sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE


O PROTESTO DE BOCAGE

Sobrepaira, deste modo, uma espécie de dúvida, cercada também de mistério, quanto ao último e verdadeiro soneto de Bocage, já que, dentre tantos referentes ao nada de sua constante metafísica, dois se nos deparam tão idênticos na forma quanto opostos no conteúdo ideológico. O primeiro, muito mais difundido, para provar que ele não foi ateu, ou pelo menos converteu-se na hora da agonia, atribui-se com freqüência sua autoria a um frade que cultivara o bom gosto de imitar o estilo do poeta. Este soneto aparece publicado com uma observação de que fora ditado nas proximidades da morte ao Sr. Francisco de Paula Cardoso de Almeida, morgado de Assentiz, consoante depoimento de Guerreiro Murta, etc. O segundo, das Eróticas, não deixa a menor dúvida de ter sido escrito por Bocage. O primeiro deles é este:

Já Bocage não sou: à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento ...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... a santidade
Manchei! ...Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade.



O segundo é este:

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia - o teólogo, o peralta,
Algum duque ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade
Que engrole sub venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada edosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.





quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Para L. Beethoven

 




Para L. Beethoven


Meu corpo entrego ao teu silêncio de água,
aos arcos de tua música pairante,
onde as vozes da terra, no seu pasto
de nuvens, resplandecem como lágrimas.
Não sinto mais feridas nem abalos.
Meu sangue jorra lento dos violinos.
E uma luz crucifica-me nos ares
de chuva, por tuas rosas lapidados.

Estas rosas que alteram nosso dia,
e abrem na tarde a súplica dos dedos
que se libertam, pássaros, do barro.

E tocam, com sua forma torturada,
a flor do azul contida e descontida
neste adágio de pedra e de luar.

Adeus, amigo Neto!

 



Alencar e Silva, na Academia Amazonense de Letras,
em julho/2007.

Jorge Tufic




Hoje, dia 25 de setembro de 2011, se aparta de nós o poeta-irmão Joaquim de Alencar e Silva (o Neto, como sempre foi chamado), e, em seu lugar, nesse Rio de Janeiro que ele tanto amara, fica a primavera recém chegada, somando às flores do seu velório uma galáxia de bogaris e crisântemos, numa festa também de rosas ao lírico de LUNAMARGA e tantos outros livros de sua autoria. Chegou-nos a notícia através de um telefonema do Max Carphentier, e, logo, pela Internet, começa a expandir-se a foto do poeta e um resumo de sua biografia. Tudo muito rápido, enquanto as grandes famílias Dutra e Alencar pranteavam o trespasse desse inigualável pai e esposo, sem a menor quebra de harmonia entre sua pena de ouro e os encargos decorrentes do aconchego doméstico, frequentemente dividido com os amigos de longos anos, parentes e a gente humilde de Botafogo, bairro onde a Casa de Rui Barbosa permanece como um símbolo de tradição e respeito à história de nossa cultura.

Para mim, que devo tudo o que sou a ele, no que tange ao saber e ao aprendizado das letras, e apesar do quadro de saúde nada esperançoso que vinha apresentando nos últimos meses, a notícia dada pelo Max à Izabel, pelo telefone, encontrando-me eu ausente de casa, conseguiu nos abalar como se o mundo acabasse de ser atingido por aquele meteoro de que nos fala Henri Klibnik, autor de “La Grande Peur de Lan 2000”. Sem ação, contudo, restava-nos apenas ficar imaginando o que realmente teria acontecido ao Neto, sem ninguém disponível, nesse domingo, a nos dar qualquer luz nesse túnel de angústias e dolorosas interrogações, tendo às voltas dramas e tragédias como estas das cidades desertas pelo final de semana, a par de uma inexplicável ausência de profissionais da saúde nos postos de atendimentos. Em seguida, porém, telefonou-me o Renato Farias, ansioso também para obter informações concretas sobre aonde poderia se dirigir para o último adeus ao querido amigo. E, por último mesmo, recebi o telefonema do Saulo, quando, enfim, já não tinha mesmo jeito, choramos juntos.


