domingo, 30 de dezembro de 2012

UMA SIMPLES APRESENTAÇÃO




    UMA SIMPLES APRESENTAÇÃO

JORGE TUFIC
   
     Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.
     Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista de Anísio Mello, ¨Amazonas Ilustrado¨, de 1952, ano este que marca sua estréia na poesia, com o livro ¨Painéis¨. Em 1951 participou de uma caravana de poetas que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos ¨caravaneiros¨, também chamados de ¨monges¨, se inscrevem nos antecedentes do movimento madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu nome: a ¨geração madrugada¨.
     Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante, completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre, também poeta e dos bons, ¨ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação¨(¨Território Noturno¨, Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de ¨Noturno Após o Mar¨, livro de crônicas e poemas em prosa do autor deste livro, ¨Alencar e Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram, e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das sombras, a hora da alegria.¨
      Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin, ¨Roteiro da Poesia Brasileira¨- ANOS 50, Global Editora, SP, 2007, sob a direção de Edla van Steen,- parte de uma série que trata das raízes até o ano 2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos processos criativos de nossa literatura. ¨Os anos 50 foram dos períodos mais férteis da poesia brasileira do século XX ¨ Tempo de grandes aventuras formais, suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da ¨poesia de muro¨, apoiada pelo Clube da Madrugada e outras correntes estéticas que fizeram história.
     ¨Poesia Reunida¨é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e cronista L. Ruas, de saudosa memória: ¨Gostaríamos apenas de dizer que Alencar e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo, o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética¨. E Elson Farias, no prefácio à primeira edição de ¨Lunamarga¨, não deixa por menos: ¨O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira: profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.¨ A fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de Paula, Anísio Mello... 




      Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se  como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem, contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos ou lingüísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à publicação de obras importantes da literatura amazônica.
      Assis Brasil, no volume ¨A Poesia Amazonense no Século XX¨, relembra que ¨Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e ¨o equilíbrio clássico¨ da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em ¨dicção despojada e serena¨. Enfim, ¨amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua portuguesa¨. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da descoberta: ¨Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, A Tarde, de Aristóphano Antony, e A Crítica, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi feito em O Jornal, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento e no Jornal-Cultura, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e editor¨. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal, cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico. 
       Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti, o autor que melhor estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo esse o qual, pela extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua obra poética. Deste modo, esclarece: ¨PUDE agora ultimar a análise, sem caráter definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois o livro – Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações e confrontos textuais¨. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um neo-misticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.
        Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários, memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia: ¨Painéis¨, poesia, 1952, ¨Lunamarga¨, poesia, 1965, ¨Território Noturno¨, poesia, 1982, ¨Sob Vésper¨, poesia, 1986, ¨Poesia Reunida¨, 1987, ¨Noturno Após o Mar¨ (crônicas e poemas em prosa), 1988, ¨Sob o Sol de Deus¨, poesia, 1992, ¨Ouro, Incenso e Mirra¨ (poema em cinco segmentos e cinqüenta sonetos), l994, ¨Solo do Outono¨, poesia, 2000, ¨Jorge Tufic: As Tendas do Caminho¨, ensaio, 2004, ¨Crepuscularium¨, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos: ¨Prosa Vária¨, ensaios, e ¨Poetas e Figuras na Paisagem¨, ensaios. Entretanto, como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à sede da Prudência e Capitalização, na tentativa  de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente da empresa seguradora, quem  nos sugeriu a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um soneto.  Sem demora, Alencar e Silva tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranqüilidade, os quatorze versos solicitados, e, assim, com este ¨passaporte¨ , oficializamos palestras e contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.
       A obra de que estamos nos ocupando, reúne todos ou quase todos os sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns avulsos, sem falar nos improvisos ou nas circunstâncias poéticas ou de foro íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo, nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do neo-simbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva, quando retarda ou deixa ao leitor a fruição  da beleza e da verdade. ¨Quero enxuto o meu verso e muito simples¨  Em  ¨O Soneto no Amazonas¨ (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de ¨Lunamarga¨ como exemplo de ¨linhas calmas e transparentes, despojado de lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de  inovação, por certos autores da corrente futurista¨.
      Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta, representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no  afeto e na convivência humana, de que nunca, jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer. 
                                                                                                    Jorge Tufic

sábado, 29 de dezembro de 2012

SONETO DO INSTANTE FUGAZ





SONETO DO INSTANTE FUGAZ

Conta-me, pluma, a sutileza agreste
dos mínimos estalos, da leitura
que o sol derrama sobre a fonte pura,
do inquieto lume que as palmeiras veste.

