por mim, espécie também de relatório apresentado ao Conselho Estadual de Cultura, tem, portanto, a finalidade maior, 1.º de informar sobre as dificuldades encontradas no decurso da pesquisa destes valiosos documentos, e 2.º acolher o referido trabalho que tem forma mais de relatório da comissão designada pelo CEC, do que propriamente de ensaio crítico sobre a poesia de Américo Antony.

Nova saga do cachimbo


Nova saga do cachimbo



Por Jorge Tufic





Para Haroldo de Campos, i.m







I



Na fria sala a brasa do cachimbo

queima o sândalo morno dos retratos;

tela à distância em que me vejo, nimbo

de outros corpos em torno de outros pratos

em torno de outras mesas; quanto limbo

de uma história que esqueço; estes relatos

vão-se nos rolos brancos: o elo o chimbo

restante da palavra ou destes fatos.

Na fria sala o sol visita o lenço

que deitei sobre lágrimas, e o grito

em cujas notas, hálito, me penso.

Sou página de ensaio sou refino

daqueles que me habitam, do que habito,

fábula tosca em noites de violino.





II



Agora que sou épico modelo

com as faias de Caronte o rosto amargo

desse mar que foi teu, já feito ao largo

a partir de uma estampa ou dum castelo.

Pouco importa se o texto é paralelo

às orlas de tua sede: o nobre encargo

de traduzir solapa as pautas de argo

como um barco se atira contra o belo.

Campos de Haroldo é A última viagem,

Calipso XXIV e Ulisses, este

que a Telêmaco entrega a própria imagem;

ou seja, o cetro e a ilha mais ofícios

de ampla ternura; e que se ponha a veste

dos deuses-lares para os sacrifícios.








III



Cachimbo a solidão deste feriado

quando a urbe completa fica ausente.

Henrique L. Alves surge reluzente

mas logo esvai-se para o Outro Lado.

Muitos partiram, raros têm ficado.

Nas ruas e nos prédios diferente

é o som das pedras largas; pouca gente,

fotomontagens, tempo sossegado.

Um pássaro bizarro altera o clima

do olhar sobre estas coisas; nada o prende

sendo ele vários, prévio, tarde acima.

Outros momentos cruzam-se (de leve).

Alguém pára, se volta; e, ao cabo, entende

que a permanência é estática, mas breve.





IV



Que são, final, cereja, noz, baunilha

no aspirado fruir da gema arcaica?

Pajé lendo caminhos saga incaica

dos primevos cachimbos? De que ilha

nascida de um trigal ou de uma antilha

veio até nós o argílico mosaico

o seco olhar da pedra o signo laico

de gravar entidades numa bilha?

Assim deve ter sido, a par do vinho,

a gênese do fumo e da fumaça:

aquele tinto, a outra feito arminho,

esta saindo em dueto, oval, discreta,

para depois fundir-se no que passa.

E no que passa, funde-se o poeta.


Obras avulsas


Obras avulsas


AOS CONFRADES E AMIGOS DO CHÁ DO ARMANDO

Ao Chá do Armando a taça que faltara
quando, sem mim, quiseram-me presente;
e aos oitenta que sou, alegremente,
um dia a mais tão logo acrescentara.

Laços comuns, saudades, uma rara
força nos une transcendentalmente;
pois, sendo longe, o perto se consente
anular a distância que separa.

Fica-me bem ser lágrimas e rosas.
Mas como agradecer aos meus amigos
pelos brindes, com rimas fastidiosas?

Contudo, a gratidão me transfigura.
Sou-lhes grato, meus últimos abrigos,
companheiros da luz em noite escura.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

MEUS 80 ANOS


MEUS 80 ANOS



Há dias, fui surpreendido com um convite do poeta José Telles para ser homenageado no Ideal Clube de Fortaleza, tendo em vista a data de 13 de agosto, quando deveria comemorar os meus oitenta anos de idade. Pensei, então, que fosse uma simples cortesia da Sexta Literária que ocorre todas as semanas no Clube, e não a festa de onde venho, hoje, carregado de tantos presentes que me foram entregues pelos nobres amigos e escritores Lustosa da Costa, Juarez Leitão, João Soares Neto, Régis Frota e tantos outros. Tudo começa pelo Menu à Jorge Tufic,
com belíssimo prefácio de José Telles, Entrada, Guarnição, Prato principal e Sobremesa. Em seguida, ao calor do afeto de João Soares Neto, recebo exemplares do jornal O Estado, e, vejam só! com artigo de rodapé assinado pelo próprio JSN, sob o título JORGE TUFIC, OITENTANOS. E os telefonemas não param: Ministro Ubiratan Aguiar, Lucio Alcântara, Robério Braga, entre muitos outros, inclusive esta CANÇÃO PARA UM RAPAZ DE OITENTA, do grande poeta continental Francisco Carvalho! Oxalá possa, e vou tentar, fazer o envio de toda essa fortuna sentimental e literária aos meus confrades do Brasil e do Exterior.
Ressaltem-se, ainda, o pôster intitulado Vate Fenício, aliás pastor de ovelhas, de Luciano Maia, e a presença de inúmeras autoridades. Horas após este evento, o Chá do Armando, em Manaus, também se reunia com este mesmo propósito, e eu estive ali, numa viagem espiritual sem precedentes, juntando-me aos queridos Armando Andrade de Menezes, Almir Diniz, Zemaria Pinto, Tenório Teles, Banayas, Simão Pessoa, Sérgio Luiz Pereira, Luiz Bacellar, e tantos outros.
Afinal, aqui registro mais um fato inusitado que, de tempos em tempos, acontece em nossas vidas: trata-se da surpresa que nos colhe, assim de repente, e acaba por mudar os nossos hábitos, mas não para sempre. A partir dos noventa os ciclos etários ficam mais na expectativa da morte, e vão, assim, reduzindo as despesas com a festa dos parabéns.
Obrigado, amigos!

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony



Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony


Jorge Tufic


“Cromos Amazônicos” é o mais denso, talvez, de todos os livros inéditos de Américo Antony, somente comparável ao seu irmão mais próximo, intitulado “Crisóis”, seguido de perto pelo “Grinaldas Selvagens”, “Canções Perdidas e outras dispersas”, “A Alma do Silêncio”, entre vários ainda não classificados para uma titulagem definitiva.

Polariza este livro o já nosso familiar acento melancólico do poeta que se busca encontrar, após anos de ausência, com o berço nativo de seus legítimos antepassados e uma profunda nostalgia, possivelmente cósmica, diante de um mundo lacerado pelos equívocos da História.

Confirma-se, no entanto, que ninguém soube, como ele, Américo Antony, desvendar as queixas da selva, os mínimos segredos telúricos da selva desconhecida, ainda hoje, por quantos se aventuram no empenho de conquistá-la. A metáfora do poeta, contudo, transcendentaliza-se, mas nunca se hermetiza. Ou quando se hermetiza, ainda mais clara se torna. Pode-se até dizer que o seu vocabulário afetivo se concentra, quase sempre, em torno de núcleos temáticos na aparência repetitivos; mas isto é ilusório: seu estilo e sua linguagem emanam da simplicidade que rejeita o supérfluo, colando-se deste modo singular ao fluxo natural de sua dicção predileta.

Américo Antony, embora dono de vasto léxico regionalista, não refoge à tradição poética: cita os deuses das mitologias grega e romana, em sinal mais que evidente de que os tempos primeiros de Jurupari cederam, ou cedem, às pressões externas; e que o futuro já deverá ser pensado como um novo sol que está vindo em contrapartida daquele que nos fugira.

A obra inédita de Américo Antony é bastante volumosa, perfazendo um total de 600 ou mais poemas, devidamente selecionada, ou seja, dando-se por temporariamente “excluído” um volume de páginas ainda não classificadas e tituladas, com inúmeros sonetos d’occasion, mais o “Dardos de Fogo” e a confusa miscelânia de poemas e sonetos a que o poeta não chegara a dar os devidos títulos de sátiras e epigramas, uma espécie de variante que discrepa sobremodo da verdadeira saga poética do autor.

Poeta solitário, contando apenas com poucos amigos, dentre eles alguns jovens que seriam, anos depois, fundadores do Clube da Madrugada, Américo Antony, talvez por este motivo, tudo fazia para conservar seus escritos marcados pela gratidão do artista aos raros, porém fiéis, admiradores que em nenhum momento de sua vida deixaram de acompanhá-lo, rendendo-lhe os merecidos tributos.