Alguns meses antes, presenteou-me o Alencar com um bilhete de passagens Fortaleza-Rio-Rio-Fortaleza, com estada em sua própria residência, em Botafogo, tempo esse, de dez dias, em que estivemos juntos, ajudados pela Hilma, sua filha, na escolha de 200 sonetos de todos os seus livros, para futura publicação, cujo prefácio escrevi, tomado por uma alegria e um orgulho imensamente juvenis, chegando a sentir-me azul diante desse mistério narcísico, segundo uma parábola de Oscar Wilde, em que o discípulo se vê como se fosse o mestre, olhando-se em seus olhos.

Antes de meu retorno a Fortaleza, ele e Nair, sua esposa, deram-me um terno novo do poeta, para que eu o provasse, e, dando certo, ficasse com ele como lembrança daqueles dias memoráveis. E assim o fiz, não contendo as lágrimas, já a bordo da aeronave, quando pude compreender o segredo e o mistério do verdadeiro afeto, diante do mar e da eternidade.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

SENA MADUREIRA - ONDE NASCEU TUFIC

Histórico de Sena Madureira


senamadureiraPopulação 2010 38.029
Área da unidade territorial (Km²) 23.751,268
Densidade demográfica (hab/Km²) 1,60

Histórico 

As expedições de destemidos nordestinos, para a exploração de seringais da região, deram-se por volta de 1861, chefiadas por Manoel Urbano da Encarnação e João Gabriel de Melo, próximo à foz do rio Chambuiaco, no alto Rio Purus, em território peruano. Enquanto Manoel Urbano da Encarnação explorou os seringais do Rio Purus João Gabriel explorava os rios Acre e Iaco, além de seus afluentes. Da jornada tomaram parte, no Rio Iaco, os cearenses Francisco Barbosa, Augusto Escócio e Benjamin Duarte Ponte Franco; no rio Macauã, Custódio Miguel dos Anjos e José Procópio e, no rio Caeté, João da Costa Gadelha e Manoel Trindade Corrêa.

Nos idos de 1878, intensificou-se o povoamento desses rios com a vinda de novos nordestinos, fugindo da seca e com isto incrementando a exploração de importantes riquezas regionais.

Após a celebração do Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903, o General Silveira de Meneses, cumprindo missão, chegou em 25 de setembro de 1904 às terras do seringal Santa Fé, às margens do rio Iaco, fundando ali a Cidade de Sena Madureira, sede também do Departamento do Alto Puruas, sendo designada Capital do Território do Acre. Em 1908, foram instaladas na cidade várias representações de órgãos.

Através de Decreto do Governo Federal, de 1º de outubro de 1920, Sena Madureira deixou de ser a Capital do Acre, transferida para Rio Branco.

Gentílico: sena-madureirense

Formação administrativa

Elevado à categoria de vila com a denominação de Sena Madureira, por ato do Prefeito de 25-09-1904.

Elevado à condição de sede no antigo distrito de departamento de Alto Purus, pelo decreto federal nº 5188, de 07-04-1904. Instalado em 25-09-1904.

Elevado à condição de cidade, pela resolução do preferido decreto nº 3, de 01-07-1912. Sob o mesmo decreto a sede do município teve sua denominação alterado de Altio Purus para Sena Madureira. Constituído de 5 distritos: Sena Madureira, São Bento, Iracoma, Granja e Mercês.



Fonte: IBGE


NAVEGUE PELO MAPA DE SENA MADUREIRA

sábado, 25 de janeiro de 2014

Uma carta de Ramayana de Chevalier


Ramayana de Chevalier, 1958


Rio, 9 de abril de 1967

Meu grandiquerido [Jorge] Tufic



A saudade é como a luz, não morre, todos os dias se renova. Vocês do Clube da Madrugada representam, para mim, um retrocesso no tempo, uma viagem amável ao País da Emilia. Poetas, o são como eu aspiro e sinto: vivos, aluando de vida, tontos de luz como os pássaros livres da nossa terra. Gostaria de viver com vocês. Já me distancio na eclética do destino, procurando rosas no meu deserto, mas amando ao Amazonas com todas as fibras da minha paixão.