Seja a manhã teu código celeste,
tua insolúvel, grávida procura
de onde pousar os fios da loucura
tecidos, como a ti, de algum cipreste.

Voluntário pesar que, entanto, assume
desde sopros de vento ao que lamenta
fechado numa palha ou num perfume,

conta-me pluma, como o tempo leve
passa do gris ao breu de uma tormenta,
sem que, fugaz, te deixe a mão que escreve.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A INJÚRIA



A INJÚRIA

Pequenos acordes alados
teimaram em ficar.

O ar está zonzo, e doente.
Os rios agonizam
pela guelra dos peixes.

Pequenos acordes alados
cruzam as tempestades,
ponteiam as fogueiras da noite.

E haverão de ficar.
Até que as sementes
estourem das covas.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA,



SONETO A UMA TELA ESQUECIDA


Douradas estações fazem seu lume
de ontens sangrados e amanhãs nevoentos.
Que somos nós? Tutores desses ventos,
breve fulgor, insólito perfume.
Celebrar esse instante era costume
sob as copas de bosques cismarentos;
dele jorraram vinhos sumarentos,
dele a canção do afeto e do negrume.
Entre o sono e a vigília, amor e tédio,
crestam videiras; lá, barra-se o dia
que à cena empresta um rústico debrum.
Assim pintores viam, sem remédio,
fixar-se o tempo escasso da alegria
na sucessão de um brinde apenas um.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA,



SONETO PARA BOCAGE


Que sabes tu de mim, rosto sereno,
mão armada de cálamo, chinelo
diante do pé lanhado e não pequeno,
em tudo a imagem de polichinelo?

Que sabes do que sou, profundo anelo,
sempre avesso ao teu lodo, embora ameno
ou pálido me adentro em teu castelo
e bebo do teu vinho e teu veneno?

Que sabes deste outro que procuro,
Se reverbero enquanto te consomes,
e entre nós se levanta um novo muro?

Fardo que me aprisiona, quem imagina
ser um monstro fugaz, com tantos nomes
a fera em que me escondo e me assassina?




terça-feira, 18 de dezembro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM

(foto de Albert Samuel)

os desenhos de um banquinho de madeira
ainda pensam na Cobra
e podem esticar-se até o arco-da-chuva.

nosso Primeiro Pajé foi a Cobra.

o último foi Jurupari.
Tudo na terra do trovão pode esticar-se
e encolher como o tipiti.

os nossos movimentos têm ritmo sagrado.
estribilhos são jatos de sêmen.

o kumu senta-se com o lado esquerdo
virado para a entrada principal da maloca.
ele fica de costas para as nascentes do rio,
olhando para o oriente.
este é o modo certo de quem vigia.

nossas casas são abrigos consagrados
do ventre da Cobra-Grande.
Ali nós colocamos o sopro.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Tosco, o antro da noite,

Tosco, o antro da noite,
em ocre ou madeira fóssil,
aproxima-se de nós
em máscara e mito.
Seus olhos rasgados,
por arte esquecida rastreiam
cardumes de lava,
silenciosos caminhos de chuva.

O traço oval do conjunto
é um pássaro fixo,
antigo e severo.
A boca é outro enigma
que também nos devora.
 