Daí nossa alegria em descobrirmos já desbotados pelo bolor das intempéries, velhos papéis manuscritos pelo mestre; num destes, ainda intacto, uma epígrafe de Alencar e Silva retirada de um artigo sob o título “Clarões da Selva”, com data de março de 1953, no qual o poeta de “Território Noturno” escreve sobre a poesia de Américo; e, como parte do livro “Canções Dispersas”, emerge um soneto dedicado a Jorge Tufic, a quem caberia em 1987, como presidente do Conselho Estadual de Cultura, a iniciativa de publicar seu longo poema amazônico “Conory”.

Prosseguindo na reunião da obra dispersa do famoso “Ermitão da rua Japurá” daí resultara a formação de mais dois (2) tomos da obra antonyana, além das já referidas “Cromos Amazônicos”, “Crisóis” e “Grinaldas Selvagens”. São eles: “Alma do silêncio”, “Dardos de fogo” e a confusa miscelânea de poemas e sonetos a que o poeta não chegara a dar os devidos títulos gerais.

Em “A alma do silêncio” o poeta como que apura e intensifica a sua ojeriza pelo terrorismo sociopático da urbe moderna ou modernosa; contrapõe-se a ela assumindo uma atitude de suprema indiferença aos valores mundanos em favor do eu espiritual que só se revela ao contato dos elementos primários, como a água e a pedra das cachoeiras, a flor e o cântico soturno das aves nascidas da luz e do mistério que alimenta as raízes do sonho. O mundo do poeta já não é mais o mesmo. Torna-se incompreendido.

Em “Crisóis”, tanto quanto nos “Cromos Amazônicos”, o poeta sente-se à vontade em dar expansão ao estro temático que o liga às nascentes perpétuas do amor telúrico e da fábula racionalista. Mais neste, porém, do que naquele o vate amazônico “pensa” tanto quanto se inclina e se rende aos encantos da natureza.

Em “Grinaldas Selvagens”, com surpreendentes “aquarelas” como este soneto que o poeta intitula “O sorriso da montanha”, o símbolo da flor já contrasta com os primeiros movimentos articulados à destruição das florestas. Sintomático o uso do plural quando a floresta, a biota, é una pelo simples fato de constituir-se um todo, mas que, obviamente, formado por segmentos, ou seguimentos orgânicos, partes, enfim, da totalidade, sem cujas partes nada representa. Daí, florestas. Saber, sabença, conhecimento lúcido de pajé. O soneto deste livro sob o título “Contra a destruição da floresta” é um grito, como há outros por todo este livro, cuja atualidade atualiza, pari passu, qualquer oportuníssima vontade para rever e para reler Américo Antony à luz das estrofes que se fizeram (e ainda se fazem) nas várias moradas de Jurupari.

Enfim, tudo neste livro corre por conta de uma incurável paixão pelos motivos da mata amazônica, de um, quem sabe, enigmático deslumbramento estético pelo todo que se junta às partes e das partes que celebram a totalidade inexaurível do próprio mito.

A primeira incursão pela obra de Américo Antony se dera por iniciativa do Conselho Estadual de Cultura, com base na Resolução s/n, DE 1975, que resultara neste ensaio de Jorge Tufic – “Américo Antony – O último cisne” (aqui reproduzido sob o título de “Conteúdo e visão geral da poesia de Américo Antony” – publicado na edição n.º 04, ano I, em julho de 1978, do LIVRORNAL).

Fazer o inventário e o levantamento do acervo, quer inédito ou édito deste grande poeta amazônico, seria essa, com certeza, a preocupação do colegiado, por mais árduo e tardio que fosse o resgate de mais de 700 manuscritos de sonetos e poemas aleatoriamente reunidos em caixas de papelão, pastas e cadernos deixados por ele.

A inclusão do estudo feito por mim, espécie também de relatório apresentado ao Conselho Estadual de Cultura, tem, portanto, a finalidade maior, 1.º de informar sobre as dificuldades encontradas no decurso da pesquisa destes valiosos documentos, e 2.º acolher o referido trabalho que tem forma mais de relatório da comissão designada pelo CEC, do que propriamente de ensaio crítico sobre a poesia de Américo Antony.

AO FINGIDOR



AO FINGIDOR


Jorge Tufic

Revejo a praça, o bar, o teatro, a igreja.
A tarde deixa o dia ali na esquina.
Logo chega o Simão, e a noite ensina
que antes do papo venha uma cerveja.

Agora o bar do Armando é uma oficina.
Em cada peito um fingidor lateja...
Zemaria sussurra, alguém troveja,
mas tudo é festa, brinde, serpentina.

Que seria de nós ou da Poesia,
se além da “crise” bar virasse banco,
praça, estacionamento, o que seria

das estrelas, do nimbo e do luar,
se de repente um verso – azul ou branco –
já não tivesse mais onde pousar?

Guimarães e Tufic


Guimarães e Tufic



O ilustre poeta e ensaísta Jorge Tufic, como membro do Clube da Madrugada, recepcionou e foi hostess do escritor Guimarães Rosa quando este esteve pela primeira e única vez em Manaus, em 15 de janeiro de 1967. É sobre esse encontro, ocorrido há 42 anos, que Tufic nos conta um pouco.



Revista Literária – O que Guimarães Rosa veio fazer em Manaus naquele ano de 1967?

Jorge Tufic: Guimarães Rosa esteve em Manaus de passagem para uma reunião diplomática, se não me engano, em Bogotá, na Colômbia. Questões lindeiras.



RL – De quais atividades, culturais ou não, ele participou na cidade?

JT: Não houve tempo para isso. GR nos dera a impressão de que estava querendo aproveitar os dois dias que passaria em Manaus, a) conhecendo o Clube da Madrugada e b) ultimando questões diplomáticas do Itamarati (ao mesmo tempo em que se empenhava em experimentar um suco de taperebá). Tentei ajudá-lo nesse último desejo, mas, lamentavelmente, ainda não era época da fruta.



RL – A vinda do escritor famoso mexeu com a comunidade literária de Manaus? Cite nomes de quem participou da estada dele na cidade.

JT: De fato, mexeu com a turma do Clube. O restante dos intelectuais e escritores da terra, visceralmente apegados à tradição acadêmica, ficara à distância. Tanto que não houve imprensa nem fotógrafo no jantar que lhe fora oferecido pelo Clube da Madrugada, ali na Peixaria do Balaio, ou do velho Francisco, ao lado fluvial da Igreja dos Educandos. O Clube em peso compareceu ao ágape: Aluisio Sampaio, Ernesto Pinho Filho, Afrânio Castro, Saul Benchimol, Francisco Batista, Sebastião Norões, Farias de Carvalho, todos, enfim, com algumas exceções. Vale informar que ele, o grande Guimarães Rosa, ficou na berlinda diante de seus mais aferrados leitores, como Ernesto Pinho e Aluisio Sampaio, dando respostas breves, contudo substanciais quanto às personagens realmente polêmicas de seus romances, a exemplo de Grande Sertão Veredas e Sagarana. Outro fato histórico nessa sua rápida passagem por Manaus: dali a uma semana o nosso ilustre visitante tomaria posse na Academia Brasileira de Letras. Logo a seguir, se “encantaria”.



RL – Que impressões, em você, ficaram dele?
JT: Impressões indefiníveis só comparáveis a um prêmio que eu tivesse recebido, ainda sem o merecer. GR era um ser todo afeto, carinho verbal, solicitude, companheirismo nas andanças por onde quer que o levássemos, talvez para demonstrar com isso a plenitude da criatura, antes do criador. Quanta saudade ainda hoje sinto dele, quase uma falta, apesar das poucas horas de nosso contato.



João Guimarães Rosa, mais conhecido como Guimarães Rosa, nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908. Foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, bem como médico e diplomata.

Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais. Tudo isso, somado a sua erudição, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.

O escritor morreu de infarto, dez meses depois de ter vindo a Manaus, em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro.

