quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Tosco, o antro da noite


Tosco, o antro da noite

Tosco, o antro da noite, 
em ocre ou madeira fóssil, 
aproxima-se de nós 
em máscara e mito. 

Seus olhos rasgados, 
por arte esquecida rastreiam 
cardumes de lava, 
silenciosos caminhos de chuva. 

O traço oval do conjunto 
é um pássaro fixo, 
antigo e severo. 
A boca é outro enigma 
que também nos devora. 


Jorge Tufic 


Do livro: "Fui eu", Escrituras, 1998, SP 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

CLUBE DO BODE



CLUBE DO BODE

                   A João Soares Neto

Para o bode dos sábados, amigo,
retorno hoje às tardes desta rua,
na qual temos por tenda sob a lua
tantos livros e afetos como abrigo.
Sopra a brisa de outubro, o azul antigo
nas crônicas do João se perpetua;
lembra o clube, o repente, a vida crua,
palmas também às damas, sem perigo.
Neste lugar, portanto, Soares Neto,
mandacarus florescem, canta o galo,
verdeja ao longe o milharal discreto.
O caprino (em seu trono) agora berra
vendo servir à mesa, e que regalo!
pedaços de outro bode, irmão da terra.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

ROMANCE



ROMANCE

Se ela me larga eu largo o mundo todo,
dou largas à manhã que já não tenho;
largo o trabalho desço do meu lenho,
faço estrelas partindo do meu lodo.
Se ela me larga, venda-se o rapsodo
para cantar amor e o a que venho
de sentir quando súbito despenho
do penhasco que fui para este modo?
Se ela me larga alargam-se meus ombros,
hei de guerras fazer, espalhar ódio,
ser o Diabo da Rua dos Assombros.
Mas logo soa o telefone; soa
e uma voz infeliz deste episódio,
sabe do que não sei, logo perdoa.

sábado, 28 de novembro de 2015

POSSÍVEL FRAGMENTO DE ABUL-ATAHIA




POSSÍVEL FRAGMENTO DE ABUL-ATAHIA

Secos provérbios, distração noturna
à luz de chaves mortas, quanta asneira
move as palavras que não têm peneira
para reter o entulho que repugna.
Que olhos canhestros revistando a furna
da existência banal sequer a poeira
da mais restrita fábula caseira
sabem ver nos pedaços de uma urna?
Textos e sombras ardem neste alpendre
no qual, se dorme o corpo, a alma se vende
e o que foi há-de ser quando será.
Ó provérbios sem nome, quanto adorno,
quanto arabesco nesse vão retorno
do pensamento ao mesmo que virá.

sábado, 21 de novembro de 2015

FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS





Lucilene Gomes Lima


FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas

http://ociclodaborracha.blogspot.com.br/

O ficcionista e ensaísta Jorge Tufic, ao fazer um levantamento da produção ficcional sobre o “ciclo da borracha”, declara que A selva e La voragine, obra do romancista José Eustásio Rivera, encerrariam essa produção e destaca que as obras do ciclo não atingiram “um vago contorno geral da realidade em causa”.[151] Há, na avaliação do autor primeiramente, uma falha ao não considerar um veio de produção que continuou aberto para a temática do ciclo e, em segundo lugar, um juízo precoce sobre o grau de aprofundamento das obras.

            Ao destacarmos A selva como um romance que, seguindo a linha da abordagem histórica do ciclo, propicia uma compreensão abrangente do tema, não desconsideramos que em outros romances, como, por exemplo, Coronel de barranco, ocorra também uma construção ficcional contundente. O tratamento dado à obra em relação ao ciclo recebe o mesmo detalhamento didático de A selva. A selva e  Coronel de barranco são, por isso, dois romances em que a realidade em causa – “o ciclo da borracha” – é tratada com aprofundamento. Entretanto, a obra de Ferreira de Castro apresenta um diferencial em relação à de Araújo Lima que nos levou a elegê-la como recorte para esse estudo. Seu protagonista é partícipe e analista no mundo do seringal, enquanto Matias, de Coronel de barranco, é basicamente analista. O fato de ser Alberto um protagonista que vive as próprias situações que analisa confere densidade à narrativa através do embate que se cria entre sua consciência e o sistema com o qual se depara.