            Jorge Tufic
 
Do livro: "Fui eu", Escrituras, 1998, SP

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Lembranças de Alphonsus de Guimaraens Filho

FOTO DE R. SAMUEL


Lembranças de Alphonsus de Guimaraens Filho

Jorge Tufic


A primeira e última vez que estive com Alphonsus de Guimaraens Filho traz a data que ele mesmo apôs na dedicatória de sua Antologia Poética, em Brasília: 13/09/1970. Estávamos formando um grupo no hall do Hotel Nacional, além de nós dois, Malba Tahan, Adonias Filho, Dinah Silveira de Queiroz, Antonio Girão Barroso, Aires da Mata Machado Filho, Viana Moog, Áureo Mello, entre outros, recém chegados para o III Encontro Nacional de Escritores. A essa “lembrança muito cordial” do poeta viera juntar-se um outro livro de sua autoria, este de memórias, ofertado em Mariana pelo artista plástico Layon, de origem libanesa, em abril de 1996. São, portanto, dois volumes que guardo até hoje, ambos com as mais sentidas fragrâncias de Mariana, MG, cenário tanto da poesia quanto da vivência de pai e filho, raízes do simbolismo nacional. Sente-se a alma que habita essas páginas, do chão pisado com rosas e cinamomos aos episódios da vida cotidiana, sobressaindo-se, nelas, as reminiscências da infância, temperadas com humor, lirismo e evocações de família.  Da Antologia, não sossegam de reclamar sucessivas releituras de um chamado soneto “Do Azul” e o poema “Cemitério de Pescadores”.  De “Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente”, um monólogo biográfico, todos os capítulos são belos e reveladores, daí que também registram a presença de Da Costa e Silva em Belo Horizonte, Martins Fontes e Belmiro Braga, o “trovador de Vargem Grande”, sem mencionar, aqui, as importantes achegas sobre Mário de Andrade, Carlos Drummond, Henriqueta Lisboa, a Academia Mineira e, sobretudo, Alphonsus de Guimaraens, o pai, falecido em 1921.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Notícia e itinerário do poeta Jorge Tufic