Guimarães Rosa em Manaus

Jorge Tufic, jorgetufic@hotmail.com



Considero imperdoável a omissão de um fotógrafo no jantar, a céu aberto, que o Clube da Madrugada ofereceu ao romancista João Guimarães Rosa, em sua única visita a Manaus, ocorrida a 15 de janeiro de 1967. Vinha o escritor em missão diplomática, mas a primeira coisa lembrada por ele não foram os pontos turísticos nem os homens de letras. Foi um refresco de taperebá. Pronunciava o nome da fruta com a mesma ênfase, o mesmo carinho ácido, a mesma teimosia infantil com que dava ao buriti de seu lugar de nascimento o feitio acabado de uma personagem de suas novelas. Este episódio tipicamente roseano é aludido pelo ensaísta Ítalo Gurgel, no estudo admirável que publica sobre “João: Um Vaqueiro de Cartola”: “As alusões ao buriti tornam-se, às vezes, quase obsessivas, como neste trecho do conto “Cara-de-Bronze”: “... e água, e alegre relva arrozã, só nos transvales, cada qual, se refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os buritizais, os buritis bebentes”. E Carlos Drumond de Andrade, mineiro como o nosso ex-diplomata, indaga num poema dedicado ao conterrâneo: “Tinha pastos, buritis plantados/ no apartamento?/ no peito?”.



(Trecho de uma crônica de Jorge Tufic, no seu livro “Tio José”, sobre a primeira e única vinda de Guimarães Rosa a Manaus, há 42 anos).

Pacote poético


Pacote poético



Rogel Samuel






Recebo um pacote pelo correio, um pacote amarelo que apalpo e que sinto, há objetos dentro, possivelmente livros: sim, são cinco novos livros de Jorge Tufic que eu lhe pedi pelo telefone e eu fico me lembrando que, há quarenta e três anos atrás, ele publicava o seu já clássico Varanda de pássaros.

Como pode Jorge Tufic manter 43 anos ininterruptos de poesia apesar da crise por que passa a produção cultural brasileira e a amazonense em particular? Porque depois daquele grupo do Clube da madrugada muito pouco produziu a poesia de Manaus.

Eu adolescente e Tufic já era dono de uma poderosa lira que se afirmava principalmente nos seus sonetos extraordinariamente inovadores. Na década de 80 nós nos correspondíamos, depois ele se foi para Fortaleza e o perdi de vista. Soube que foi homenageado no Rio de Janeiro, onde moro, mas não o vi porque estava viajando.

A última vez que o encontrei foi no ano passado, em Manaus, no Galo carijó, onde gosto de almoçar sempre que estou em Manaus (também deparei ali com o Thiago de Melo, donde se conclui ser aquele bar um ponto da poesia presente).

Agora, além de seus cinco livros, vieram várias pequenas publicações, entre as quais o belíssimo Agendário de sombras, uma coleção de sonetos dos quais cito, ao acaso:

Necessito do rio e da paisagem
que me vira partir quando menino.
da visão surpreendida ou desse quanto
pode haver em redor do meu destino.
eram coisas e seres do meu tempo,
partes de mim que a vida, em seu balanço,
foi deixando passar, nuvem sujeita
aos ventos, matéria sujeita ao ranço,
rubros sóis de verão, coleita breve
de azeitonas e ocasos, também contam.
Soldado entregue ao chumbo dos brinquedos,
ao som, talvez, das águas deste inverno,
quero sentir na pele evanescente
como eu seria agora, antigamente.

Ao poetas menores como eu, Tufic humilha, com a força da sua Linguagem: mas como pessoa ele tem a gentileza dos mais nobres corações e nos brindou com imerecidas dedicatórias.

Dentre sua produção recente, no ano passado ele publicou Sinos de papel, um delicioso livro de haikais que bastaria para o consagrar:

Paineira caiada
Por uma lua de espuma
Tão cheia de nada.

Jorge Alaúzo Tufic nasceu no dia 13 de agosto de 1930 e publicou seu primeiro livro aos 25 anos. A Amazônia dele se orgulha.


(Rio, 30 de setembro de 1999)

As noites voadoras de Jorge Tufic


As noites voadoras de Jorge Tufic

Rogel Samuel

Na poesia de Tufic tudo voa, são estrelas, cintilam caminham no céu daquela Amazônia mítica, luas várias luas que se contam com as mãos, narrativas dos nossos mitos, viagem dos Desâna, canoas de cristal, transformadoras, estórias e sabenças de quem vive sozinho no meio do mato, faro de onça, muirakitãs da lua nua, que se despe na entressafra do amor,

despenca uma folha
e o verão estremece

Passarinhos que ouvem nossas conversas, na terra macia escrevemos nossos textos (nunca se sabe, tampouco, - porque se chama de vazio – o espaço da natureza).

Que será de ti, Amazônia? Cavidades, rangidos

Subitamente sou árvore,
flor, pássaro e livro.
Um livro cujas páginas
tomaram a cor e o risco
da música e da pedra.

..........
cinzel que não fere,
da jaula inconsútil.

(Texto escrito com “Quando as noites voavam”, de Jorge Tufic – Fortaleza, 2011.
Ele é o grande cantor da Amazônia!)








QUASE TEATRO – PURO CINEMA



QUASE TEATRO – PURO CINEMA




Almir Gomes de Castro lança um livro surpreendente –Kuriquiã --,biografia romanceada, de sopro épico. É a vida, na região acreana do Alto Purus, de imigrantes da família do brilhante poeta Jorge Tufic, que lá abriu os olhos para o mundo e viveu a infância e além dela, transferindo-se depois para Manaus. Vale-se Almir da primeira pessoa, como se o poeta contasse essa odisséia dos que vieram de longe, além mar, nordestinos e habitantes da selva, com os seus segredos, sustos, dura realidade e lendas, em amostragem um tanto teatral e cinematográfica. Surpreendente como o autor praticamente tudo transferiu para o campo das falas, exsurgindo disto uma visão bastante impressionista das personagens e da região. O narrativo, com isto, comanda a história, e o descritivo tornou-se quase elíptico, sem perder nenhuma qualidade criadora ou desvirtuamento da verdade. E o curioso vai mais longe: o poeta Jorge Tufic, personagem principal, narrador, pouco aparece, mas está presente nas entrelinhas como uma sombra quase palpável, e o drama e a trama da história fogem do caminho estreito e se ampliam na vida das personagens e da região.
Eu sabia palidamente das origens acreanas do grande poeta Jorge Tufic. E agora, neste livro, vi, palpitando, em que mundo ele nasceu ,cresceu e absorveu desse mundo real e encantado, sem perder os liames seculares dos seus. A ótica narrativa abre-se muito, com suas tramas difusas e ao mesmo tempo unas, trazendo ao vivo a vida das personagens, e ele, o poeta, parecendo se resguardar, não fica em segundo plano, eis que é um espelho acompanhando tudo de perto.
A ascensão do poeta na vida, em Manaus, e projetando-se nacionalmente, vem em fulguração rápida. O livro é um recado: este é o seu passado, estas as suas raízes, laboratório da sua caminhada. E aqui chegou com nova arte poética, respeitada e admirada no país inteiro.
Este livro é cinema. Daria um belo filme.
Almir Gomes de Castro soube treliçar e destreliçar os cordéis para escrevê-lo. E o poeta é mais do que merecedor desta quase prece.
É tão fácil tirar a prova... Bastará ler o livro.


Caio Porfírio Carneiro

POEMA-CORAL DAS ABELHAS


POEMA-CORAL DAS ABELHAS
OU
AS VOZES SÍGNICAS DE JORGE TUFIC
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Márcio Almeida