Tufic também observa que o romance La voragine diverge de A selva por possuir um caráter de libelo ou revolta enquanto o último somente relataria os dramas vividos no seringal. Embora não possa se assemelhar a um libelo, a abordagem do romance A selva denuncia a extorsão e a escravidão num seringal amazônico e seu desfecho propõe uma destruição desse sistema injusto, determinando também um sentido de revolta. Revolta que não é arquitetada nem praticada por seringueiros indignados. O fato de essa revolta ser praticada por uma personagem negra demonstra que a visão de mundo do autor, expressa pelas suas palavras de que em seu espírito sobrepõe-se “[...]‘uma causa mais forte, uma razão maior: a da humanidade’ ”[152], não tem como objetivo pôr em evidência apenas uma forma de injustiça. O negro Tiago, despojo de outro processo de espoliação é, por isso, o escolhido para pôr fim ao local que representa a injustiça (o barracão) e o elemento humano que a executa (o seringalista). Suas palavras de justificativa do ato que pratica surtem o efeito de uma sentença: “O homem é livre.”[153] A destruição não é eficiente, uma vez que o seringalista é apenas um elo, e inclusive o não mais poderoso, da grande cadeia de espoliação montada em vista da extração do látex, mas é a destruição que o romancista elege como possível no contexto em que se desenvolve o romance.
            Apesar de possuir características em consonância com o romance neo-realista português o qual recebe influência da ficção sócio-realista brasileira dos anos 30[154], A selva apresenta os pontos básicos do que Alfredo Bosi considera um romance de tensão crítica em oposição a um romance de tensão mínima, mais em acorde com a prosa neo-realista. Segundo o autor, o romance de tensão crítica alcança “uma verdade histórica muito mais profunda”, não se restringindo apenas a enfocar a cor local ou datar os fatos.[155]
            É, pois, A selva um romance que não se limita à perspectiva de enfocar fatos isolados característicos do ciclo e que procura concentrá-los e organizá-los sistematizando-os. Abrangendo tanto o centro quanto a margem, a narrativa demonstra o nexo causal entre eles. Não aleatoriamente, Alberto vive antes a experiência do centro e depois a da margem. Quando vem a se instalar na margem, já não é mais possível considerá-la sem a outra experiência. A manipulação do contas-correntes do seringal o põe a par de uma verdade que suspeitara ao receber a nota de seu aviamento e compará-la com a dos outros seringueiros no tempo em que ainda era um brabo como eles. As faturas lançadas evidenciam que os débitos dos seringueiros e o conseqüente crédito para Juca Tristão resultam de uma cobrança extorsiva do preço da mercadoria aviada e de um pagamento ínfimo pela produção da borracha, depois vendida a um alto preço. Paralelamente, toma conhecimento de que o trabalho não pago dos seringueiros proporciona as altas despesas do seringalista.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

SHERRARAZADE (XVI)


JORGE TUFIC - AGENDARIO DE SOMBRAS


SHERRARAZADE (XVI)

Algo me diz que estive nessa estória
tão dos arcos da velha que imagino
haver sentido o corpo de um menino
a rolar pelos becos da memória.
Estive com os Derwiches? conta a glória
minha mãe, do famoso peregrino
que adentrou nossa casa e tinha um sino
pendente ao manto de sua trajetória.
Fala mais sobre o peixe luminoso
que tinha joias na barriga e duas
perlas no olhar cativo e desdenhoso.
Repita os contos de Sherrarazade,
dá-me outra vez as mil e uma luas
feitas para dormir e ter saudade.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

SONETO AO NARGUILÉ


JORGE TUFIC - AGENDARIO DE SOMBRAS


SONETO AO NARGUILÉ

Pitaram de seu tâmbak minha avó,
meus tios e meus pais; não sei das vezes
que o vi reunir a tribo de imigrantes
numa casa da rua dos Andradas.
Esse cachimbo agora vive só,
longe das alegrias e revezes,
da fumaça e das brasas crepitantes,
da vida com seu tudo e com seus nadas.
Em guarda, com seus ouros e sua torre,
desenhos sobre o vidro transparente,
que fim levara o traste, a pobre herança?
De água e perfume o tempo já não corre.
Mas ainda o vejo, em meio a tanta gente,
fugaz, como um sorriso de criança.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

SONETO PARA MORGIANA, A SERVA



SONETO PARA MORGIANA, A SERVA

Sem ti, Morgiana, de que vale a senha,
moedas de ouro, alforjes bem recheados
desses maravedis antes roubados
por 40 ladrões de alma ferrenha?
Ali Babá só transportava lenha
sobre burricos velhos, maltratados;
mas abriu-se a caverna – aqueles brados!
e a seus pés a fortuna se despenha.
Sem ti, porém, Morgiana, o que seria
de minha casa assinalada a giz,
dos potes onde a lâmina sorria?
Com certeza, Morgiana, vale pouco
a riqueza sem olhos, e o que fiz
juntado ao que fizeste é um sonho louco.

sábado, 24 de outubro de 2015

OS OLHOS DE MAI (*)


OS OLHOS DE MAI (*)

Os olhos! Não te deslumbram os olhos?
Todas as cores guardam no que são.
Eis que evocam perigos, sedução,
perfis estranhos, canforados óleos.
Íris que lembram múltiplos infólios,
olhos azuis, que imóvel solidão!
Olhos negros, etéreos, mansidão
daqueles que rastejam feito abrolhos.
Todos os olhos sondam, ardem, pensam,
muitos encerram cofres de segredo,
perguntam, tiranizam, recompensam.
Queres ver-te no espelho? Vai-te a esmo.
Mas se quiseres ver-me, não tem medo:
olha em meus olhos; busca-me em ti mesmo.

(*) Mai (pseudônimo de Maria Zlady), poetiza
árabe contemporânea, autora desse poema
traduzido, em forma prosaica, por Mansour
Challita.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

HOMEM



HOMEM


Trajetória de sombra dispersada 
Das mãos lhe escorre o tempo que sonhou. 
Quantas almas possui na alma pisada? 
Qual dentre todas a que mais amou? 
Seus passos abrem sulcos de alvorada. 
Por estrelas errantes se enredou. 
Onde a sua face ausente procurada 
E as ilhas de além-mares que fundou? 
Máscara leve lhe recobre a fronte. 
(O silêncio por trás constrói o mito) 
Traz nos ombros a sombra do horizonte. 
De fundas cicatrizes cava o mundo. 
E, sendo humano, um pouco de infinito 
Guarda no peito como em céu profundo. 

TUFIC, Jorge. Varanda de Pássaros. Manaus: Valer, 2005. p.21 

IN: http://almaacreana.blogspot.com.br/

ZEFIRO 1


ZÉFIRO 2 - 3


ZEFIRO 4


ZEFIRO 5


ZÉFIRO 6 - 7


ZÉFIRO 8 - 9


ZÉFIRO 10 - 11


ZÉFIRO 12 - 13


ZÉFIRO 14 - 15


ZEFIRO 16 - 18


sábado, 19 de setembro de 2015

UM SONETO AO SONETO




                   para Virgílio Maia

O sol dentro de um ovo: este milagre
tomou forma de barco. E já navega
desde Petrarca ao meu jeitão de brega,
mas encontra entre nós quem o consagre.
Neste garimpo, salivando o agre
desamor pelos campos, faca cega,
o construtor de andaimes não sossega
nem troca o vinho pelo bom vinagre.
Bocage empluma os dedos com suas glosas,
Jorge de Lima extrai-se do cansaço
que fizera de ti um caixão de rosas.
Mas és, soneto, ainda o velho laço
que embora preso a leis tão rigorosas,
a tudo nos obriga em curto espaço.

sábado, 12 de setembro de 2015

POEMAS





O cachimbo

Que me diz esta pausa da fumaça
em que pito o cachimbo e, reflexivo,
descubro a geometria do incativo
e momentâneo brilho do que passa?


Crepita o fumo que se despedaça
nas brancas espirais de um touro esquivo;
nesse tempo que flui, ainda que vivo,
nada retenho e tudo me embaraça.

Esta pausa, contudo, me alivia
da carga de viver. Inutilmente?
Talvez sim talvez não. É o que me guia.

Para onde, não sei. Grato à quimera,
vou sendo a nuvem que o pitar consente,
longe da solidão que me exaspera.

Recordações da varanda


Eu tive um lar, talvez uma varanda
com árvores de fogo nos telhados;
vinham de longe os pássaros cansados
pousar em minhas mãos de ouro e lavanda.

Se o tempo rola é Deus, é Deus quem manda
que outros pássaros cantem, que outros lados
dos beirais que se foram, constelados
retornem sempre, trôpegos, de banda.

Desde Sena a Manaus, desde que morro
sei dar-me à rua, numa perspectiva
de tábuas, jarros, lágrimas, socorro.

Varanda é o céo da infância e da poesia.
Mirante ao rés-do-chão, planta cativa
do amor à terra que se distancia.

Soneto à beringela


Vi-te semente, vi-te escurecida
pela terra ociosa antes do inverno:
nas mãos de minha mãe vi-te ferida
para o recheio branco, o arroz eterno.

De vinho tinto sempre travestida,
roubando à sombra o seu luzir interno,
vejo-te ainda pendurando a vida
dos quintais numa folha de caderno.

És a pasta do luar, o aroma assado,
e ao gergelim e ao alho, esse passado
me traz de volta os pêssegos e o mosto.

Vegetativa musa sobre a mesa,
sacias com este pão, dás a certeza
de que tens cheiro, lágrimas e rosto.

Ao cão preso

Late um cão neste verso, late late
preso à casa feliz que lhe dá abrigo.
Late no verso a dor do velho amigo
que a solidão, mais do que a fome, abate.

A casa também dói: tem abacate
no quintal deste urbano desabrigo,
tem árvores também de verde umbigo
com palmeiras, sabiás, broto escarlate.

A casa na qual late o cão da tarde
sobe noturna à lua incandescente,
enquanto late o cão, que Deus o guarde.

Emudece, afinal. Da dor que cala
fica dela um vazio inconsistente
do que, em vez de latir, soluça e fala.


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Aluga-se um velho
que já não serve para nada.
Garante-se, porém,
que ainda olha e vê.
E enquanto olha e vê
cachimba
os pedaços da noite.

SERINGAIS ETC

Seringais, lendas amazônicas e histórias das Mil e Uma Noites O tripé sempre foi inspiração para o poeta e jornalista Jorge Tufic, descendente de uma família de comerciantes libaneses que se instalou no Acre no começo da década de 1920. Geovana Pagel São Paulo – Poesia mesclada com as origens libanesas, lembranças da infância e das lendas amazônicas. O encontro de Jorge Tufic com a inspiração poética começou cedo, em Sena Madureira, Acre, com a chegada dos soldados da borracha. Naquele tempo ele tinha cinco anos de idade, e o ano era 1935. “Eu costumava ficar ouvindo as trovas, o ponteio das violas sertanejas, os repentes e histórias fantásticas daquele povo”, lembra o poeta e jornalista, que escreveu os primeiros versos aos 15 anos. Hoje, ao seu acervo poético somam-se 42 obras, entre poesias, contos, ensaios e sonetos. Ainda na infância, perdia-se na floresta, inventava palavras e deixava a imaginação voar alto. Mas, de repente, num livro escolar do primário, brotaram surpresas que despertaram a paixão do escritor pela poesia. “Tudo em Sena Madureira, aliás, como as serenatas boêmias despertavam nos meninos de minha idade um sentimento romântico muito mais forte do que a nossa capacidade de expressar alguma coisa”, conta. Descendente de uma tradicional família de comerciantes árabes, é filho do libanês Tufic Alaúzo, que mudou para o Brasil no começo da década de 1920 e desenvolveu suas atividades comerciais nos seringais. Por isso, a forte influência da língua, da cultura e da arte árabe de contar histórias. “A influência do árabe, falado em nosso cotidiano antes do português, marcou bastante. Junto a isso, convém lembrar as noitadas de música, ao som dos alaúdes, com vinhos Divulgação Álbum de família: Faride e Tufic Alaúzo, os pais do poeta, casaram em Manaus em 1923 Divulgação Jorge Tufi e o escritor Malba Tahan, um dos tradutores de As Mil e Uma Noites para o português finos, arak e um vasto serviço de comidas típicas do Líbano”, lembra. Segundo ele, a convivência fraterna reunia os habitantes do município e alguns brasileiros chegavam até a falar a língua dos imigrantes, estreitando ainda mais os laços de amizade. “Ainda hoje, quando menos espero, a emoção represada pelos fragmentos das Mil e uma Noites, liberados nas conversas daquela tribo, adquirem formatos de sonetos e poemas que vou entramando aqui e ali, nos textos que publico”, explica. Com o declínio da produção de borracha, no início da década de 1940, a família de Tufic mudou para Manaus, onde o autor realizou seus primeiros estudos. Exerceu, durante boa parte de sua vida, a atividade de jornalista. Com a aposentadoria, fixou-se em Fortaleza, no Ceará, passando a se dedicar exclusivamente à literatura. Sua estréia literária aconteceu em 1956, com a publicação de Varanda de Pássaros. O discurso poético de Jorge Tufic se desenrola por um lado, por forte conteúdo existencial. A outra margem do discurso poético de Tufic se fundamenta nas preocupações formais e no caráter experimental de seu processo de criação. “Minha produção literária é uma evidência de minha identificação com o universo regional, meu esforço em criar uma obra identificada com os mitos, anseios e esperanças do homem da Amazônia”, destaca. “Tudo quanto se deixa envolver pela solidão e pelo mistério motiva para mim a necessidade de fixar alguma coisa no papel. Nem sempre, contudo, as palavras traduzem poesia. No entanto, só o gesto de perseguir uma forma cheia de conteúdo poético me deixa satisfeito. Porque a matéria-prima do poeta é a palavra. E nem todas às vezes a poesia se deixa revelar por meio das palavras”, filosofa. Primeiras leituras As leituras essenciais de formação literária de Jorge Tufic foram feitas na Biblioteca Pública de Manaus. “Lá eu passei muitas tardes. Não havia ordem, é claro, nesse roteiro vespertino ao largo de alguns movimentos que ainda não haviam chegado ao Amazonas, como a Semana de Arte Moderna de São Paulo”, lembra. Entre os autores lidos na época estavam Bilac, Cruz e Souza, Guilherme de Almeida e Machado de Assis. “Após uma viagem pelo país, entre 1951 e 1953, o panorama mudaria trazendo-me todos os modernistas da primeira hora, inclusive os de 30, com Murilo Mendes, Jorge de Lima, entre vários”, conta. Trajetória Jorge Tufic nascido em Sena Madureira, no Estado do Acre, no dia 13 de agosto de 1930, iniciou sua educação em sua cidade de origem, transferindo-se posteriormente para Manaus, onde concluiu os estudos. Em 1976 recebeu o diploma “O poeta do Ano”, prêmio concedido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas, em reconhecimento à sua vasta e intensa atividade literária. Tem seu nome inserido em várias antologias, entre as quais destacam-se “A Nova Poesia Brasileira”, organizada em Portugal por Alberto da Costa e Silva, e “A novíssima Poesia Brasileira”, que Walmir Ayala lançou na Livraria São José, no Rio de Janeiro, em 1965. É sócio fundador da Academia Internacional Pré-Andina de Letras, com sede em Tabatinga, no Estado do Amazonas. Fez várias conferências literárias e é membro efetivo de algumas entidades culturais, tais como: Clube da Madrugada, Academia Amazonense de Letras, União Brasileira de Escritores (Seção do Amazonas) e Conselho Estadual de Cultura. Pertenceu à equipe da página artística do Clube da Madrugada, “O Jornal” e do “Jornal da Cultura”, da Fundação Cultura do Amazonas. Tufic também é o autor da letra do Hino do Amazonas. O poeta conquistou o primeiro lugar em concurso nacional promovido pelo governo do estado em 1980. Colaborou e ainda colabora com vários órgãos de imprensa como “A Crítica”, “Amazonas Cultural”, Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista de Literatura Brasileira e “Diário do Nordeste”. Contato E-mail: jorgetufic@hotmail.com http://www.anba.com.br/ w

domingo, 6 de setembro de 2015

Guimarães e Tufic



Guimarães e Tufic 



O ilustre poeta e ensaísta Jorge Tufic, como membro do Clube da Madrugada, recepcionou e foi hostess do escritor Guimarães Rosa quando este esteve pela primeira e única vez em Manaus, em 15 de janeiro de 1967. É sobre esse encontro, ocorrido há 42 anos, que Tufic nos conta um pouco. 



Revista Literária – O que Guimarães Rosa veio fazer em Manaus naquele ano de 1967? 

Jorge Tufic: Guimarães Rosa esteve em Manaus de passagem para uma reunião diplomática, se não me engano, em Bogotá, na Colômbia. Questões lindeiras. 



RL – De quais atividades, culturais ou não, ele participou na cidade? 

JT: Não houve tempo para isso. GR nos dera a impressão de que estava querendo aproveitar os dois dias que passaria em Manaus, a) conhecendo o Clube da Madrugada e b) ultimando questões diplomáticas do Itamarati (ao mesmo tempo em que se empenhava em experimentar um suco de taperebá). Tentei ajudá-lo nesse último desejo, mas, lamentavelmente, ainda não era época da fruta. 



RL – A vinda do escritor famoso mexeu com a comunidade literária de Manaus? Cite nomes de quem participou da estada dele na cidade. 

JT: De fato, mexeu com a turma do Clube. O restante dos intelectuais e escritores da terra, visceralmente apegados à tradição acadêmica, ficara à distância. Tanto que não houve imprensa nem fotógrafo no jantar que lhe fora oferecido pelo Clube da Madrugada, ali na Peixaria do Balaio, ou do velho Francisco, ao lado fluvial da Igreja dos Educandos. O Clube em peso compareceu ao ágape: Aluisio Sampaio, Ernesto Pinho Filho, Afrânio Castro, Saul Benchimol, Francisco Batista, Sebastião Norões, Farias de Carvalho, todos, enfim, com algumas exceções. Vale informar que ele, o grande Guimarães Rosa, ficou na berlinda diante de seus mais aferrados leitores, como Ernesto Pinho e Aluisio Sampaio, dando respostas breves, contudo substanciais quanto às personagens realmente polêmicas de seus romances, a exemplo de Grande Sertão Veredas e Sagarana. Outro fato histórico nessa sua rápida passagem por Manaus: dali a uma semana o nosso ilustre visitante tomaria posse na Academia Brasileira de Letras. Logo a seguir, se “encantaria”. 



RL – Que impressões, em você, ficaram dele? 
JT: Impressões indefiníveis só comparáveis a um prêmio que eu tivesse recebido, ainda sem o merecer. GR era um ser todo afeto, carinho verbal, solicitude, companheirismo nas andanças por onde quer que o levássemos, talvez para demonstrar com isso a plenitude da criatura, antes do criador. Quanta saudade ainda hoje sinto dele, quase uma falta, apesar das poucas horas de nosso contato. 



João Guimarães Rosa, mais conhecido como Guimarães Rosa, nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908. Foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, bem como médico e diplomata. 

Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais. Tudo isso, somado a sua erudição, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas. 

O escritor morreu de infarto, dez meses depois de ter vindo a Manaus, em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro. 

Guimarães Rosa em Manaus 

Jorge Tufic, jorgetufic@hotmail.com 



Considero imperdoável a omissão de um fotógrafo no jantar, a céu aberto, que o Clube da Madrugada ofereceu ao romancista João Guimarães Rosa, em sua única visita a Manaus, ocorrida a 15 de janeiro de 1967. Vinha o escritor em missão diplomática, mas a primeira coisa lembrada por ele não foram os pontos turísticos nem os homens de letras. Foi um refresco de taperebá. Pronunciava o nome da fruta com a mesma ênfase, o mesmo carinho ácido, a mesma teimosia infantil com que dava ao buriti de seu lugar de nascimento o feitio acabado de uma personagem de suas novelas. Este episódio tipicamente roseano é aludido pelo ensaísta Ítalo Gurgel, no estudo admirável que publica sobre “João: Um Vaqueiro de Cartola”: “As alusões ao buriti tornam-se, às vezes, quase obsessivas, como neste trecho do conto “Cara-de-Bronze”: “... e água, e alegre relva arrozã, só nos transvales, cada qual, se refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os buritizais, os buritis bebentes”. E Carlos Drumond de Andrade, mineiro como o nosso ex-diplomata, indaga num poema dedicado ao conterrâneo: “Tinha pastos, buritis plantados/ no apartamento?/ no peito?”. 



(Trecho de uma crônica de Jorge Tufic, no seu livro “Tio José”, sobre a primeira e única vinda de Guimarães Rosa a Manaus, há 42 anos). 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

OUÇAM O HINO DO AMAZONAS - LETRA DE JORGE TUFIC E MÚSICA DE CLÁUDIO SANTORO

OUÇAM O HINO DO AMAZONAS - LETRA DE JORGE TUFIC E MÚSICA DE CLÁUDIO SANTORO click em:

https://www.facebook.com/Manausdeantigamente/videos/548911188505677/


Manaus de Antigamente carregou um novo vídeo: HINO DO AMAZONAS.
AMAZONAS DE BRAVOS QUE DOAM
SEM ORGULHO NEM FALSA NOBREZA ...



QUE SERÁ DE TI, AMAZÔNIA ?



QUE SERÁ DE TI, AMAZÔNIA ?


JorgeTufic





Que será de ti, Amazônia,
enquanto o homem que te desfruta
considerar-te perene, imortal
como se imagina um duende ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto se pensa no teu destino
sem nunca separar-te dos interesses
daquele que te golpeia,
te reduz e te maltrata ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto se teima em desconhecer
que teu reino se acaba
onde a tua imensa vegetação termina ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto os cegos herdeiros
do Lêmure implacável,
buscam fórmulas vazias
para explorar-te racionalmente,
quando se sabe que os fins econômicos
já são, por si mesmos,
irracionais ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto não forem avaliadas tuas perdas
e teu desgaste
em quatrocentos anos de falsa
prosperidade para o homem;
e de lenta ,
lentíssima agonia
para os sonhos e as riquezas
que te habitam ?



Que será de ti, Amazônia,
enquanto o índio que te protege
e guarda os teus mistérios,
continuar sendo reduzido
e transformado em caboclo ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto o revolvimento de teu solo,
à cata de minérios,
envenenar os teus rios ;
e as toras de madeira submersas
desabarem sobre ti
numa queda insalubre e frenética
de chuvas ácidas ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto o desmatamento e as queimadas
transferem para os teus ares o sezão
dos pântanos
e a temperatura dos infernos ?


Que será de ti, Amazônia,
quando tuas lendas não tiverem mais
onde pousar; e a doce flauta
do uirapuru
quebrar-se numa profunda elegia
sobre os rios que minguam
e os areais que avançam ?


Que será de ti, Amazônia,
última página do Gênesis,
quando os seres que fazem a tua escrita
enigmática,
mergulharem na usura
que te rebaixa
aos olhos do mundo ?



Que será de ti, Amazônia,
se continuas espoliada e sujeita
ao voto
que elege os teus algozes ?


Que será de ti, Amazônia,
cujo tamanho incomoda pela ausência
de amor,
e cuja perda nem mesmo um rio
de lágrimas
há-de chorar-te com justiça ?


Que será de ti, Amazônia,
navegável piscosa hidra mesopotâmica
resistência dos fracos
buzina dos ermos
igaçaba de fogos-fátuos
agora que teus peixes,
de há muito impedidos de crescer
e desovar corretamente
já não saciam a fome dos que
nada fizeram
para ver o futuro ?


Que será de ti, Amazônia,
grandeza física que,
no entanto,
pode caber dentro de um ninho qualquer,
desde que ele tenha a leveza
de tuas palhas
e a úmida ternura
dos ventos que te embalam ?


Que será de ti, Amazônia,
enquanto as crianças do globo
não souberem te amar em plenitude,
ou seja,
do bicho mais rasteiro
às frondes mais altas de teus bosques
e teus igapós ?
Que será de ti, Amazônia,
se as fronteiras que te abraçam
numa ciranda geográfica de isolamento
e fraternidade,
não aprenderem também a sentir
o pulsar de teus mares sepultos
e a beber, em tuas águas,
a música das sombras ?


Que será de ti, Amazônia,
paraíso da natividade cósmica
porto de lenha
sertão de especiarias
inferno verde
berço do progresso
refúgio de degredados


sorvedouro de talentos
remate dos vencedores,
quando és, praticamente,
a última baliza do verde
com as terras-do-sem-fim ?


Que será de ti, Amazônia,
esfinge dos néscios
apetite dos glutões
motivo de inspiração e de escárnio
natureza morta
peixe colorido de estrelas importadas
autofagia mítica
cipoal de batalhas demiúrgicas
aleijão vegetativo
sementeira de astronaves,
agora que meia dúzia de sábios
te colocam no banco dos réus
e te julgam
em nome da ecologia ?


Que será de ti, Amazônia,
quando a própria ecologia,
no sentido global e verdadeiro,
deve partir da humanização urbana ?
Não é fácil acreditar nas palavras
de quem se declara a favor
da Natureza
se cultiva a poluição
e contribui para a miséria.


Que será de ti, Amazônia ?
Os tucanos pedem socorro.
Ao fugirem das queimadas,
eles invadem as cidades em busca
de comida. Primeiro foi o homem
das margens e terras firmes
que se evadiu para sempre.
Agora são as aves de tuas matas
que se desfazem na escuridão.


Os nichos sagrados estão em chamas.
Teu coração também se revolta
e sangra, Amazônia.
Fetos de carbono
imitam pajés enforcados
nas enviras do luar.


AGENDÁRIO DE SOMBRAS (completo)

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sábado, 29 de agosto de 2015

ODE À AMÉRICA DO SUL



ODE À AMÉRICA DO SUL

JORGE TUFIC


Que o boné de Pablo Neruda 
e a lágrima fluvial de Santos Chocano, 
e o grito de Allende 
(enquanto os fuzis do terror e do medo 
repetiam o massacre da liberdade), 
venham flocar este chão consagrado 
por tantos modos e cantos diferentes, 
oh América do Sul. 
Os cravos de tuas noites mergulham 
na plumagem das Cordilheiras, 
e os ramos da paz que te ilumina 
e o relincho das pedras que desenham 
bisontes e tempestades, 
pousam como fósseis alados 
em tuas crinas de esmeralda. 
De Santa Marta à Terra do Fogo 
tuas espigas rebentam colares de jade 
e cintilam nas máscaras de ouro 
roubadas aos templos do sol 
e às pirâmides da lua. 
E ao sopro nativo da flauta 
exilada entre colméias, 
um tesouro de vasos, borboletas 
e animais de uma fauna imaginária, 
sacode o pó da argila e do granito 
em suaves movimentos. 
Atlantes e Laoccontes 
vigiam tuas muralhas indormidas, 
mas deixam livres as fronteiras do sonho. 



II 

Com a espada de Bolívar 
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento; 
com as vestes de Antonio Conselheiro 
e a nervura semântica de Euclides da Cunha; 
com a suavidade de um verso de Lugones 
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto; 
com os arcos e flechas dos incas e aimarás 
e a clepsidra das ruínas de Zaculén; 
com as cinzas do uirapuru do Amazonas 
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua, 
eu te louvo, América do Sul, 
agora que revejo tua cerâmica do Marajó, 
tuas matas e teus rios, 
tuas cidades e tuas pontes, 
teus barcos possantes, tuas fábricas 
e tuas manchetes; e ouço a voz 
dos teus regatos, as canções de teus povos 
e vejo, deslumbrado, 
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis 
te enlaça, constantemente, 
do Atlântico semeado de praias 
ao Pacífico de pássaros 
e fontes azuladas. 


III 


Quantos martírios e sucessos 
pontilham tuas manchas ocres 
em cada solo ferido ou conquistado! 
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança 
de teus ancestrais caribenhos? 
Do milho cor de cereja dos Aruakes? 
Dos artefatos barrancoides dos Walpés? 
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio 
e a toada dos riachos verdejando os caminhos? 
Da antigüidade seletiva dos tucanos, 
muras e cambebas? 
Lembras-te, por acaso, 
da bola de sernambi que estes últimos 
te deram, ainda em pleno século XVII, 
e do jogo que eles jogavam 
num campo sem traves e sem torcidas? 


Numa rede de dormir 
os brancos degustam teu massacre 
mas olvidam o teu legado, 
esse imenso legado que sucedera ao jugo, 
impiedoso e cruel, 
daqueles teus primeiros habitantes, 
plantadores de sombras, 
raízes da terra. 
Guitarras, malária, devastação e confisco, 
eles trouxeram de tudo. 
Mas tomam caxiri no delicado suporte 
de uma cuia rústica ou pitinga; 
alimentam-se de farinha de mandioca 
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça 
para não ir ao trabalho; 
e têm muito de si na mestiça que se vende 
por las calles y los pueblos; 
e têm muito de si, também, 
nessa fusão de sons e melodias 
que fizeram do nheengatu das águas pretas 
a língua franca dos mitos 
e do lendário esquecido. 


IV 

Imitas um coração populoso e tranqüilo. 
Tens a forma de harpa ou alaúde 
com doze cordas festivas. 
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático 
voltado para si mesmo. 
Desigualdades e semelhanças predominam 
assim, de um lado e de outro, 
entre vales, planícies e altiplanos. 
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo, 
que há fome na Bolívia, 
que há tango, festas e greves na Argentina, 
que o Chile exporta minérios e vinhos, 
que o Brasil é o maior destes países, 
que o Equador tem reservas de prata e ouro, 
que o Peru não se expande, 
que o Paraguai continua bloqueado 
sem saídas para o mar. 
Em teu próprio nome, oh América do Sul, 
e em nome da história que te deram, 
hás de entender, no entanto, 
que ninguém pode ser feliz 
quando está cercado pela miséria, 
seja a miséria do egoísmo, 
seja a miséria das guerras; 
que ninguém pode ter paz 
quando há golpes e matanças 
do outro lado de suas fronteiras. 
Hás de saber entrementes que, 
por cima da fala dos caudilhos, 
paira a linguagem fluida ou tormentosa 
daqueles que te celebram; 
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas 
ou se debruçam nas torres de vidro; 
ou daqueles, ainda, que se confundem 
com os traços das telas que azedam em teus sótãos 
e em tuas águas-furtadas. 
Estes homens de letras ou picassos anônimos 
entregues à corrosão que desfigura 
e ao abandono que mata. 




Quantos equívocos te cercam 
antes e após a descoberta, por ti, 
do torno do oleiro, da roda e do arado? 
Que simpáticas figuras transoceânicas 
poderiam ter-te doado, 
oh América do Sul, 
carrinhos votivos de cerâmica, 
travesseiros de barro 
e selos em forma de bujarronas? 
E as tuas escritas? 
Terão sido trazidas por quem 
- fenícios, gregos, romanos – 
se colocam na origem de teus índios? 
Fascina acreditar, em vez disso, 
que provenhas, isto sim, 
de alguma centelha que se fez Avalon, 
Atlântida ou Atlas, 
segundo escrevem as aves migratórias 
quando te buscam nos pélagos, 
e adivinham teus ecos profundos 
nas cavidades do espanto. 




VI 

A cidade perdida dos incas 
são tantas cidades quanto as portadas 
que levam à presença do sol; 
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos, 
e dali às cavernas talhadas a ouro, 
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram 
ao peso dos colossos que protegem a montanha 
das patas ecoantes de Espanha. 

Em cada milímetro quadrado 
das alturas que saltaram de mares incalculáveis, 
Amarus confundem a inteligência 
dos homens de Pizarro. 
Labirintos ficaram, boiunas coleiam 
na ouriversaria das auroras. 
E ninguém poderá decifrá-las. 

Para Iucay se evadira Manco. 
E uma das primeiras guerrilhas da história 
consegue fazer das trilhas enganosas 
o desgastante baralho das Cordilheiras. 
A imagem de raios solares 
com mais de cem toneladas, 
em que leito de Vilcabamba 
terá se consumido em miríades de estrelas? 

Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa. 
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca. 
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados. 
Tupac Amaru expira em Cuzco 
levando no olhar a música do império. 



VII 

Grande é o solar do tempo nesta aldeia 
onde um galope nunca se interrompe. 
Este chão de Pizarro em Guamachucho 
de lavas contraídas pelo medo. 
Escarpas traçam rápidas figuras, 
pousam brilhos de séculos vencidos. 
E um velho terremoto, agora fóssil, 
arroja um tigre do alto de um penedo. 
A noite é um vinho branco. Mas o sangue 
que transborda do lago, não descansa: 
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição, 
estes três assassinos de Atahualpa, 
daquele em cujo peito o sol dos incas 
despedaça o seu último clarão. 


VIII 

Nos porões soterrados debaixo 
das cidades, deuses animais de terracota 
aparecem ao lado da serpente, 
e ao lado da serpente 
paradigmas antropomórficos. 
Foi assim que teus nativos, 
pescadores de Valdívia, 
dominaram os ornatos circulares: 
perfis abstratos, 
bizarras entidades híbridas 
sobressaem nos relevos celestes; 
e ao lado destes, ardósias cônicas, 
traçados olmecas. 

Um portal contendo símbolos xamãs 
e sarcófagos dourados, 
torna visível o silêncio dos mortos 
na estática de teus músculos altivos 
prateados de neve. 

A Quinta Era, afirmam ali, 
pertence a Tonatiú, o deus Sol, 
habitante dos leques das palmeiras; 
e há de ser confirmada por graves, 
extensos abalos. 
Pumas alertam para as ameaças que sobem 
das Ilhas Arqueanas. 



IX (a lição dos rios) 



Tentando lavar este sangue 
inutilmente derramado, 
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota; 
ele vai mudando de nomes 
até unir-se às águas revoltas 
do lendário Urubamba. 
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac, 
quando formam, juntos, 
o Rio Amazonas. 

Muito tarde, porém. 
Um grande exemplo despercebido. 

Esses rumores até hoje incessantes, 
este chamado das vertentes comuns, 
somente os poetas o sabem distinguir 
na diversidade que amalgama 
e na dor que ensina. 


X (balada enquanto seja) 

Ao contrário de outras águas, 
nosso rio é movimento, 
serpe andina em debandada 
vai ele em busca do mar; 
desde que nasce de um fio 
por ondas rola barrento, 
vem à tona e vira vento, 
é estirão que sai do nada. 

Rio de lendas ficou, 
matreiro, curvo e norato, 
seu berço de concha e lua, 
com três nomes de batismo, 
três caminhos sete bocas 
por onde bebe a tormenta; 
mas tem mágicas, puçangas, 
e a cada estória, se aumenta. 

Pântano cósmico, diz-se 
por quem o lê pelo avesso, 
por quem ouve a queixa inata, 
por quem adentra seus peixes, 
por quem taboca faz beiço 
e sopra o fogo da enchente, 
pois este rio é começo 
da febre que torra a gente. 

Ao contrário de outras águas, 
o Amazonas, como um todo, 
pode tornar a seu fio 
como náufrago do lodo. 




XI (Thiago de Mello) 

Por caminhos de San Tiago, 
volta o poeta das angras 
a quem doara o seu canto 
pela causa dos humildes. 

Levara o corpo sadio, 
como quem leva a esperança 
marcada a fogo no brigue 
que, novo, se lança ao mar. 

Os Estatutos do Homem 
riscando o teto da noite 
com seus mastros decididos, 
quantos vilões não cegaram! 

Mas, igual à copa náutica 
das sapopemas gigantes, 
que pelas vias de Tiago 
desprendem flocos de sonho, 

retorna, depois da luta 
para o feno das raízes: 
a copa – rica de estrelas, 
o tronco – de cicatrizes. 





XII (a Pedra do Reino) 


Como então esquecer, 
neste painel de teus milagres, 
oh América do Sul, 
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna, 
a poesia e a prosa que se deixam fundir 
em seu romance d´A Pedra do Reino? 
Assim também, igualmente, 
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior, 
a cerâmica de Côca, 
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia 
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios? 
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses 
em busca das cacimbas, 
do aboio crepuscular, 
do alpendre de seus avós e da espada 
de algum rei com sua túnica de abelhas? 
Pois é das artes desse Ariano vulcânico 
e de seus valerosos cavaleiros, 
as surpreendentes iluminogravuras, 
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio 
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa, 
não são réplicas inúteis. 




XIII (entrefala e louvação) 


Deixemos, portanto, as amoras, 
o etéreo veludo celeste, o filme vazio, 
a novela das oito 
e as ruas por onde não passaram 
bandeiras despedaçadas por um grito maior 
que a esperança dos mortos. 

Deixemos de lado as violetas 
que ardem nos versos prematuros 
daqueles que nunca percebem o gemido 
das salamandras 
nem a fuga dos girassóis alucinados. 

Deixemos de lado o jarro de Matisse, 
a gôndola que imita o cisne de Isolda, 
as olheiras roxas das janelas caiadas 
pelo terror dos massacres. 

Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos, 
provara do vinho amassado com a terra, 
o suor e as lágrimas de quantos, 
no Chile, na Espanha e na Turquia, 
conseguiram, em seus momentos finais, 
erguer a face do entulho e da lama, 
cuspir na bota dos tiranos. 

Louvemos Neruda pelos gestos perenes 
de salvar um carneiro da morte, 
uma rosa da escuridão e muitos, 
centenas de amigos, 
do cárcere infecto e da bofetada humilhante. 

Saudemos Neruda 
com uma taça de beija-flores. 


XIV (sursum corda habemus) 


O giro vesperal das andorinhas 
sobrevoa os transcursos das cordilheiras; 
paira, depois, sobre os telhados gastos 
pelo mofo dos armários vazios 
e o esquecimento das chuvas. 
Elas tomam as sereias de tuas falanges, 
dedilham a ira dos terremotos. 
Mais do que nunca teu coração vacila, 
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união 
entre o Ocidente dos filósofos 
e a pátria dos cardos ensolarados. 
Terá sido esta a pausa dos monumentos, 
o tremor que se estabiliza nos ossos, 
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água 
no enterro dos navios. 

Uma sombra te acompanha desde que nasceste, 
orográfico e triste, 
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro 
com os andrajos da mulher de Bolívar, 
a insepulta de Paita. 
Teus versos são lições de uma geografia da alma, 
rochedos floridos de ternura. 
Soltos na madrugada, 
eles rastreiam fragrâncias, matizes, 
números e signos gravados na espuma 
e no cansaço das festas. 
São metáforas da hora incalculável, 
a incrível marca do passageiro. 

Depois das estradas, Neruda, 
o amor te concedera uma pausa, 
um silêncio neutro que irrompe dos tanques 
cobertos pelo trigo; 
uma pausa que pergunta a cada coisa 
se tem algo mais. E a cada palavra 
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico, 
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos 
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros. 


Teus cantos são cantarias de luar, 
pólens de ouro e neblina. 
Oh América do Sul 


(Publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008).