Alencar e Silva

Notícia e itinerário do poeta Jorge Tufic
18.04.1998

Neste memorial da moderna poesia amazonense move-nos, claramente, como vimos observando, o objetivo de focalizar de perto, além da obra, as circunstâncias históricas, ou fatuais, que cercaram a vida de cada uma de suas figuras e serviram de fundo ao seu aparecimento na paisagem, de modo a reconstituir, através de um variado mosaico, a ambiência em que os fatos relatados se desenrolaram. Não será excessivo frisar que se trata, neste passo, de matéria de memória - esforço de trazer à luz informações que, de outro modo, por serem únicas, ficariam perdidas para sempre. Este, realmente, o motor da ação.
Ao deter-me ante a figura de Jorte Tufic, ocorre-me de pronto que nos conhecemos sem que ninguém nos apresentasse um ao outro. Isto se deu na Biblioteca do Estado. Devíamos andar pelos nossos 18 ou 19 anos de idade e freqüentávamos aquela sala de leitura pelas horas da tarde. De posse do livro desejado, afundava-me numa das poltronas, sob as janelas que olham para a Rua Henrique Martins, e dali só me afastava ao cair da tarde, quando o grande salão começava a tocar-se de penumbras. Era quando eu suspendia a leitura e passeava os olhos em redor. Despertara-me a atenção a quantidade de livros consultados de ordinário pelo ocupante habitual de uma das mesas próximas — jovem de ampla fronte e traços levantinos, que ao retirar-se deixava sobre a mesa grossos volumes. Um dia fui ver que obras eram aquelas. Tratava-se de livros de filósofos e poetas gregos, em sua maioria: Platão, Homero, Anacreonte e do Childe Harold, de Byron. Noutro dia, dei-me a conhecer. Disse-lhe já haver lido alguns daqueles livros e de minha inclinação para a poesia, do grêmio literário de que participava e das reuniões no polivalente “porão” de Anísio Mello. Por seu turno, disse-me ele ser poeta e jornalista e co-proprietário de um pequeno jornal — O Tempo — de formato tablóide e freqüência mais ou menos regular. Para sintetizar: em breve, ele passava a freqüentar o “porão” e fazia o seu ingresso na SAEL — Sociedade Amazonense de Estudos Literários, criada a partir de uma cisão no Grêmio Cultural Álvares de Azevedo, um dos tantos em que se reunia a mocidade estudiosa de Manaus, aos ares benfazejos da sonhada democratização do País e numa hora de intensa inquietação, prenunciadora das transformações por que se ansiava e para cujo advento — como agentes ativos — os jovens de então se preparavam. Ao ser-lhe dada a palavra, para dizer a que vinha, o poeta levanta-se e diz, com voz cava: “Senhor Presidente, declino da honra de falar-vos, pois levaram-me a lira”... A lira a que o poeta aludia era, em verdade, um volumoso calhamaço de poemas, que um dos colegas, por pândega, escondera...
Foi, pois, num tal quadro que Jorge Tufic viu-se integrado à mais jovem intelectualidade da capital amazonense, onde chegara por volta dos doze anos de idade, vindo de Sena Madureira, Acre, cidade em que nascera e para a qual os seus ascendentes libaneses haviam emigrado na primeira década do século. O poeta já morava, com os pais e o irmão, na Avenida Joaquim Nabuco, 329, casa acolhedora em que passamos também a reunir-nos, e que, depois, seria por ele reconstituída e fixada nas páginas do volume de memórias “A Casa do Tempo”. (Como não evocar aqui a figura gentil e generosa de sua veneranda Emme — dona Faride — a desdobrar-se em providências para obsequiar-nos o paladar com os milagres que brotavam de suas mãos? Jamais comi quibes mais saborosos nem feijões como os seus).
Há algo mais a referir, antes de ocuparmo-nos da obra realizada pelo poeta de “Varanda de Pássaros” em quase meio século de beneditino labor, de indesviável entrega ao seu ofício, e que se desdobra por variados e harmoniosos caminhos de poesia. De fato, cada livro seu é uma estação diferente no itinerário bordado de signos em que vem caminhando e iluminando o seu tempo.Houve tempo, naqueles idos, em que acreditei que os que vinham de longe para um País jovem como o nosso eram sempre portadores de algo novo e tinham por certo algum ceitil a acrescentar à herança dos séculos. Foi o que me ocorreu dizer um dia — vai longe — ao Jorge, ao discretearmos sobre as então reduzidas possibilidades do nosso grupo.
Dizíamos então ao sutil babilônio, como se nos fosse dado devassar os véus do futuro, ser ele, entre nós, em razão da herança genética e da longa tradição cultural que lhe servira de berço, o que mais provavelmente viria a acrescentar aquele ceitil ao patrimônio espiritual da nossa comunidade, ainda quando outros mais o fizessem, como tributo da nossa geração.
Vemos hoje que aquele vaticínio não se situava longe da verdade, então apenas intuída e que o tempo se encarregaria de confirmar.
Jorge Tufic trouxe, efetivamente, para o meio cultural em que foi transplantado uma contribuição genuína de semente caída em terra fértil.
Essa lhe foi, por certo, a circunstância decisiva. Não houvesse uma espécie de determinismo cósmico que, somado ao estado de ebulição e inquietação da juventude, move as gerações contra as extratificações e a ordem estabelecida, fazendo-as avançar sempre mais — é certo que esse estado de coisas se prolongaria e, no caso, o poeta ficaria a ver navios... Mas, não. No primeiro a passar ele emarcou. Como bom fenício. Como bom marinheiro. Como descobridor de novas terras.
Foi assim também que, movido pela sede de desconhecido, ele empreendeu as suas primeiras viagens de adulto — eis que, quando infante, já viajara pelo Acre e rios da região e experimentara, de algum modo, o pânico e os dissabores de um naufrágio em que a família perdera tudo.