Poeta de muitos e bons livros, reconhecido “por seu próprio canto” (Adriano Souto), distante “de qualquer classificação tendencial” (Fábio Lucas), por sua “fusão de ritmos, percepções, alegorias – um pot-pourri conceitual em que o autor transita do lírico ao social” (Ronaldo Cagiano), “cristalizado no senso pragmático e racional de absorver a trama do mundo e da vida” (Hildeberto Barbosa Filho), em cujo livro Poema-coral das abelhas “personaliza as passagens inteiriças da memória”, em “fragmentos de pequeninos hábitos que reinventam o ofício do próprio canto” com “doses de humor, ironia e ludismo”, culminando esse labor na “transdicção ossificada do poema” (R. Leontino Filho) – Jorge Tufic tem a vantagem de escrever poemas que o leitor tem mesmo o prazer de (re)ler, pelo simples fato de serem poemas.
Em Jorge Tufic, a poesia poesia (Augusto de Campos). Os poemas do seu livro reúne incidentes roteirizáveis, cuja base narrativa promana da poesia oral com seu “depósito mental” de signos semiotizando algo numa pós-modernidade que mais parece se esconder nas ruínas de seus pensares e saberes.
Seu pot-pourri conceitual poderia abranger, por exemplo, uma leitura metalingüística da poesia com o seguinte travelling: “a fundação da escritura” (37) “engessa a fratura dos mortos” (38), “liberta os signos cativos” (44), para que “as ruínas pudessem ser vistas – como um ricto necessário da paisagem inútil” (45), porque, na poesia, há “audíveis silêncios” (58), e, no espaço, “aldebarãs silenciosas” (60), tudo, poeticamente, “com a vigília dos signos” (68). E porque ao poeta é dado “muito papel – plumas de fingidor – tear de dedos que se costuram” (85), ainda que o poeta seja “um ser transparente. – Invicto. – Desnecessário entre porcos, hienas e outros viventes- solidariamente incompletos” (90). De tudo, a única e realista conclusão: “a luz que se deita – é o que sangra o carvão das palavras” (101).
E com efeito de completude, o poeta se anuncia em heteronimidade autoral: “Sou tantos que uns me confundem – com o lixo das gráficas” (49).
Joshua Brown dixit: “Desenhar o familiar é um modo de promover o envolvimento crítico.” Jorge Tufic dixit: “Desenho um girassol, - e o mundo todo compreende, - mas não aplaude. – Escrevo um girassol, - e o mundo todo aplaude, - mas não compreende” (Semiótica, 34).
O poeta instaura uma revificação das ruínas como conditio do tempo na memória hereditária, que planta raiz nas palavras: “Meu corpo, feito escombros – relampeja” = Mnemosine X Catão, o que queria destruir Cartago, origem de Tufic. A transdicção por quem se propõe a ser, na poesia, “mínimos cristais de amônia, sal e orgasmo, centelhas” (15).
O poeta faz isso através da cristalização da linguagem: “cristais de amônia” (15) – “concha de larvas ardendo em topázios” (16) – “cristais se fundem no brinde sem eco” (20) – “que sabe do brinde o cristal?” – que sabe do vidro a madeira” (25) – “uma família inteira de pedras – conversa neste bosque” (43) – “a solidão metálica dos búzios” (51) – “levíssimos pontos alados (...) – deve ser este o ritmo – o que amadurece o outro – e pulveriza o diamante” (56).
A coisidade lírica drummondiana: “De casemira inglesa – meu pai sai para a missa. – E eu fico à janela – esperando crescer” (61) – “Que imensa gruta é o homem – quando fecha os olhos” (62) – “Era a doce rua venta-mundo – onde encantados redemoinhos – faziam ciranda de poeira e papel” (64) – “O inverno, me disse – um velho que tinha um castelo – é irmão da velhice” (73).
Ouve-se também no livro o zumbido-partícipe do poeta meio ocidental, meio Oriente Médio, em sua guerra da linguagem contra as guerras e a estultícia da destruição: “O terror da fumaça – desenha um bisonte – que sai do petróleo” (Oriente Médio, 49). “Revestidas de ouro e papel – as rochas metálicas, uma por uma – tombam sob um coro de lágrimas” (Afganistão, 86). A guerra da poesia contra a infâmia (ou excrescência, diria Nietsche) do esquecimento, caso do poema “O massacre da praia”:
Apenas o que está impresso
ganha relevo sob as asas do abutre
que rege este dia.
Todos os habitantes da cidade
nos deixaram esse monstro:
um fim de semana deserto,
uma composição arbitrária de musgo,
telhados ocres, ruas
como serpentes digerindo
a ferrugem e o enxofre azedo dos
depósitos vigiados pelo olho frígido
que nos segue, fixa e mata.
Apenas um texto que se repete,
confirma os alicerces da manhã.
O amor é negado.
Tornam-se inúteis e vagas
as estruturas de aço e concreto,
espaços de lazer, terraços de há muito
tomados somente pelo fantasma da poeira.
Nunca se pôde evitá-lo:
diminuta centelha de urânio
implode o nexo evasivo
entre a praia silenciosa e a urbe
sedenta de privilégios.
Eliminam-se os irmãos,
enterram-se vivos os primos,
liba-se o vinho nos crânios pulsantes,
reviram-se as malas, consagra-se o
martírio em nome dos ratos que ficam
da terra que se move, arenosa,
da reza que voa,
para onde, Senhor?

