sábado, 27 de junho de 2020

Poeta não se define: é um ser à parte

Poeta não se define: é um ser à parte

Jorge Tufic (1930-2018)


Poeta não se define: é um ser à parte.
De homem se veste, de animal caminha,
mas algo nele de anjo se avizinha
quando em fatias brancas se reparte.
Cheira o pão de seus versos; faz-se arte
pela dor que humaniza e que espezinha;
não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,
mas a dor que se empluma no estandarte.
Pode ser o domingo que se anula,
um galgo que tropeça, o lenço esgarço
que, sendo de Marília, ainda tremula.
Para si mesmo estranho ele se enigma,
avesso ao paletó, caderno esparso,
nada o liberta, nunca, desse estigma.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

ASSIM ME FIZ

Assim me fiz de esponja e mó lavrada.
Pisei fundo os lugares que renego.
Na simpleza das flores cravei reinos
e a vida inteira é o fardo que carrego.
A estrela da manhã desfez-se em poeira
sobre meu rosto de pesar nativo.
Rosas do povo hemoptises rosas
me anoitecem curvado e pensativo.
Orfeus da mata atlântica, Vinícius,
Carlos Drummond, Cecília e quantos mais
foram se incorporando aos meus inícios.
Rimas e versos já não são, porém,
corredores do velho nem do novo.
Este mal não se pega de ninguém.

terça-feira, 2 de junho de 2020

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA
 
ROGEL SAMUEL
 
 
 
  Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.
 
Depois vem a casa, a cozinha, as comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, que a Mãe preparava... mas tudo isso passou. Onde estão as comidas, os pratos de lentilha, a terrina de azeite para as coalhadas, as cebolas fritas? Tudo passou... Como, ao redor da casa, o vento. Como passou o vento do tempo. Também passam a cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantantes, e passaram. E o que passa é aquele Calendário sem datas, o chão do passado, o que passa. A casa da mãe. O que passa. O chiar da frigideira. Os convites. O passado convida o leitor no seu chamado culinário: a mãe é aquela cozinheira das almas, das afetividades, da fraternidade, da ternura, o amor recende dessa mãe cozinheira, que ainda manda seus recados e canta, é assim que ela aparece, suada e infinitamente bela e luminosa, centro da vida familiar. Social.
A mãe é o corpo da “vida privada”.