Foi em 1951 e 1953 que se realizaram aquelas viagens — ou caravanas, como as denomináramos — em que demandamos os brasis sulinos, no afã de superar as angustiosas contingências locais, que a ausência de universidade superlativara, encurralando a juventude entre a debandada e a aceitação pacífica do status quo.
Num texto antigo, do qual não guardo talvez senão o título (Jorge Tufic: um itinerário do signo à linguagem), dizíamos que o poeta de “Chão sem Mácula” era senhor de uma poesia que não se entregava facilmente ao leitor nem se lhe desnudava ao primeiro olhar, em decorrência do que há de contido na sua expressão, jamais lhe permitindo qualquer transbordamento.Efetivamente, quantos lhe têm estudado a obra são acordes em reconhecer-lhe não só as excelências da linguagem, a densidade do verso e a mestria da técnica, mas, ainda, aquele mais que, de repente, na instantaneidade de um relâmpago, nos põe diante dos olhos o mestre consumado que sola em todos os tons e pulsa com todas as notas do espírito e do coração.
Isso patenteia-se, uma vez mais, e definitivamente, no desempenho perfeito alcançado em sua mais recente obra (“Agendário de Sombras”), publicada em separatas do jornal “O Pão”, de Fortaleza, números de março e agosto/96 e abril/97.
São sessenta e um sonetos lapidares, em que o poeta evoca e celebra os eventos do cotidiano da infância, da juventude e da maturidade e as sombras iluminadas dos vultos que com ele cruzaram pelos caminhos da vida ou que o acompanharam de algum modo ao longo do itinerário poético. Dir-se-á que às virtudes já proclamadas veio somar-se a mais excelente entre todas: a simplicidade.
Dizíamos que seu saber-fazer se desdobra por variados e harmoniosos caminhos de poesia. Isso vem desde a auspiciosa estréia com “Varanda de Pássaros” (1956), passando por “Chão sem Mácula” (1966), “Faturação do Ócio” (1974), “Cordelim de Alfarrábios” (1979), “Os Mitos da Criação e Outros Poemas” (1980), “Sagapanema” (1981), “Oficina de Textos” (1982) e “Poesia Reunida” (1987), até chegar a “Boléka, a Onça Invisível do Universo” (1995) e ao “Agendário de Sombras”.
Autor também de numerosa e boa prosa (conto, crônica, memória e ensaio), Jorge Tufic está hoje com o seu barco fenício fundeado em Fortaleza, território sagrado onde armou a sua tenda para unir seu canto aos dos melhores da terra, numa hora de intenso brilho da poesia cearense (da mais alta que se pratica e cultua no País) e na qual, só para mencionar uns poucos, além de um Gerardo Mello Mourão, destacam-se figuras do porte de José Alcides Pinto, Francisco Carvalho, Luciano Maia e Virgílio Maia e toda uma brilhante corte de poetas empenhados no resgate da dignidade da poesia, neste fim de século. E bom é sabê-lo integrado ao tom e ao som do que se faz, ali, de melhor. Sempre a acrescentar-se. E a abrir novos caminhos e novas frentes no dilatado panorama de sua obra poética.
Com efeito, ao revisitar os mitos da criação e trazê-los para a intimidade da sua poesia, já vinha Jorge Tufic, de há muito, perlustrando as terras do sem-fim e integrando em seu universo poético o riquíssimo lendário amazônico. No caso, porém, de “Boléka” — que o guinda a uma posição de eminência na abordagem desse mundo mítico —, o próprio poema foi incitá-lo dentro de um sonho. Isto mesmo: o poema ou seu arquétipo, sob a figura de um índio, foi falar-lhe em sonho (ao sonhar, o poeta, que lia os textos de Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim) e transmitir-lhe a força “para uma terceira versão do mistério”.
Concebida desta forma e na mesma fonte em que Raul Bopp bebera a plasmara “Cobra Norato” (só que servida agora de águas mais abundantes e provindas da região do Rio Negro), é dentro dessa ordem de idéias que o autor nos revela a gênese de “Boléka, a Onça Invisível do Universo”. Esse livro, de grande beleza plástica, ao retomar os caminhos abertos pela boiúna antropomórfica do mestre Bopp, incorpora-se (como continuação) e entra a fazer parte da tradição boppiana, à qual, de fato, só têm acesso verdadeiros continuadores.
Que nos resta dizer? Em verdade, bem mais, sobre as muitas faces da sua poesia, a começar por alguns aspectos formais da sua experiência concretista e sua concepção da Poesia de Muro. Na área do concretismo, por exemplo, depois de levar seus experimentos aos limites extremos da palavra, “pintando”, por assim dizer, uma paisagem bucólica com apenas três vocábulos —
Ode
campo
bode.
Jorge Tufic leva tais experimentos ainda mais longe, mediante a inclusão de elementos extraverbais no texto poemático.
E no que toca à Poesia de Muro, experiência de que participaram também outros poetas do Clube da Madrugada, foi ele figura de primeira plana, pela primazia que lhe coube no desbravamento do terreno, como seu primeiro teórico e praticante. (Mas essa é outra história. Melhor contada noutro capítulo).
Por agora, e para compensar a pobreza do nosso texto, já que deixamos de iluminá-lo e enriquecê-lo com as inumeráveis pedras de toque que se disseminam por seus livros, nada mais nos resta senão encaminhar o leitor, sem mais tardança, aos textos do poeta, a seguir transcritos, a fim que por si mesmo possa constatar os seus altos méritos, ao ficar frente a frente com a beleza da palavra escrita: aquela que, ao mostrar-se aos nossos olhos e soar aos nossos ouvidos, fulgura e ressoa com o prestígio da lenda e a reminiscência de tempos imemoriais.
 

Alencar e Silva
 

AGENDA 1965,



25/26/dez.

Total das obrigações restantes do ano: 224.200, divididas entre dezoito pessoas físicas e jurídicas.

27/dez.

Sento-me com meu compadre e amigo Luiz Ruas na calçada do estúdio da Rádio Rio Mar, onde começamos um papo descontraído. Diz-me ele:
- Tudo na vida se resume numa questão de perspectiva. Eu vejo e sinto de um modo, você de outro. O que mais admira nisso tudo, é que em meio a tantas diversidades, ainda somos capazes de conviver uns com os outros.
Depois, ajunta:
- Um problema é um problema enquanto tiver solução. Do contrário é um absurdo, e diante do absurdo só cruzando os braços. Ou seja, conforme um axioma sefardita, para o que não tem jeito, já está dado jeito.
Precisei desse encontro e dele saio reconfortado.

29/dez.

Com efeito, soa o telefone no Gabinete do Delegado com a Dulcicléa informando do Rio que o Decreto com os nomes do Amazonas fora assinado pelo Presidente em 23 do mês em curso. Adiantou ainda que o mesmo será publicado no D.O. da União do próximo dia 31, o mais tardar. Por conta, houve uma prévia comemoração da turma com uma garrafa de Grants, no bar Jangadeiro.

30/dez.

O ¨Diário Oficial¨da União traz, hoje, dia 30, o Decreto assinado pelo Presidente Humberto Castelo Branco, que readapta para a classe de Inspetores do Trabalho, respectivamente, os servidores Mário Ferreira da Silva, Jorge Tufic Alauzo e João Batista de Almeida.

31/dezembro

Apesar dos pesares, Ano Velho, talvez eu tenha sido injusto contigo, ao tentar apressar um benefício que, noutras circunstâncias políticas, jamais seria alcançado.
* Mas já em teu final recebo a grande notícia que há três anos vinha sendo aguardada. Devo agora agradecer-te, pois somente agora compreendo os teus sábios caprichos de Mestre, fazendo-me sofrer para conquistar e dar valor ao troféu conquistado. Aqui me vejo, portanto, a sorrir entre as esperanças confirmadas e o desafio que apenas se esboça no limiar de minha nova vida funcional. Deo Gratia.

N. do A.: No mês de fevereiro de 1966, reservei parte de meu vencimento e fui, em pessoa, ao encontro de meus abnegados credores. Paguei a quase todos, já que alguns, mais íntimos, negaram o compromisso desejando-me sucesso no trabalho. Na verdade a gente, aos poucos, vai estranhando como tudo muda ao nosso redor. Mas essa já é outra história.

sábado, 8 de dezembro de 2012

AGENDA 1965,


11/12/dez.

De Sérgio Augusto sobre ¨Tarzã, o Homem e o Mito¨ : ¨Pizarro não teria ido tão longe se soubesse que a fonte da juventude estava dentro de si mesmo. O prazer do maravilhoso é a água que conserva nos velhos o frescor do espírito da infância, o segredo que transforma a realidade em sonho e restitui a vida aos antigos mitos¨.

23/dez.

Estive ausente de minha escrivaninha improvisada, tratando de assuntos ligados ao meu propósito de adentrar o ano com pouquíssimas dívidas, ou nenhuma. Mas corre notícia de que o Presidente Castelo Branco assinou o Decreto de nossas readaptações, já esperado desde... Sendo verdade, não demora soa o telefonema da colega maior Dulcicléa Cardoso, e aí, sim, as nuvens carregadas serão varridas do espaço, e o espaço iluminado por miríades de balões multicoloridos.

24/dez. Lamentável e bizantina a discussão que mantive com o Luiz Saraiva, cunhado do Amazonino, no bar Avenida. Se alguém magoara alguém, esse cristal nunca pode ser emendado. Uma vez mais, devo lamentar o incidente.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

PRAÇA DO CONGRESSO REVITALIZADA


Depois de meses de muito trabalho, a praça será reaberta hoje, com a chegada do Papai Noel.
Esta Praça foi projetada no período áureo da borracha, chamava-se Praça Antônio Bittencourt, em homenagem ao homem que governou o Estado do Amazonas, no período de 1908-1912, depois, passou a chamar-se Praça do Congresso, em decorrência da realização do 1º Congresso Eucarístico da Igreja Católica, realizado no ano de 1942, ocasião em que foi erguido o monumento a Nossa Senhora da Conceição.
Foi a mais famosa e bonita de Manaus, pois foi exatamente naquele local em que o governador Eduardo Ribeiro, iniciou a construção de uma das mais belas edificações de Manaus, a futura sede governo estadual, o sucessor mandou derrubar e projetou um novo prédio, não conseguiu ir em frente, depois, fizerem um mais simples, onde funciona, atualmente, o Instituto de Educação do Amazonas (IEA). Existia também o Palacete Miranda Corrêa (atual edifício Maximino Corrêa) e o Prédio da Saúde (atual loja dos Correios), além de outro palacete, hoje ainda de pé, onde abriga a Biblioteca Municipal João Bosco Pantoja Evangelista.
No seu entorno fica o Ideal Clube, local onde a nata da sociedade manauense se encontrava para memoráveis bailes, além da Boite Moranquinho, onde somente os bacanas entravam. Existia também um bela casa, pertencia ao empresário Moisés Sabá, foi derrubada e no local foi construido o Hotel Go Inn. 
A praça em si não era tão bonita, não chegava aos pés da Praça da Saudade e da Praça Heliodoro Balbi, porém, todos os maravilhosos prédios em seu redor, formando um belo conjunto, dava um charme todo especial à Praça do Congresso, além dela ficar bem na cabeceira da famosa Avenida Eduardo Ribeiro, onde tudo de bom e de melhor acontecia. É isso ai.

domingo, 2 de dezembro de 2012

AGENDA 1965,



24/nov.

Vencemos as eleições do Clube da Madrugada. A vitória do Aluísio arrastou em sua chapa uma equipe bem entrosada na sistemática do movimento. Houve aplausos em toda praça Gonçalves Dias. Só dessa maneira é possível restaurar uma vanguarda seriamente preocupada com a divulgação das artes e da cultura no Estado do Amazonas. Não houve propriamente derrotados.
* Entre papéis velhos, o início de um trabalho sobre o poeta Elson Farias, a quem conheci em 1959, quando fundamos um grupo de jograis com a função específica de levar ao povo a mensagem de consagrados e não consagrados poetas de língua portuguesa. Nosso convívio literário foi longo e proveitoso. Os ¨Jograis de Manaus¨ apresentavam-se em público, nos teatros, casas de amigos e através do rádio. Com o tempo, desfez-se.

02/dez.

A vida – dizem os poetas antigos – está sitiada pelas brumas do sono. Será então este o resultado de um encontro que o homem realiza com sua própria alma? O sono nos embala, qual um rio a dormir sob noite estrelada, indiferente às sombras que habitam suas margens. Nalguns ouros crepusculares, o sorriso dos deuses parece inextinguível.

04/05/dez.

Leio no Boletim semanal do Governo Federal da Alemanha, os seguintes trechos de uma reportagem sobre Rainer Maria Rlke, por exemplo, quanto às causas reais de seu falecimento em dezembro de 1926: ¨Sua morte foi tão sublime como sua vida. Em realidade ele veio a falecer de uma leucemia perniciosa – reconhecida tarde demais por seus médicos de sangue azul – mas a lenda sabe dizer que ele se feriu ao apanhar rosas para sua gentil admiradora, a linda Nimet Eloui Bey, da terra dos faraós. Ele morreu, portanto, por causa de um minúsculo espinho, como num conto de fadas. Ora, lendas deveriam ser conservadas, caso elas forem bonitas. Algo é certo, entretanto: o desenlace trouxe consolo para Rilke, que acreditou na morte pelas rosas.¨
* Ivens Lima me entrevista para seu programa no rádio.