RAÍZES FENÍCIAS DO CORAÇÃO BRASILEIRO


RAÍZES FENÍCIAS DO CORAÇÃO BRASILEIRO

Descubro numa pasta dos anos 60, um tanto amarelada e rota, as seguintes anotações feitas por mim com o auxílio de fidelíssima maquineta, há muito aposentada pelos computadores: ¨meu bisavô chamava-se Jorge Alauz e mantinha uma casa de Câmbio em Beiruth, capital do Líbano. Sua esposa chamava-se Nahha. Jorge Alauz sofrera um assalto organizado contra seu estabelecimento comercial, ficando reduzido à falência. Após este incidente mudara-se para a cidadezinha litorânea de Batroun. Tinha quatro irmãos: Calil, que exercera até o final de seus dias o cargo de Administrador (espécie de Morgado) de um dos mais importantes distritos de Beiruth; Salim, médico ilustre que, segundo José Daher Bitar, esteve em Manaus e assistira o então Governador do Amazonas Jonathas Pedrosa ao cabo de séria enfermidade, logrando êxito e fama; Amin, que morrera no cargo de Delegado de Polícia em Beiruth, em conseqüência de um edema pulmonar resultante de agressão física; e Nahumm, homem simples e trabalhador. Salim tivera um filho de nome Farid, que fora médico do Rei Fayçal e família.¨
Jorge e Sofia, nossos avós, tiveram três filhos e três filhas nascidos em Batroun.
. Al-Batroun, quarto município do Líbano, segundo estatística de 1945, abrange (ou abrangia naquela data), setenta e cinco localidades. Numa dessas nasceram nossos pais e os pais de nossos pais. Região litorânea, mas como todo o Líbano pertencente à Nova Fenícia.
Dali emigraram os três irmãos da família Jorge (ou Alaúz, já no Brasil Alauzo ou Alaúzo, por força das mutações burocráticas), ou seja, pela ordem do mais velho ao mais novo: José, Estevam e Taufik (depois também modificado para Tufi ou Tufic, tudo por conta de um vezo que até hoje persiste nos Detrans da vida: aqui, por exemplo, eu sou Tufia na carteira de motorista e nada, nem mesmo dezenas de pedidos, conseguem a justa reparação).
José chega ao Brasil em 1900, Estevam em 1904, Tufic em 1908. Da Guerra pela emancipação do Acre aos bombardeios de Hermes da Fonseca, em 1912, os três participaram na defesa do Acre e de Sena Madureira. E com muita honra. Glória essa no entanto obscura, posto que nada sabiam da língua portuguesa, apesar da prática de guerrilha contra os turcos e dos freqüentes combates de rua entre católicos e xiitas.
Ajudou-me nesta pesquisa o meu irmão José Tufi, cuja novela desse antepassado ele divide em blocos, valendo-se apenas da memória ao correr da esferográfica, sem a menor pretensão literária. Além do essencial referente ao desenho de nossa árvore genealógica, vimos assim que, como no Brasil, existe no Líbano a liberdade de culto, predominando as seguintes religiões: Maronita (católicos apostólicos romanos do Oriente); Melkita (católicos apostólicos romanos melkitas); Ortodoxa (cristãos da ortodoxia Oriental); Sunitas e Xiitas (seitas maometanas); Drusos (uma espécie de Ordem Mística muçulmana); que os fenícios de Cartago e outras colônias costumavam deixar inscrições alusivas à sua passagem nos vários continentes, 500 anos antes de Jesus Cristo; várias destas foram encontradas na Paraíba (Brasil), sendo até hoje objeto de estudo nos países mais adiantados do mundo; que a palavra ¨fenícia¨ deriva etimologicamente do grego: pardo, vermelho, tâmara, fogo, destruição, renascimento; que até 1850 a língua falada no Líbano ou Nova Fenícia ainda não era o árabe, e sim o aramaico.
Na planície costeira desse país situa-se Batroun ou Al-Batroun, cidade dos nossos antepassados, terra de nossos pais (este pronome ¨nosso¨, também adjetivo, há de surgir, aqui, talvez na contracena da primeira pessoa com a pessoa do irmão, sempre ao meu lado). A longa viagem começa.
Segundo ele, são os nossos avós paternos Jorge José Alauzo e Sofia Alauzo, genitores de José Jorge Alauzo, Estevam Jorge Alauzo, Tufic Jorge Alauzo (nosso pai), Vitória Alauzo, Marie Alauzo e Hessin Alauzo, entre tios e tias. Avós maternos: Hibrahim Abukora (o homem da touca, em árabe) e Ketbi Awaygen Abukora, genitores de Ashad Awaygen Abukora, Lulu Awaygen Abukora, Faride Awaygen Abukora (nossa mãe) e Futin Awaygen Abukora.
Jorge José Alauzo, de uma tradicional família que lidava com o ramo de tabaco, herda o comércio de seus pais e a essa atividade se dedica até o final de sua existência.
Sofia Alauzo ajuda o marido na indústria de cigarros, charutos, fumo para cachimbo e tâmbak (tabaco para o arquile ou arguilé). Era ajudada nessa tarefa por uma irmã cujo nome se perdera ou apenas não chegara ao nosso conhecimento.
José Jorge Alauzo fora o mais velho dos homens. Profissionalizou-se em tabacaria, marcenaria etc. Filósofo por vocação, participou de algumas sociedades como Conselheiro, mas não conseguiu ficar no Líbano invadido pelo exército turco, viajando para o Brasil em 1900.
Estevam Jorge Alauzo, o segundo filho dos homens, trabalhou e estudou com os turcos durante a juventude, aprendendo seu idioma. Foi torneiro mecânico e administrador comercial. Seguindo o irmão mais velho, emigrou para o Brasil em 1903. Teve existência atribulada, posto que, em 1914, volve à terra natal onde conhece, em Beiruth, sua futura esposa que lhe dá um casal de filhos. Impedido de voltar ao Brasil durante a I Guerra Mundial, fica no Líbano até o ano de 1919, quando retorna sozinho tendo por objetivo trabalhar e, assim, poder trazer a família para a sonhada América (América na época era tudo, desde os EE.UU às últimas barrancas do Acre).
O drama de Estevam se resume numa longa novela inspirada pelo destino. Pois não houve dinheiro que lhe trouxesse a mulher e os filhos para o seu convívio. Ela acabou ficando com os numerários destinados às despesas de viagem, e, finalmente, com as casas do Líbano.
Tufic Jorge Alauzo, o mais novo dos irmãos seguiu esse mesmo caminho, vindo juntar-se a eles no ano de 1908.
Vitória Alauzo foi professora e diretora de importante colégio em Batroun ou Beiruth, aqui fica a dúvida. Morreu solteira, com oitenta anos de idade, jamais trocando sua praia pela praia de ninguém.
Marie Alauzo também foi professora, esta de idiomas, e também morreu solteira sem nunca ter deixado o seu Líbano querido.
Hessin Alauzo era estilista e formada em Administração. Foi a mulher mais bonita de seu tempo. Ela esteve no Brasil em 1919, ficando durante um ano em Sena Madureira, junto aos irmãos José, Estevam e Tufic. Como filha primogênita e na ausência de homem para substituí-la, cabia-lhe a função de orientar a família; daí que, apesar de um noivado no Acre, seu irmão maior, nosso tio José, consegue desmanchar o compromisso matrimonial e fazê-la tomar o caminho de volta.
As três irmãs viveram e morreram solteiras.
Nosso avô materno Hibrahim Abukora era pescador e escafandrista, profissões legadas pelo seu pai e tios. Em 1904 ele esteve no Rio de Janeiro, onde nasceu nossa tia Lulu. Mas ali não se demora, logo regressa ao Líbano. Cercado pelo carinho dos seus, falece de gripe espanhola, uma das pragas da Guerra de 14.
Agora viúva, nossa avó Ketbi reúne seus filhos e vem para o Brasil em 1919. Estão com ela Ashad, já casado e pai de dois filhos e as três irmãs Lulu, Faride e Futin. Cada um deles com as suas lembranças da infância, do salso argento mediterrâneo, das moedas de ouro que os ingleses lançavam naquelas águas verdes e transparentes, logo resgatadas pelos nadadores mirins. A casa de dois andares em que moravam em Batroun, voltada para o mar, também veio com eles como a doce arquitetura de uma saudade comum.
Como já disse, Lulu era carioca de nascença, mas foi levada de volta para o Líbano ainda nos cueiros. Estudou em bons colégios, tentou escrever alguns pequenos romances em árabe, essa mesma língua do nosso primo Gibran Khalil Gibran, reduzindo-se com a idade a uma excelente devoradora de livros, enquanto aplicava o melhor de si na feitura de quibes, alfenins, recheios, caftas, pastéis, massas folhadas etc.
Faride tinha quinze anos quando chegara ao Brasil. Aqui, sob o comando da super-mãe Ketbi, tomara gosto pela culinária, prendas domésticas, medicina caseira. Não me canso de elevar os olhos para um retrato das três irmães, numa postura de época.
Futin, a mais nova, adentrava os onze anos de idade quando chegaram a Manaus. Na capital do Estado do Amazonas, ainda com doze anos completos viria a ser apresentada ao seu futuro marido Nicolau Akel, alfaiate bem sucedido, proprietário da Alfaiataria Poli, cartão postal no cenário urbano daquela cidade.
Ashad, o primogênito do casal Abukora e Ketbi, era um exímio escafandrista. Sonhava ter navios, mergulhar nos pélagos menos freqüentados do mundo, emergir de lá com a alegria dos caçadores de pérolas, trazendo-as no olhar, embora de mãos vazias. Diz-me o Zé meu irmão que este assunto é de um outro bloco.

* * *

Antes de irmos encontrar os três irmãos que agora, juntos no Acre, acompanham o desenvolvimento do novo território, convém fazer um esclarecimento sobre as duas casas em apreço: Casa da Família Jorge (Beth Jarjura) e Casa da Família Hibrahim ou Awayjan (Beth Brahim), as quais aparecem também como Alauzo (originariamente Alauz) e Abucora (o homem da touca). Trata-se, na verdade, segundo o costume, de simples alcunha, sendo que Alauz (ou seja, furta-cor ou manto de vários matizes) este nasceu por obra do acaso: diz-se que o veterano Jorge, nosso bisavô, se atrasara na visita que fazia, de tempos em tempos, a uma localidade chamada ¨Aldeia dos Rapazes¨, industrial por excelência, para a entrega de encomendas de tabaco, entre outros produtos. Os habitantes da cidade ficaram de vigília, dias após dias, quando, de repente, a carruagem do homem que usava um manto de três cores aponta numa curva da montanha. De longe, ao ser identificado o garboso cocheiro já não teve mais como evitar o epíteto, de resto irônico, festivo e oportuno.
Pois agora ali estão, os descendentes. E em Sena Madureira, município fundado em 1904, três anos depois da chegada de José Jorge, o mais idoso dos irmãos, às conflagradas terras da guerra com a Bolívia. Em pleno domínio dos coronéis de barranco, na qualidade de construtor civil e regatão, enfrentara ele projetos grandiosos como levantar escolas, prefeituras, lojas, residências, barracões etc. Na opinião dos contemporâneos, José Jorge, como sempre fora chamado, tirou do nada a bela princesinha do Iaco. Esgotada essa fase, ele prepara um armazém de seis portas comerciais (negócio de tecidos e armarinho), dando ao mesmo o título de ¨Casa Três Irmãos¨, sociedade que iria perdurar até 1932.
Estevam, convalescendo do trauma causado pela mulher, a quem havia transferido o grosso de suas economias, parece melhorar de saúde.
Tufic Jorge, fortemente submetido ao comando do irmão José, vai a Manaus em busca de uma jovem libanesa para se casar. Encontra a respeitável família Abukora, de sua terrinha, reconhece a Faride, aquela do meio, com apenas dezessete anos de idade, e neste exato dia 26 de abril ambos recebem as alianças da consagração nupcial. Tufic deixava a vida de solteiro aos 34 anos de idade. Sete anos depois, em 1930, nasce o novo Jorge da nova geração; 1932 é a vez do José. Há qualquer coisa de misterioso na repetição destes sobrenome e codinome.