Nos meus dias de solitude, diante desta Copacabana sofrida pelos cortes de luz recebo sempre dois pedaços do Clube da Madrugada: Antísthenes e Penafort. Poetas, romancistas, talentos de cepa fina, caboclos na mais larga acepção do vocábulo. Trazem-me notícias, livros, composições espirituais da planície. São vozes da floresta, rumos perdidos da selva nesta flumilândia de arranha-céus.



Fala-me de você, de sua casa admirável debruçada sobre o igarapé como a de Pearl Buck em Hong Kong, talhada em madeira de lei, nossas eternas madeiras amazônicas, magníficas perfeições da nossa arquitetura neolítica, olhando as águas como presentes de Deus as almas sequiosas de bondade. Lembro-me de soneto, “Possível Soneto a Dalva”, obra prima da cinzeladura glebária, notável conquista de um talento que representa a nossa raça, a nossa gente, o nosso futuro misturando sírios, franceses, nórdicos, mestiços no imenso caldeirão da Hiléia, mãe santíssima da nossa desventurada sensibilidade. “O resto é uma cidade e nela o meu orgulho”.

Sim, o teu e o de todos esses Farias, Elsons, Bacelares, Américos, Alencares, Ruas e ensaístas como Aluísio Sampaio, Engrácio, Batista, João Bosco Evangelista, um economista como Saul Benchimol, um Jefferson Péres, artistas ao jeito de Afrânio Castro, Getulio Alho, Álvaro Páscoa, Moacir Andrade, Assayag, um ficcionista como Benjamin Sanches, e o miniaturista admirável que é Óscar Ramos, exilado na Espanha dentro da luz e da cor.



E me recordo dessas noites de luar sobre o rio, onde, quando em Manaus, “o fogo brando como Dalva em meu peito, a consumia”. Tu, como um Alfonsus de Guimarães, que assinaria esse soneto a Dalva, namorando uma lua no céu e outra lua no rio, momento eterno de translumbramento, como as genialidades pictóricas desses artistas manauaras ou transplantados para lá, doces Messias da última mensagem, amando desmesuradamente ao Amazonas, frutos de seus esgalhos pendentes, flores dos seus lagos imaturos, nelumbos dos seus igapós dormentes.



Gostei de teus livros, amei os teus poemas. Silvei como as dobras da espessura, buscando imagens e belezas. Arfei como os fatigados manatins dos canaranais, respirando saudades. O capitalismo afastou-me das rotas distantes, impossibilita-me uma visita à minha terra. Há uma pousada a minha disposição. A casa de Stenio Neves, na praça da Saudade, que me foi oferecida, com o ar condicionado e outras vantagens modernas. Um dia saltarei por ai, de acangatara, ou só com a minha velha tara, rosnando de amor pelo Amazonas, que me atormenta de paixão como um eczema sentimental.


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Anúncio em A Tarde, 1939

Morrerei, Tufic, é o destino. Só me sentirei feliz se o Clube da Madrugada, coletando-me as cinzas, junto com flores de mamorana, descer, uma noite de plenilúnio o rio Negro, despejando-me os espólios na foz, rumo ao mar-oceano... Nessas pedras que andei, hoje asfalto, por essas casas humildes que me convidam ao sonho impossível para os que não poderão jamais compreendê-la.

Vou parar. Meu caminho é como o das lagartas volantes, não marca o chão. Tu, que tens na lama a vibração das palmeiras dos oásis e o fervor pelo destino dos pais, tu que és símbolo do bom filho, do bom irmão e do bom companheiro, tu que és poeta no ar que respiras e na limpidez aos teus momentos interiores, nos quais festejas a Morte, lembra-te do teu velho amigo, do Ramayana que é uma expressão da Amazônia onde quer que se encontre, um traço de Amor entre a terra e o infinitivo, um caboclo doente e triste, cujo sorriso é uma lua à superfície de um lago tranquilo.



Abraço-te a ti e aos nossos irmãos do Clube da Madrugada. Uma tâmara para o teu coração. Um cupuaçu para os nossos paladares boêmios. Meu endereço vai abaixo. Gostaria de entreter com vocês um entendimento de beira de cais. Receber jornais de Manaus, escrever para eles, escutar de longe as novidades da mais bela das cidades do Brasil, junto com a Bahia, porque autênticas.

Como na Roma antiga, direi de toga suspensa e num gesto digno: Vale!


Do teu ex-conde

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A SOLIDÃO DA ÁRVORE

A SOLIDÃO DA ÁRVORE

MARCUS ACCIOLY




Durante a Bienal da Floresta, do Livro e do Leitor – realizada no Rio Branco, Acre, pelo escritor Pedro Vicente – refiz uma viagem feita muitas vezes, há muitos anos. Após um frugal café da manhã no Inácio Pálace Hotel, o novo, pois o velho era Inácio Parece Hotel, eu e o poeta Jorge Tufic, a convite de um grande amigo, o boliviano Miguel Ángel Ortiz, saímos de Rio Branco, em direção a Cubija, no Estado de Pando, na Bolívia. As nossas memórias funcionaram de modo diferente: Tufic se pegou com o menino que ele foi no Acre, Miguel, com a sua vida na Bolívia, e eu, com o tempo de um arcaico Rio Branco, que se escondeu por dentro, ou por detrás, do moderno. Assim, chegamos à recente cidade de Capixaba e só no desvio para Xapuri, onde o rio Acre se encontra com o próprio rio Xapuri, é que nossas memórias se encontraram. Visitamos a casa, o Centro Cultural e o túmulo do seringueiro Chico Mendes (que cantei no meu livro – Latinomérica) e logo voltamos à mesma estrada que obrigava Miguel a fazer do seu Honda um cavalo saltando os obstáculos.
A paisagem exibia a devastação sem medida, desde que a borracha cedeu o seu lugar ao gado e o gado à incipiente cana-de-açúcar. Inúmeras castanheiras se aproximavam e se afastavam do acostamento, como uns resquícios da floresta de Hamelet. Cortei o nosso silêncio, sob o silêncio surdo do motor, com uma pergunta: “Quantos metros tem uma castanheira?” Tufic tentou medir, com o olho, enquanto Miguel respondeu: “Cerca de 40 metros”. Algo de doído ligava, em mim, a castanheira da floresta à castanheira da praia, ou amendoeira, quando Miguel prosseguiu: “Como é proibido, por Lei, derrubar castanheiras, elas ficam assim, separadas delas mesmas e da selva”. Observei aquelas árvores solteiras e percebi que algumas de suas ilhas verdes tinham secado. “Parece que elas escaparam, mas estão morrendo, não é, Miguel?” “Pois é, no conjunto elas tem o besouro que, através das plantas e dos cipós, faz a proliferação. Assim, isoladas, o besouro não consegue alcançar a copa e, aos poucos, elas vão morrendo”. “Qual é o tipo de besouro?” “É o mungangá”. “Ah, sei, o cavalo-do-cão, que também reproduz o maracujá rasteiro ou sobre as árvores”. Tufic riu um pouco e disparou: “Esse aí é um cavalo do Nordeste”. Percebi que estava entre um acreano e um boliviano e falei um trecho de cantiga do meu livro Guriatã – um cordel para menino: “Manda música, maestro, / moda má, música má, / mau mestre, muita munganga, / munganguento mugangá”. Tufic aproveitou a deixa e disse algumas cantigas do seu livro: A insônia dos grilos. A partir de então a viagem se tornou um recital.
Depois que atravessamos a ponte e chegamos a Cubija, a cidade também já era outra. “Em Rio Branco, eu só reconheci o Rio Acre, acho que, de Cubija, se Tufic comprar todos os uísques que pretende, só vou reconhecer a alfândega” – eu disse e quase não aconteceu outra coisa, pois, além das bebidas, ele apenas comprou diversas camisas de seda. “O seu caso, Tufic, ao que parece, é de seda e sede” – eu provoquei e ele consertou: “Ao inverso: é de sede e de seda”. Aproveitei o seu “inverso” e, novamente, passamos a dizer algo “in verso” ou “em verso”. Miguel visitou o amigo e ex-governador do Estado de Pando, Felipe, que, com a esposa, Marilu, nos levou à parrilhada. Tufic quase não comeu, em compensação, esgotou, sozinho, mais do que um quarto de uma das garrafas.
De volta, eu disse a Miguel: “Comprei tanto bagulho, que tive de comprar uma mala”. “Pois é, Tufic já leva a dele, como um camelo”. Tufic não respondeu. Voltei-me do banco dianteiro e Miguel percebeu pelo espelho que Tufic sonhava. Tirei a máquina da sacola e fui fotografando aquelas castanheiras tristes, da beira da estrada, como se quisesse que elas não morressem. Para cada foto, Miguel diminuía a velocidade. “Era bom que fosse assim, Miguel, que tudo passasse, ficasse para trás, mas as árvores estão na máquina e na memória”. “Pois é, e o pior é que ficarão mais na memória do que na máquina”. Tufic acordou de repente e perguntou à-toa: “Vocês estão falando de máquina ou de memória?” “Da máquina da memória e da memória da máquina, Tufic” – eu disse, enquanto Miguel desviou de um buraco e Tufic, com a vantagem do tombo, regressou ao seu sono, ou seu sonho, de poeta.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

SONETO PARA UM VELHO TELHADO

SONETO PARA UM VELHO TELHADO
De calha em calha ondula o gato; a janta
Vai chegando ao final sob este espaço
Onde não chega o ácido mormaço
Quando a tarde é mais forte e a lua tanta.
Diante do gato um pássaro levanta
Seu vôo meticuloso, ao gesto e ao passo
Do romântico chano: agora é de aço
O brilho visceral que a noite espanta.
Enquanto ossadas limpam-se da mesa,
Secam lá fora os grilos da incerteza,
Telhados ardem na paisagem suja.
Não sei mais desse gato. O passarinho,
Mandei que fosse em busca de outro ninho.
Naquela casa, pia uma coruja.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A UMA AGENDA

DUETO PARA SOPRO E CORDA



SONETO A UMA AGENDA
Para quem chega ou sai, vide na agenda
telefone, endereço, e assim, talvez,
o número da campa onde o freguês
terá deixado a última legenda.
Todo um passado nela se desvenda
com a rolagem dos anos. No entremês
de novas baixas, outros, por sua vez
plantam seus nomes e refaz-se a lenda.
Nomes famosos como Pedro Nava,
poetas humildes como Jota Cê,
já se foram da letra que os guardava.
Antigas pautas mostram-nos, porém,
que entre os vivos há mortos; estes que
nunca respondem, nada, pra ninguém.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

SERESTA FRUGAL

DUETO PARA SOPRO E CORDA



SERESTA FRUGAL
Bota a mesa, Raquel. Aí vem lua
pela janela aberta. A lua traz
constelações de frutas, muita paz
na brancura do pão que ora flutua.
Belos peixes do rio vão pra rua
da noite plena que esse bem nos faz.
Bota os pratos, que agora a mesa é tua,
farta desse clarão que satisfaz.
Lá fora o vento morno impõe o riso
de quem  degusta estrelas; e há licores
na sombra onde comer não é preciso.
Banquete assim, Raquel, preda os rancores,
enfuna o linho à mesa, engana o juízo
que assim volteia como os beija-flores.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O CLUBE DA MADRUGADA


SONETO REVISTO

DUETO PARA SOPRO E CORDA



SONETO REVISTO
Do espelho à flor extinta que te ampara
- amanhecida paz, silente rosa –
saltam meus olhos neste ver de agora
por dentro do silêncio e da miragem.
A forma branca de que nasce o dia
pressente a noite com seus astros novos;
vésper acode, assume a claridade
sobre a face de sono que a ilumina.
Fulgor do que se move e se transmuda
ao vislumbre de um cósmico dilúvio,
és o princípio, o frêmito corpóreo.
Porque te abres apenas rubra messe,
frágil manhã que os pássaros celebram
- e só duras o instante de uma estrela.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

SONETO A RICARDO REIS


SONETO A RICARDO REIS
Não por teu verso fluido e transparente,
Nem pelos deuses a quem sombra calma
Deste, lembrando a suave permanência
Do que puro inda resta onde não somos.
Mas ao prazer deixado ali freqüente
Em ler-te, aberto o livro e aberta a alma,
Todo um orbe revelas na existência
De um sorriso que em mármore supomos.
Pelas horas de humano entendimento
Em que dos tempos idos a beleza
Converges para um tempo começado;
E de, sendo tão parcos, um momento
Crer-se que o bem maior, glória ou riqueza,
Nada fica além disto que há sonhado.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE

Ao lado do satírico, do burlesco, do pornográfico, via-se o ‘’ateu’’, o insatisfeito, o gozador emérito a recolher os instantâneos grotescos das excrescências irremediáveis: um nariz adunco, e lá vai ...

II - DETURPAÇÕES DE BOCAGE
Sobrepaira, deste modo, uma espécie de dúvida, cercada também de mistério, quanto ao último e verdadeiro soneto de Bocage, já que, dentre tantos referentes ao nada de sua constante metafísica, dois se nos deparam tão idênticos na forma quanto opostos no conteúdo ideológico. O primeiro, muito mais difundido, para provar que ele não foi ateu, ou pelo menos converteu-se na hora da agonia, atribui-se com freqüência sua autoria a um frade que cultivara o bom gosto de imitar o estilo do poeta. Este soneto aparece publicado com uma observação de que fora ditado nas proximidades da morte ao Sr. Francisco de Paula Cardoso de Almeida, morgado de Assentiz, consoante depoimento de Guerreiro Murta, etc. O segundo, das Eróticas, não deixa a menor dúvida de ter sido escrito por Bocage. O primeiro deles é este:

Já Bocage não sou: à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento ...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... a santidade
Manchei! ...Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade.


O segundo é este:

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia - o teólogo, o peralta,
Algum duque ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade
Que engrole sub venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada edosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.
A dúvida consiste nos seguintes fatos:


a) A ‘’conversão’’ do ateu no crente ora ocorre nas ‘’proximidades da morte’’, ora na ‘’hora da agonia’’, deixando supor que durante sua longa enfermidade;
b) Havia um interesse quase doentio daqueles que o cercavam e eram por ele satirizados, em obter de Bocage uma prova, mesmo forjada, de que se havia convertido. A prova maior seria naturalmente um soneto escrito ou ditado nos últimos instantes do seu trespasse;
c) Muitos eram na época os imitadores do estilo de Bocage, no qual, inclusive, o atacavam, satirizavam e o expunham ao ridículo. Como neste epigrama, assinado por D. Caldas Barbosa:

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE


Aparecem em 1969, e quem sabe posteriormente, as ‘’Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas’’ do poeta, numa duvidosa Coleção Clássicos do Erotismo, da Editora Escriba Ltda., em São Paulo, explicando aos furtivos adquirentes da mesma que ‘’esta edição foi feita com base na publicada em Paris, em 1911’’, inclusive as notas incluídas na parte final do volume. Esta referência, embora cautelosa, nos faz duvidar se a editora baseou-se na melhor edição de Bocage ou simplesmente deturpou-a, levando ao público um texto pessimamente revisado, e, em vez do prefácio elucidativo da primeira edição, trazendo apenas uma série de itens sobre a origem dos poemas
e sonetos divulgados. Enfim, uma edição apressada, mal revista, dando a impressão de algo produzido unicamente para atender à sede de lucro fácil a que estão destinados outros clássicos da mesma coleção; a exemplo de ‘’Gamiani’’, de Alfred de Musset e ‘’A vida íntima de Ninon de Lenclos’’, de Autor Anônimo.
Este fato, sempre repetido, ilustra ao vivo as deturpações, paródias, imitações e demais acidentes por que vem passando, através dos tempos, a parte considerada ‘’imoral’’ da obra de Elmano, cuja marca de origem, no entanto, persiste e se avigora à medida que o lemos e interpretamos. Sua atualidade, com efeito, reside exatamente em ser ele, até hoje, um símbolo puro de rebeldia e protesto contra todas as forças que governam e conduzem os homens por um caminho negativo de sua própria humanidade.
Como lírico, Bocage extravasou sua alma embriagada pela beleza, batida pelo sentimento de transitoriedade das coisas terrenas, posta à margem pela condição plebéia de quem suspira, romanticamente, ao pé de uma janela impossível. Foi, porém, concessivo às fraquezas humanas de sua época, eternizando-se com ela. Como erótico, satírico e burlesco, apelou para o que trazia de mais secreto em seu íntimo conhecimento do quotidiano setecentista, fazendo valer os recursos de sua musa galhofeira no sentido de revelar as mazelas e os vícios de seus contemporâneos.
Ao lado do lírico marchava o crente, o poeta altissonante, o maçon, a parcela desejável da comunidade portuguesa.


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE


O PROTESTO DE BOCAGE

Desde bem cedo, por entre versos eróticos, anedotas e fatos envolvendo os tempos históricos da monarquia portuguesa, que temos ouvido e repetido Bocage, ou simplesmente Bocaes para os biliosos garotos da rua Amazonas, margem do Iaco, naquela antiga Sena Madureira de altíssimas árvores de eucalipto. Chegamos, então, ao ponto de antever-lhe mentalmente a célebre figura que ele próprio descreve em seu conhecido auto-retrato poético, um soneto tantas vezes deturpado, como tantos outros de sua lavoura pornográfica, sempre e exatamente naquelas chaves onde o poeta se deixa seduzir pelo êxtase do apelo dos instrumentos genitais em plena atividade. Dizemos êxtase, porque sua época foi marcada a fundo pelo misticismo religioso, que logo desperta nas consciências libertárias um sentimento antípoda chamado na prática de anticlericalismo. Bocage sublimou-se na consagração de tal sentimento: foi lírico, dramático, romântico e pornográfico na exata medida que dava a seus dias os altos e baixos que Olavo Bilac nos revela, ao dedicar-lhe uma das curvas mais belas de sua ‘’Via Láctea’’.
Assim foi que, anos adiante, ao deitar nossos olhos no retrato do poeta, tivemos de imediato a impressão de que a entidade retratada já era, sem tirar nem por, um velho conhecido nosso. Esse retrato foi reproduzido, em cores, na revista Panorama de arte e turismo, editada em Lisboa, Portugal, lá pelos anos sessenta. A reprodução traz o seguinte texto-legenda: ‘’Retrato de meio-corpo, em miniatura admirável e muito minudente, do poeta Bocage, vestindo sobrecasaca verde-azeitona, pintado com fidelidade do vivo, em Lisboa, provavelmente ao redor de 1797, por Máximo Paulino dos Reis, em madeira de carvalho (altura 220 mm e largura 340 mm), de mogno, marginada exteriormente com pau-santo e interiormente com metal dourado e canelado. Este retrato, que os anos patinaram, é preciosíssimo em todos os seus aspectos e o documento mais valioso que se reporta à iconografia do poeta Bocage. Tendo sido oferecido por D. Luís ao Conde de Peniche, e muitos anos incorporado no arquivo da sua Casa, foi vendido em leilão no Rio de Janeiro em 1962, pertencendo atualmente ao Dr. Jorge Felner da Costa.’’
Ali estava, diante de mim, o herói de tantas aventuras perfeitas, mesmo daquelas em que a imaginação popular utiliza o recurso novelesco (ou fabulário) da esparrela, ou do feitiço voltado contra o feiticeiro. A título de charge, lembremos aqui o Bocage surpreendido pelos verdugos do rei, o Bocage jogador, o adivinho, o subversivo, oposto aos bons costumes, etc. Grande no gênio, de vida sempre irregular e acidentada, ele encarna ao mesmo tempo o artista mais completo depois de Camões. Boêmio incorrigível, nato, agitador de verdades ferinas, irreverente no acicate ao falso pudor clerical e anti-burguês por natureza, o entrave do anonimato imposto à sua poesia erótica, burlesca e satírica tem sido responsável pela pouca divulgação que dele se tem feito nos países de língua portuguesa. Sua única obra completa nesse gênero fora, salvo engano, editada em Paris na segunda metade do século dezenove, precedida de longa e minuciosa introdução. Mas, infelizmente, este livro deve ser raro entre nós. Quem o possui, se ainda o possui, guarda-o a sete chaves. Há vários anos tivemos um exemplar em nosso poder, copiamos o mínimo de suas páginas, esquecendo-nos, todavia, de extrair dele o importante depoimento de seus editores a respeito da vida e obra de Elmano, o o glorioso M. M. de Barbosa du Bocage, conforme se assinava.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

COTIDIANO E SENTIMENTO POÉTICO 2

Translado, rotina, jogo e clarividência, toda poesia é
social. Incursor e praticante de seu cotidiano, o poeta, este cidadão libérrimo, se toca e se arrasa em traumas silentes, envolto na fugacidade de uma existência criadora, mas vítima, ao mesmo tempo, das grandes e pequenas tragédias que montam a perspectiva e o absurdo do mundo contemporâneo. A sensibilidade moral e a condição humana, norteiam seus passos. Lírico ou épico, seu discurso traduz a lasca viva do torvelinho, da mudança e da transformação. Sua linguagem opera em todos os níveis, pois a linguagem poética está a uma linha quase invisível daquilo que se denota. É a linha imaginária que une os contrários diante da reflexão de um minuto, apenas. Este leve tecido humaniza e dá um sentido às coisas. Este sentido é poesia.
Publica o Suplemento Literário de Minas Gerais, em seu nº 1103, que Mário Quintana evita os entrevistadores, "chatos perguntativos", na sua opinião, para driblar perguntas e assuntos poéticos. Ele prefere conversar amenidades, ou coisas do cotidiano. Quintana, tido como o mais puro dos poetas, tira de suas passadas habituais pela cidade de Porto Alegre, a cor, o som, a palavra e o neologismo bem à maneira de seus poemas instantâneos, até de suas vírgulas. Ao contrário de certos colegas de ofício, que de tanto se confinarem em suas bibliotecas mais parecem livros do que gente, esse poeta gaúcho, estando agora numa fase de releitura do quanto lera e vivera em toda sua vida, é, portanto, na vida e no mundo que ele busca alimento para escrever. Seu coloquialismo retoca o Inferno de Dante... (1988)
Filósofos, cientistas e tecnocratas, ao cabo e ao fim de suas lucubrações, deparam com a verdade na poesia. Todas as aparências e projeções de fenômenos naturais ou mecânicos, apesar de infletirem qualidades variadas, dependendo do ângulo, da visão e do sentimento que observa, nunca se repetem. A luz do sol, o reflexo das águas e tantas outras "descargas" e toques subliminares, povoam nossos dias. A noite apanha estes sonhos, e navega com eles. Como seja a posição de cada um, nós tomamos desses objetos a imagem real ou a imagem ideal. Esse gesto comum, aliado a uma "estória" ou mesmo aos temas de nossa intimidade doméstica, se exprime por várias outras imagens e metáforas que às vezes se combinam de modo inconsciente. Essa imagem
ideal, que já existia, por exemplo, no projeto e no sonho do artista antes da imagem real, é um dos componentes do nosso cotidiano. Associada ao convívio afetivo, ela vai enriquecendo e aprofundando as demais vivências que tivemos nas idas e vindas em que tantos outros fatores - como o vento e as chuvas - tiveram sua parte.