* * *

Em 1924, Ashad ganha o maior prêmio da loteria federal. Todos moravam numa casa da rua Quintino Bocaiúva, em Manaus, no simpático quarteirão que fica entre a avenida Joaquim Nabuco e a Dr. Almino. As mulheres costuravam e faziam iguarias para vender. Nossa mãe, durante esse período de 1919 a 1923 talvez achasse que a unificação de sua família fosse durar para sempre, mas o evento da sorte grande lhe deixaria uma espécie de vazio jamais preenchido, mormente Ashad, prevendo retornar ao Líbano com D. Ketbi, lhes tenha presenteado com jóias e dinheiro. Antes da partida, no entanto, esta se empenha no casamento das filhas: Lulu casa-se com Simão, Futin com Nicolau, Faride com Tufic Jorge Alaúzo. Simão também era sortudo: chegou a ser premiado com 50 contos pela loteria, fez jus a dois automóveis assinando uma rifa. Entretanto, dado à boêmia e à vida noturna, acabou perdendo até o que não tinha, separou-se da esposa (Lulu, para sobreviver, teve que abrir uma quitanda na rua dos Andradas, esquina da Pedro Botelho).
Nesse entremeio, um verdadeiro romance perfuma as cartas que vinham sendo trocadas por Lulu e tio José, lá pelos idos de 1937 a 39, oportunidade que ela aproveita para visitar Sena Madureira. Ali se casam e passam a viver na rua Purus, a 200 metros de nossa casa, na rua Amazonas. No meu livro de memórias I, ¨A Casa do Tempo¨, esse imóvel ¨aparece¨ anexo à oficina do mestre, onde sempre o via debruçado em sua escrivaninha de mogno, a escrever e reescrever os seus textos em árabe, português, francês, espanhol.
Notícias de Ashad dão conta do tremendo desastre em que redunda a compra de um navio costeiro, aparentemente novo ou reformado, como um revés da sorte. Outras cartas recebidas em Manaus pela família Akel, informam que mãe e filho estão agora em Nova Iorque ou Los Angeles. Ele continua na profissão de escafandrista, gosta do mar, azula e verdeja com as algas, confirma os desafios de Hércules, a validade do sentir humano contra todas as fronteiras.


* * *

Tia Futin casou-se com a idade de 12 anos, em 1920. Dessa união com o mestre-alfaiate Nicolau Miguel Akel foram gerados nove filhos: Akel, Catarina, Carmem, Constantino, Marieta, Jorge, Janete, João e Helena. Lulu e Futin navegam para as suas origens cósmicas entre a década 70 e 80 do século XX.
Em janeiro de 1950, casado de novo desde algum tempo, Estevam chega a Manaus enfermo, com enfisema pulmonar. Tem casa própria à rua Lauro Cavalcante, comércio no Mercado Central. Em 1953, já de mudança definitiva para Manaus, tio José vai residir com tia Lulu à rua Miranda Leão, sob cujo teto se entrega a Deus em abril de 1957. Estevam lhe segue o caminho em 1959.
Tufic Jorge Alauz, nosso pai, transpõe os umbrais da eternidade em Manaus, à rua J. G. Araújo, no bairro de Santo Antonio, a 20 de dezembro de 1966. Foi sepultado no cemitério de São João Batista sob o número 67474, quarteirão 17, jazigo perpétuo da família Alauzo, por decreto municipal. (Os blocos manuscritos do Zé começam a ceder para o colóquio e à conferência de alguns fatos que estão mais para hoje do que para o ontem. Ele evita as amargas, como o grande Álvaro Moreira. Peço-lhe então que me dê licença, soa a hora absurda em que devo me referir ao trespasse de nossa mãe Faride, ocorrido no dia 20 de maio de 1988, também em Manaus).
É claro que me faltem palavras. Pois, de certo modo, dona Faride pertencia ao Clube da Madrugada, recebendo em nossa casa e em nossa cozinha modesta os nobres Cavaleiros de todas as Madrugadas do Universo, daí ter feito jus aos mais sinceros elogios, quer em prosa, quer em verso, ou ainda como um clássico modelo para os desenhos do artista plástico José Maciel, surpreendida com a mão na massa. Sobre ela escreveram também o nosso querido amigo Tadeu de Souza e o Dr. Akel Nicolau Akel, seu sobrinho médico.
Um trecho de meu Diário sobre o passamento de Faride, ainda sob o calor e a emoção dessa primeira hora: ¨Nos últimos dias de outubro de 1987, minha mãe foi vítima de uma queda, com fratura da parte superior do fêmur direito. Algumas semanas depois, estes fragmentos de uma dor enorme e secreta, começariam a preencher as breves lacunas deixadas pelo receituário dos médicos e para-médicos.
Em todos os ermos, em todas as dores silenciosas, extinguindo-se à míngua de recursos nos confinamentos hospitalares, busquei, então, um pouco de mim para fiar esse fio de espera e desesperança. E que, afinal, partiu-se com Ela.¨ É melhor não prosseguir, deixando ao grande poeta Alencar e Silva a homenagem que nos traz de volta a Casa do Tempo (título de nosso primeiro livro de memórias):

Evocação da Casa do Tempo

Para José Jorge e Jorge Tufic
Sobre a mesa limpa o pão
honesto de cada dia
para a frugal refeição:
arroz lentilha feijão.

Emme Faride preparando vagens
maxixes e berinjelas
como a querer que ninguém
percebesse o milagre de suas mãos:

- Já não se encontra mais carne sadia.

E deliciava o nosso paladar
e voraz apetite de rapazes
com quibes de tambaqui.

Fios de memória do Líbano
de longe em longe emergiam
e traziam-lhe de volta
sua meninice em Batrun.

Montes, cedros seculares
e rostos se entremostrando
entre os cristais da lembrança.

Sobre o cimento lavado
o sol a pino espalhava,
como moedas douradas,
trêmulas gemas de luz.

Para ela éramos príncipes
exilados de algum reino
mágico... Reino a que Emme
inda há pouco retornou.
* * *

A última casa que ocupamos com nossos pais foi essa a que se refere o poeta Alencar e Silva (A Casa do Tempo), situada na avenida Joaquim Nabuco, 329, em Manaus. Centraliza ela praticamente as mais intensas recordações da juventude. Marcaria o fim de nossa adolescência e o começo do namoro com as amadas imbatíveis. Neste bairro dos Remédios tentamos continuar os estudos, logo interrompidos por conta da precariedade do ensino noturno (falta de luz), somada à precisão que tínhamos do expediente diurno para a defesa do pão que o Diabo amassou. Mas nada disso impedira que você, meu irmão, convolasse aos pés do altar, unindo-se pelo casamento a uma ex-colega de infância, Juthe Souto, em 30 de julho de 1955. Neste mesmo ano eu conheceria Izabel, a musa, e ficamos empates.
José concorda e me passa uma lista contendo os nomes de seus filhos: Maria Auxiliadora Souto Jorge, Ana, Samira, Sofia, Dorothéa, Hilmer, Rudine e José Stanley. Do segundo matrimônio com a cearense Alzira Jorge, Amine é a filha única.
Com Izabel (Jorge Tufic Junior já estava comigo antes de nos termos encontrado), nascera-nos a filha Eliana Alauzo Santo Nicola, casada com Luís Antonio Santo Nicola e mãe de um distinto casal: Márcia e Rafael. Jorge Tufic Jr., casado em primeiras núpcias com Ivanice Pereira Alauzo, e em seguida com Suely Barbosa Araújo, tivera os seguintes filhos: Faride Pereira Alauzo, Jorge Luiz Ativo Alauzo, Jorge Tufic Alauzo Neto e Rafaela Meireles Alauzo.
Em 1980 – recorda meu irmão – fui obrigado a deixar o Amazonas com minha esposa Juthe, tomando a direção de Fortaleza, Ceará. Tudo por completa ausência de aparelhos de hemodiálise para o tratamento de sua doença, uma atrofia renal, coisa doutro mundo naquele planeta. Seria este, de forma assim dramática, o primeiro sinal, ainda ali distante para que, onze anos após, essa opção pelas terras e mares de Iracema fosse capaz de exercer, sobre nós, o fascínio de um segundo Eldorado.

* * *

Saímos de Manaus com destino a Fortaleza no dia 10 de dezembro de 1991. Aí chegamos e permanecemos até hoje. Nosso endereço atual: rua Conselheiro Tristão, 277, apto. 202, bairro José Bonifácio, perto do centro urbano. Aos netos, bisnetos e possíveis tataranetos, deixamos a pausa deste relato para que um dia o terminem, ou apenas o continuem, inscrevendo aqui, também, os seus nomes e os nomes de seus descendentes. E o assinem, depois, com a pureza do sorriso de minha bisneta Giovana, que eu tive em meus braços e senti que abraçava, nela, todas as raízes fenícias de um coração brasileiro.

ALGUNS SONETOS DA VERTENTE ÁRABICA

Um tríptico das mil e uma noites ( Alf layla ua layla)

I

Sento e ouço contar, noites afora
das mil e uma a noite que se adia,
mas antes do final renasce o dia,
sobram motivos para cada aurora.
Sobra fôlego, amor, sobra alegria
sobra o gume da espada. A irmã que adora
ouvir a Shehrazade indica a hora,
confunde o sol com a noite por magia.
Brotam gigantes, ilhas, personagens
vai crescendo o filão do imaginário,
não tem limite a força das imagens.
Shehrazade sabia, mas flutua.
Tantas cabeças poupa ao sanguinário
mesmo que a voz lhe canse, e perca a sua.

II

Que deseja provar a Shehrazade?
Se ela adia morrer adia a sorte
daquelas que virão sentir a morte
como Sultanas de um Sultão de Sade.
Que deseja provar a Shehrazade?
Que o tempo ensina como ensina a arte
de esperar como o tempo se reparte
entre o sonhar e a frágil realidade.
Que deseja provar a história dita
o poder da palavra a inteligência
que interfere nos códigos, transita?
As suras do Corão mediando a trama
urdem surpresas, dão-lhe resistência.
ao poder que se instrui, nega-se e ama.

III

Simbá, Simbá, vigia das calçadas
ouvinte rubro às dores da cobiça,
armei contigo os barcos nesta liça
de marinhar desertos madrugadas.
Mercador, mercadores, marestradas,
répteis, serpentes, aloés; mortiça
lua de agouro os ânimos atiça
ao vir do sol por noites cochichadas.
Foram sete aventuras sete fios
de ouro lavrando os sítios da coragem,
os poderes do mar sobre os navios.
Ao contá-las, Simbá, quanto barato:
aos invejosos moedas hospedagem,
bebam teu vinho comam do teu prato.


Ó MUNDO

Meus dias saturados de teus dias
rodei contigo os pólos que rodaste,
fui a lâmpada, a prece e no desgaste
de sonhar absurdos não venci-as
essas pedras que enquanto me sorrias
brotavam do caminho; até cansaste
do peso de meu corpo: haste por haste
me enlaçam verdes secas nostalgias.
És o ar fabulário a lenda estóica
minhas roupas sapatos cotidiano
feito de três mosaicos e uma heróica
lua que vem do Oriente solitário.
Eu também venho barro deste engano
para ser tantos e, portanto, vário.

SONETO À BERINJELA

Vi-te semente, vi-te escurecida
pela terra ociosa antes do inverno;
nas mãos de minha mãe vi-te ferida
para o recheio branco o arroz eterno.
De vinho tinto sempre travestida
roubando à sombra o seu luzir interno,
vejo-te ainda pendurando a vida
dos quintais numa folha de caderno.
És a pasta do luar, o aroma assado,
e ao gergelim e ao alho esse passado
me traz de volta os pêssegos e o mosto.
Vegetativa musa sobre a mesa
sacias com este pão, dás a certeza
de que tens cheiro lágrimas e rosto.

(Do livro ¨O Sétimo Dia¨, Prêmio Ideal Clube de Poesia, 2006)

SONETO AO NARGUILÉ

Pitaram de seu tâmbak minha avó
meus tios e meu pai; não sei das vezes
que o vi reunir a tribo de imigrantes
numa casa da rua dos Andradas.
Esse cachimbo agora vive só
longe das alegrias e revezes,
da fumaça e das brasas crepitantes,
da vida com seu tudo e com seus nadas.
Em guarda, com seus ouros e sua torre
desenhos sobre o vidro transparente,
que fim levara o traste a pobre herança?
De água e perfume o tempo já não corre.
Mas nele eu vejo, em meio a tanta gente
o sorriso feliz de uma criança.

(Do livro ¨Dueto para sopro e corda¨, 2000)


SHERARAZADESHEHARAZADE (XVI)


Algo me diz que estive nessa história
tão dos arcos da velha que imagino
haver sentido o corpo de um menino
a rolar pelos becos da memória.
Estive com os Derwiches? Conta a glória
minha mãe do formoso peregrino
que adentrou nossa casa e tinha um sino
pendente ao manto de sua trajetória.
Fala mais sobre o peixe luminoso
que tinha jóias na barriga e duas
perlas no olhar cativo ou desdenhoso.
Repete os contos de Sherarazade,
dá-me outra vez as mil e uma luas
feitas para dormir e ter saudade.

(Idem)































ODE À AMÉRICA DO SUL


ODE À AMÉRICA DO SUL


Que o boné de Pablo Neruda
e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bisontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colméias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.


















II

Com a espada de Bolívar
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento;
com as vestes de Antonio Conselheiro
e a nervura semântica de Euclides da Cunha;
com a suavidade de um verso de Lugones
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto;
com os arcos e flechas dos incas e aimarás
e a clepsidra das ruínas de Zaculén;
com as cinzas do uirapuru do Amazonas
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua,
eu te louvo, América do Sul,
agora que revejo tua cerâmica do Marajó,
tuas matas e teus rios,
tuas cidades e tuas pontes,
teus barcos possantes, tuas fábricas
e tuas manchetes; e ouço a voz
dos teus regatos, as canções de teus povos
e vejo, deslumbrado,
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis
te enlaça, constantemente,
do Atlântico semeado de praias
ao Pacífico de pássaros
e fontes azuladas.

























III


Quantos martírios e sucessos
pontilham tuas manchas ocres
em cada solo ferido ou conquistado!
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança
de teus ancestrais caribenhos?
Do milho cor de cereja dos Aruakes?
Dos artefatos barrancoides dos Walpés?
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio
e a toada dos riachos verdejando os caminhos?
Da antigüidade seletiva dos tucanos,
muras e cambebas?
Lembras-te, por acaso,
da bola de sernambi que estes últimos
te deram, ainda em pleno século XVII,
e do jogo que eles jogavam
num campo sem traves e sem torcidas?


Numa rede de dormir
os brancos degustam teu massacre
mas olvidam o teu legado,
esse imenso legado que sucedera ao jugo,
impiedoso e cruel,
daqueles teus primeiros habitantes,
plantadores de sombras,
raízes da terra.
Guitarras, malária, devastação e confisco,
eles trouxeram de tudo.
Mas tomam caxiri no delicado suporte
de uma cuia rústica ou pitinga;
alimentam-se de farinha de mandioca
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça
para não ir ao trabalho;
e têm muito de si na mestiça que se vende
por las calles y los pueblos;
e têm muito de si, também,
nessa fusão de sons e melodias
que fizeram do nheengatu das águas pretas
a língua franca dos mitos
e do lendário esquecido.








IV

Imitas um coração populoso e tranqüilo.
Tens a forma de harpa ou alaúde
com doze cordas festivas.
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático
voltado para si mesmo.
Desigualdades e semelhanças predominam
assim, de um lado e de outro,
entre vales, planícies e altiplanos.
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo,
que há fome na Bolívia,
que há tango, festas e greves na Argentina,
que o Chile exporta minérios e vinhos,
que o Brasil é o maior destes países,
que o Equador tem reservas de prata e ouro,
que o Peru não se expande,
que o Paraguai continua bloqueado
sem saídas para o mar.
Em teu próprio nome, oh América do Sul,
e em nome da história que te deram,
hás de entender, no entanto,
que ninguém pode ser feliz
quando está cercado pela miséria,
seja a miséria do egoísmo,
seja a miséria das guerras;
que ninguém pode ter paz
quando há golpes e matanças
do outro lado de suas fronteiras.
Hás de saber entrementes que,
por cima da fala dos caudilhos,
paira a linguagem fluida ou tormentosa
daqueles que te celebram;
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas
ou se debruçam nas torres de vidro;
ou daqueles, ainda, que se confundem
com os traços das telas que azedam em teus sótãos
e em tuas águas-furtadas.
Estes homens de letras ou picassos anônimos
entregues à corrosão que desfigura
e ao abandono que mata.












V

Quantos equívocos te cercam
antes e após a descoberta, por ti,
do torno do oleiro, da roda e do arado?
Que simpáticas figuras transoceânicas
poderiam ter-te doado,
oh América do Sul,
carrinhos votivos de cerâmica,
travesseiros de barro
e selos em forma de bujarronas?
E as tuas escritas?
Terão sido trazidas por quem
- fenícios, gregos, romanos –
se colocam na origem de teus índios?
Fascina acreditar, em vez disso,
que provenhas, isto sim,
de alguma centelha que se fez Avalon,
Atlântida ou Atlas,
segundo escrevem as aves migratórias
quando te buscam nos pélagos,
e adivinham teus ecos profundos
nas cavidades do espanto.





























VI

A cidade perdida dos incas
são tantas cidades quanto as portadas
que levam à presença do sol;
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos,
e dali às cavernas talhadas a ouro,
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram
ao peso dos colossos que protegem a montanha
das patas ecoantes de Espanha.

Em cada milímetro quadrado
das alturas que saltaram de mares incalculáveis,
Amarus confundem a inteligência
dos homens de Pizarro.
Labirintos ficaram, boiunas coleiam
na ouriversaria das auroras.
E ninguém poderá decifrá-las.

Para Iucay se evadira Manco.
E uma das primeiras guerrilhas da história
consegue fazer das trilhas enganosas
o desgastante baralho das Cordilheiras.
A imagem de raios solares
com mais de cem toneladas,
em que leito de Vilcabamba
terá se consumido em miríades de estrelas?

Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa.
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca.
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados.
Tupac Amaru expira em Cuzco
levando no olhar a música do império.

















VII

Grande é o solar do tempo nesta aldeia
onde um galope nunca se interrompe.
Este chão de Pizarro em Guamachucho
de lavas contraídas pelo medo.
Escarpas traçam rápidas figuras,
pousam brilhos de séculos vencidos.
E um velho terremoto, agora fóssil,
arroja um tigre do alto de um penedo.
A noite é um vinho branco. Mas o sangue
que transborda do lago, não descansa:
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição,
estes três assassinos de Atahualpa,
daquele em cujo peito o sol dos incas
despedaça o seu último clarão.


VIII

Nos porões soterrados debaixo
das cidades, deuses animais de terracota
aparecem ao lado da serpente,
e ao lado da serpente
paradigmas antropomórficos.
Foi assim que teus nativos,
pescadores de Valdívia,
dominaram os ornatos circulares:
perfis abstratos,
bizarras entidades híbridas
sobressaem nos relevos celestes;
e ao lado destes, ardósias cônicas,
traçados olmecas.

Um portal contendo símbolos xamãs
e sarcófagos dourados,
torna visível o silêncio dos mortos
na estática de teus músculos altivos
prateados de neve.

A Quinta Era, afirmam ali,
pertence a Tonatiú, o deus Sol,
habitante dos leques das palmeiras;
e há de ser confirmada por graves,
extensos abalos.
Pumas alertam para as ameaças que sobem
das Ilhas Arqueanas.





IX (a lição dos rios)

Tentando lavar este sangue
inutilmente derramado,
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota;
ele vai mudando de nomes
até unir-se às águas revoltas
do lendário Urubamba.
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac,
quando formam, juntos,
o Rio Amazonas.

Muito tarde, porém.
Um grande exemplo despercebido.

Esses rumores até hoje incessantes,
este chamado das vertentes comuns,
somente os poetas o sabem distinguir
na diversidade que amalgama
e na dor que ensina.
































X (balada enquanto seja)

Ao contrário de outras águas,
nosso rio é movimento,
serpe andina em debandada
vai ele em busca do mar;
desde que nasce de um fio
por ondas rola barrento,
vem à tona e vira vento,
é estirão que sai do nada.

Rio de lendas ficou,
matreiro, curvo e norato,
seu berço de concha e lua,
com três nomes de batismo,
três caminhos sete bocas
por onde bebe a tormenta;
mas tem mágicas, puçangas,
e a cada estória, se aumenta.

Pântano cósmico, diz-se
por quem o lê pelo avesso,
por quem ouve a queixa inata,
por quem adentra seus peixes,
por quem taboca faz beiço
e sopra o fogo da enchente,
pois este rio é começo
da febre que torra a gente.

Ao contrário de outras águas,
o Amazonas, como um todo,
pode tornar a seu fio
como náufrago do lodo.


















XI (Thiago de Mello)

Por caminhos de San Tiago,
volta o poeta das angras
a quem doara o seu canto
pela causa dos humildes.

Levara o corpo sadio,
como quem leva a esperança
marcada a fogo no brigue
que, novo, se lança ao mar.

Os Estatutos do Homem
riscando o teto da noite
com seus mastros decididos,
quantos vilões não cegaram!

Mas, igual à copa náutica
das sapopemas gigantes,
que pelas vias de Tiago
desprendem flocos de sonho,

retorna, depois da luta
para o feno das raízes:
a copa – rica de estrelas,
o tronco – de cicatrizes.


























XII (a Pedra do Reino)


Como então esquecer,
neste painel de teus milagres,
oh América do Sul,
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna,
a poesia e a prosa que se deixam fundir
em seu romance d´A Pedra do Reino?
Assim também, igualmente,
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior,
a cerâmica de Côca,
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios?
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses
em busca das cacimbas,
do aboio crepuscular,
do alpendre de seus avós e da espada
de algum rei com sua túnica de abelhas?
Pois é das artes desse Ariano vulcânico
e de seus valerosos cavaleiros,
as surpreendentes iluminogravuras,
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa,
não são réplicas inúteis.

























XIII (entrefala e louvação)


Deixemos, portanto, as amoras,
o etéreo veludo celeste, o filme vazio,
a novela das oito
e as ruas por onde não passaram
bandeiras despedaçadas por um grito maior
que a esperança dos mortos.

Deixemos de lado as violetas
que ardem nos versos prematuros
daqueles que nunca percebem o gemido
das salamandras
nem a fuga dos girassóis alucinados.

Deixemos de lado o jarro de Matisse,
a gôndola que imita o cisne de Isolda,
as olheiras roxas das janelas caiadas
pelo terror dos massacres.

Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos,
provara do vinho amassado com a terra,
o suor e as lágrimas de quantos,
no Chile, na Espanha e na Turquia,
conseguiram, em seus momentos finais,
erguer a face do entulho e da lama,
cuspir na bota dos tiranos.

Louvemos Neruda pelos gestos perenes
de salvar um carneiro da morte,
uma rosa da escuridão e muitos,
centenas de amigos,
do cárcere infecto e da bofetada humilhante.

Saudemos Neruda
com uma taça de beija-flores.














XIV (sursum corda habemus)


O giro vesperal das andorinhas
sobrevoa os transcursos das cordilheiras;
paira, depois, sobre os telhados gastos
pelo mofo dos armários vazios
e o esquecimento das chuvas.
Elas tomam as sereias de tuas falanges,
dedilham a ira dos terremotos.
Mais do que nunca teu coração vacila,
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união
entre o Ocidente dos filósofos
e a pátria dos cardos ensolarados.
Terá sido esta a pausa dos monumentos,
o tremor que se estabiliza nos ossos,
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água
no enterro dos navios.

Uma sombra te acompanha desde que nasceste,
orográfico e triste,
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro
com os andrajos da mulher de Bolívar,
a insepulta de Paita.
Teus versos são lições de uma geografia da alma,
rochedos floridos de ternura.
Soltos na madrugada,
eles rastreiam fragrâncias, matizes,
números e signos gravados na espuma
e no cansaço das festas.
São metáforas da hora incalculável,
a incrível marca do passageiro.

Depois das estradas, Neruda,
o amor te concedera uma pausa,
um silêncio neutro que irrompe dos tanques
cobertos pelo trigo;
uma pausa que pergunta a cada coisa
se tem algo mais. E a cada palavra
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico,
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros.


Teus cantos são cantarias de luar,
pólens de ouro e neblina.
Oh América do Sul


(Publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008).

alguns dos "sinos de papel"





alguns dos "sinos de papel"





Jorge Tufic








oculto no dom
de não ser ninguém
o grilo é som...



pétalas de mim
cultivo num jarro velho
que já foi jardim



em tantra medito
o saber é uma pedra
a mulher, o seu grito



ah, delicadeza
a mosca, senhora tosca
baila sobre a mesa

RETRATO DE MÃE


RETRATO DE MÃE


Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios


Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.


Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?


Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.



Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados- tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?


Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos freqüente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.


Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.



Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?




Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.




Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?



Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.



Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.




Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.





Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro




Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera.