quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O QUE É CONTO?


O que é conto?

 

Os manuais e os dicionários de literatura ensinam que o conto deve ter em si um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, uma única célula dramática. Por isso, o conto rejeita as digressões e as extrapolações, ou seja, o passado anterior ao episódio é irrelevante, assim como o são os sucessos posteriores. Sendo o tempo limitado ao momento do drama, também o espaço seria circunscrito a uma sala, um cômodo. Sendo tudo tão restrito, por que as personagens seriam muitas? E a linguagem do conto? A da concisão, com predomínio do diálogo. Chegado o epílogo, o contista há de ter guardado um enigma. Ou o desfecho inesperado, embora determinado desde o começo. E mais uma infinidade de regras, limites, modelos.

Se todos os contistas assim elaborassem contos, há muito teríamos deixado de lado esse gênero cada vez mais rico, por se empobrecer, se uniformizar. Pois não é difícil escrever conto com obediência ao enunciado nos manuais. Os próprios escritores de manuais, os dicionaristas, os professores de literatura, os estudiosos do conto seriam bons contistas. Bastava-lhes seguir o modelo. E assim se deu durante muito tempo. E assim se dá há muito tempo. Não se pode negar, no entanto, que bons contistas não se afastaram de todo (ou em todas as composições) desse molde. Machado de Assis elaborou contos de estrutura tradicional. Guimarães Rosa também. E tantos outros. Assim como escritores medíocres realizaram contos de forma nova, moderna ou revolucionária. Ou seja, o bom conto tanto pode se moldar na tradição como na inovação. Ou não se moldar a nada.

Wilson Martins, no artigo “Contistas”, fez estas observações: “Em termos de literatura, escrever um conto não é contar uma história por escrito — é contá-la com estilo literário, ou seja, com elegância linguística, verossimilhança, sábia estruturação no desenvolvimento da intriga, desenho convincente no caráter dos personagens e invenção de pormenores, tudo concorrendo para defini-lo como obra de arte literária. Também nessa arte tem validade a lei de economia segundo a qual a moeda má expulsa a boa: desanimado com a enxurrada de pseudocontos publicados por pseudocontistas, Mário de Andrade, em desespero de causa, declarou ser conto tudo o que os autores designam como conto – afirmação sarcástica cuja ironia passou larga e convenientemente despercebida, com este resultado inesperado e não menos irônico: passou a ser conto tudo o que se publicava como conto...”

Segundo Assis Brasil, em A nova literatura (Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1973), o conto brasileiro se renovou com Samuel Rawet, cuja estreia se deu em 1956 na coleção Contos do Imigrante. E assim argumenta o crítico: “Aquela história linear, de começo, meio e fim, prima-pobre da novela e do romance, quebrava sua feição tradicional em busca de outros valores formais” (...) “o conto adquiria uma forma autônoma, não mais ligado ao convencional do enredo.”

Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.

            Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica.

Estreou em livro Graciliano Ramos aos 41 anos de idade. Isto não quer dizer que tenha começado a escrever tarde. O exercício de escrever está para o escritor como o exercício de andar e falar está para os recém-nascidos. O aprendizado faz-se lentamente. Escrever, no entanto, não é um mecanismo inerente a todos. Como não o é compor música ou pintar quadros. Exercitar o ato de escrever pode resultar num São Bernardo, após anos e anos de exercício contínuo, diário, quase febril. Ou pode redundar em historietas de gosto discutível. Isso quando o candidato a escritor é muito pretensioso. Quando não o é, termina escrevendo artigos ou reportagens. Se chegar a tanto.

A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte, nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.

O narrador (autor de prosa de ficção), como o poeta, é um curioso, um escavador, um repórter. Um vagabundo à cata de aventuras, de pessoas, de fatos. Para disso extrair a matéria-prima de suas “criações” ou “criaturas”. Os outros não percebem nada, porque, no máximo, veem. Ou não veem, porque não buscam ver.

Nenhum ficcionista cria tipos, inventa personagens. Se o fizesse, estaria abstraindo o homem e fracassaria como escritor. O que realiza é, primeiro, uma descoberta, porque o ser humano é sempre terra desconhecida. Descobre o seu semelhante. Crê na sua existência, como os navegadores antigos acreditavam nos mundos novos. E parte no seu rumo. E o explora, sozinho. Penetra-o, confunde-se com ele. Revela-o. O ficcionista é um revelador. De mundos reais e quase sempre ignorados.

A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas.

Todo contista sonhará escrever um grande romance? Contos mais longos seriam ensaios para romances? Talvez sim, inconscientemente. Ensaio que não deveria ser levado ao palco, sob pena de vaias do público. Os bons narradores escrevem contos ou romances e novelas. Nunca confundem alhos com bugalhos.


Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Ora, uma peça curta, como conto e poema, será sempre uma peça curta, mesmo que momentaneamente inserida num volume junto a outras. Quando se fala de “Cantiga de esponsais”, pouco importa se foi publicada neste ou naquela coleção de Machado de Assis, embora só pudesse estar em Histórias sem data, porque assim o quis o autor. Mas isso não significa nada para o leitor (é de interesse do pesquisador, do estudioso, do historiador, etc).

Os gêneros literários estão em constante mutação e interligação. No Brasil ainda se praticam contos aos modos de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Maupassant, Tchecov e outros, todos diferentes entre si. Uns se perdem no meio do caminho e enveredam pela crônica. Outros querem escrever História, que também é crônica. Há até o conto-ensaio. A maioria, no entanto, permanece presa aos ditames do velho e bom realismo. Uns não se afastam do sertão ou do mundo rural. Outros se transviam pelos becos das urbes. Há os que não sabem de matos nem de ruas e preferem os meandros da mente. Uns leram muito, outros nada leram. Uns souberam vagar pelos abismos de Poe, pularam fora dos livros, outros permaneceram de olhos vidrados na paisagem aberta diante de suas janelas. Uns se exercitaram mais, outros se contentaram com os primeiros mugidos. Tem sido assim, é assim, será assim sempre. 

            Não há mais o conto, no sentido tradicional, dicionarizado do termo. Conto é apenas termo literário de manual e dicionário. Para orientação dos editores e dos professores de literatura. Quem disse que Machado só escreveu contos, romances, poemas e crônicas? Gilmar de Carvalho escreve legendas, Carlos Emílio escreve delírios verbais, Jorge Pieiro escreve contemas, outros querem imitar Maupassant ou Tchekov. O que importa não é a forma, se há atmosfera ou não, se há enredo ou não. Ser ou não ser conto, isto é lá para os filósofos. Importa ser arte literária.

Quanto à literatura amazonense, eu lhes sugiro, aqui, se for o caso, recorrerem aos meus livros ¨Existe uma literatura amazonense?¨, ¨Roteiro da Literatura Amazonense¨, ¨Curso de Arte Poética¨ e  ¨Amazônia: o massacre e o legado¨, todos ao dispor de consulentes e estudantes na sede da Academia Amazonense de Letras, na qual são mantidos, também, os arquivos pessoais de cada membro desta Casa. No entanto, a partir de 1982, com o surgimento da nova geração de escritores e poetas, essa história muda de rumo na questão do suporte (Internet), podendo ser avaliada nos sites e nos blogs, a exemplo da palavradofingidor, de Zemaria Pinto, hppt://Jorge-tufic.blogspot.com/, entre vários outros que interligam a palavra ao vasto universo amazônico.

A palavra na ficção, problematiza-se ou resulta em ficção. Ave, palavra! De quem saúda, no voar do pássaro, o poder, imenso, que nos engrandece e torna sublimes.

 

(*) Uma entrevista com Nilto Maciel tornara possível o êxito desta nossa palestra, na Academia Amazonense de Letras.

domingo, 27 de outubro de 2013

A PALAVRA NA FICÇÃO


A PALAVRA NA FICÇÃO

                                                                                    

 

                   Tenho encontrado leitores que me fazem perguntas embaraçosas como esta: “O que devo fazer para aprender a escrever conto, novela, romance?” No mais das vezes, digo-lhes: “Comece lendo os clássicos.” Alguns me responderam: “Mas eu já li quase todos e, mesmo assim, ainda não sei como escrever um conto.” Ora, há dicionários, manuais, tratados que dão noções sobre espaço, ação, incidente, drama, conflito, unidade dramática, história, célula dramática, lugar, tempo, passado anterior ao episódio, tom, personagens, tipos, caricaturas, linguagem, concisão, concentração de efeitos, diálogo, diálogo interior, monólogo interior, discurso direto, narração, descrição, ponto de vista, foco narrativo, primeira pessoa, narrador onisciente, começo, fim. Também o conhecimento de tudo isto parece não ser suficiente para dar ao aprendiz de escritor o cadinho para a realização da obra de arte. E, por falar em cadinho, captei a seguinte lição de Adolfo Casais Monteiro, em Os Pés Fincados na Terra: “A arte não é invenção pura; o artista é como que um cadinho em que se realiza a mistura dos ingredientes que são o pó da experiência.” Muitos sociólogos ditos marxistas insistem em afirmar que toda pessoa é capaz de criar qualquer obra de arte, desde que se lhe deem condições sociais, culturais para o exercício dessa capacidade. Ora, milhares e milhares de pessoas letradas, bem vividas se dizem poetas porque sabem escrever versos. No entanto, não são poetas ou não conseguem escrever bons poemas. Os gramáticos seriam então os melhores poetas, contistas ou romancistas.

                   Muitos desses escritores principiantes estudaram gramática, leram os principais livros – da Antiguidade aos dias de hoje –, se debruçaram sobre manuais, tratados, dicionários de literatura, e, crentes de já saberem tudo e estarem prontos para a criação literária, tentaram escrever contos, novelas, romances. O resultado, porém, tem sido desastroso. Faltou-lhes o quê? Persistência? Nem sempre. Humildade? Talvez. Imaginação? Quem sabe? Talento? Não sei.

                   Há quem pense ser mais fácil escrever contos ou poemas curtos que romances. Como se tudo fosse questão de tamanho. Ora, contistas são contistas, poetas são poetas, romancistas são romancistas. Alguns escritores conseguem ser bons como poeta, contista e romancista. Muito contista sonha com um grande romance e frequentemente o ensaia nos contos mais longos. Já o narrador mais afeito à arte de narrar nunca confunde alhos com bugalhos. Confunde-se também conto com crônica, o que é menos grave. Pior é chamar de conto simples anedota, piada, notícia, comentário, etc. No livro A Nova Literatura: O Conto, Assis Brasil faz didática distinção entre conto, crônica, prosa poemática e poema em prosa. Crônica é um relato, bastante pessoal, onde o autor nomeia e descreve acontecimentos, criando enredos num tempo histórico passado. O poema em prosa e a prosa poemática são formas confessionais, ausentes de fabulação.

                   À medida que o homem avança no tempo em sentido contrário à caverna (ou todo movimento é um retorno?) mais se torna difícil expressar-se por conceitos. Assim, a oralidade primitiva se confunde cada vez mais com a escrita dos novos tempos. Isto não quer dizer que o caso, o conto oral tenda a desaparecer. Ora, como não encontrar semelhanças entre o conto rural, que se confunde com a lenda, e o conto urbano de feições realistas? Difícil também delimitar os campos do imaginário e do real.

                   A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões entre narradores e teóricos em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações sofridas pelo gênero. Muitos estudiosos elaboraram vastas enunciações do conto. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada conceituação e a cada transformação seria preciso um novo batismo.

                   Os manuais, os tratados, os dicionários não tratam de questões menores ou de noções rudimentares da arte de escrever literatura. Pois eu quero aqui dedicar algumas palavras a essas “outras noções” de como escrever “corretamente” prosa de ficção. Ou como não escrever “incorretamente” prosa de ficção.

                   Comecemos pelo emprego exagerado de lugares-comuns e gírias. Os livros estão cheios de “nariz aquilino”, “lágrimas de crocodilo” e outros chavões. Se não é possível a metáfora, que se descreva o nariz do personagem com criatividade. Vejamos a gíria na frase: “O gatinho andava ao meu redor.” Ora, daqui a alguns anos quem poderá imaginar que o narrador se referia a um rapazinho e não a um felino? O escritor poderá passar como genial: o “gatinho” seria uma metáfora.

                   Há escritores que abusam da grafia distorcida de vocábulos, na certeza de estarem sendo fiéis à língua do povo, realistas, e de estarem preservando o idioma português. Ora, por que escrever “home” em vez de “homem”, “bêbo” em vez de “bêbado”, “eu tô com fome”? Neste caso, para ser fiel ao propósito de escrever como fala o zé-povinho, melhor seria: “eu tô cum fomi”. Guimarães Rosa fez malabarismos para não cair nessa esparrela. Escreveu sempre a fala do povo do sertão mineiro, porém com invejável inventividade, sabedoria, consciente do significado de cada sílaba, de cada vocábulo, de casa frase.

                   O mau uso dos diálogos tem sido outro pecado de muitos escritores. É o caso de personagens do tipo Zé-prequeté falando como literatos, isto é, o oposto do uso excessivo de gíria ou transcrição da fala do joão-ninguém. José de Alencar é criticado por ter posto nos lábios de seus índios o modo de falar dos portugueses. Porém, o romantismo tinha lá suas leis, como a de que os diálogos nunca reproduzissem a fala dos “sem fala”. O sertanejo que falasse como o doutor da cidade, com acatamento e respeito às normas gramaticais.

                   Há também o vício da repetição exagerada de vocábulos, na mesma frase, no mesmo parágrafo, no mesmo capítulo, no mesmo conto. Os mais comuns são: “que”, “mas”, “estava”, “era”. Vejamos este caso: “João dos Bois ia levantar mais tarde. Antes de levantar...” Contemos os “que” neste trecho: “Mieko achava que devia voltar à lavoura novamente e conversa com o Noriel e pedir que ele não contasse a ninguém o que tinha acontecido.” Do mesmo livro é a frase: “Foi só depois que o Roberto tinha levado a Arume que a Mieko  achou que podia escrever.”

                   Semelhante ao senão apontado é o uso forçado de figuras de linguagem, o emprego desnecessário dos artigos, o descuido na conjugação dos verbos, os cacófatos. Tudo isso é muito comum em narradores brasileiros do final século XX e depois. Para isto, dizia-se: “Fulano não tem estilo.”

                   Passemos aos personagens. Um dos erros mais comuns é o excesso de personagens em contos. A não ser que somente dois ou três deles participem diretamente da ação. A primeira causa disso será o surgimento de personagens desnecessários, sem lugar na ação, supérfluos. Depois, a confusão no enredo. O tamanho da narrativa não comporta muitos personagens. E não será a evolução do gênero que irá mudar isso.

                   E para que personagens sem nome? Cabível em contos com muitos personagens. Somente os principais, dois ou três, terão nomes.

                   Outro equívoco de alguns narradores: o aparecimento súbito de um personagem secundário, irrelevante, e o seu repentino desaparecimento. Melhor excluí-lo da história.

                   Vejamos a descrição dos personagens. O narrador não precisa descrever o caráter dos personagens. Se fulano é mau ou bom, não cabe ao narrador qualificá-lo e, sim, ao leitor. Suas ações e suas palavras o pintarão aos olhos do leitor. Também é ocioso descrever o aspecto físico dos personagens, especialmente em conto. No romance realista e naturalista a descrição não podia faltar. Como não se deliciar o leitor com o corcunda de Notre-Dame? Porém, a descrição não se fazia gratuitamente. Sem o aleijão do personagem o romance não existiria. A descrição de defeitos ou características não faz sentido, a menos que o aspecto físico do personagem seja imprescindível à história. Se fulano é cego, manco, perneta, se assim descrevendo o personagem quis o narrador simplesmente “enfeitar” a história, homenagear alguém, seja lá o que for – a descrição então será uma excrescência.

                   Agora a questão do narrador. Durante muito tempo prevaleceu em prosa de ficção a onisciência do narrador, fosse personagem ou não. Porém, tudo mudou a partir de James Joyce. O narrador onisciente desapareceu. Os pensamentos dos personagens não podem ser do conhecimento do narrador. “Fulano tencionava matar sicrano.” “Ele se sentiu culpado de alguma coisa.” A interferência excessiva do autor-narrador é um mal maior para a narrativa. Assim como o excesso de observações e explicações. Não deve o narrador dar informações, sobretudo se inúteis à trama. Exemplo: “Na curva do caminho surgiu um cavaleiro: era o Vadico, um velho conhecido que batia muito na mulher.” Tal informação é até sem sentido no conto, vez que Vadico nem sequer volta à cena.

                    Mencionar nomes de cidades, logradouros, somente se absolutamente necessário ao enredo. Dizer que fulano mora na Rua São Sebastião ou na Avenida Dom João poderá ser necessário, sim. Se não o for, para que o nome do logradouro? Nunca explicar o óbvio. Como assim: “Em Fortaleza, a bela capital do Ceará, vivia fulano.” Aliás, nunca explicar nada. “Isto aconteceu porque...” Melhor o mistério. Cada leitor fará uma dedução. Nunca opinar. “Aquela mulher era má.” Cabe ao leitor o julgamento dos personagens. O narrador não é juiz, não decreta nada. Sua função é tão-somente narrar.

                   Moreira Campos, um dos mestres do conto brasileiro ou um dos melhores discípulos dos grandes mestres, seguia à risca as lições de Tchecov. Em “Breves palavras”, apresentação do livro Dizem que os cães veem coisas, escreveu: “Sou fiel, quanto à síntese, ao conceito de Tchecov: ‘Se a espingarda não vai atirar no conto, convém tirá-la da sala.’” Ainda desse mestre a advertência de que, “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira.”

                   Em suma: para escrever boa prosa de ficção é preciso, além de conhecer todas as técnicas de narrar e muito talento, saber lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, cortar, remendar, costurar palavras, frases, parágrafos inteiros. E não ter medo do cesto de lixo, de ser cruel consigo mesmo. Não ter complacência com o vício, o erro, a mediocridade. Não ter piedade nem de si mesmo nem de personagens.  

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

TIARA DO VERDE AMOR



Duas epígrafes, imagino agora, deveriam ter sido impressas nas páginas de entrada desta tríplice coroa de sonetos , Tiara do verde amor, de um dos melhores poetas brasileiros de todos os tempos, Max Carphentier, autor, inclusive, de um livro de contos e de um romance premiado pela SUFRAMA (Superintendências da Zona Franca de Manaus). Uma delas eu tirei da Cartilha da Amazônia (Livro do aluno, SEDUC/INPA, 1979) e traz a seguinte frase ou período simples: “A Amazônia vai até onde acaba a vegetação amazônica”. A outra é minha, e tem forma de trova:

                                               Floresta é tudo o que encerra
                                               fauna, flora, sol e ermo:
                                               entre o verde e a moto-serra
                                               não pode haver meio-termo.

Não se trata aqui, porém, de um livro técnico, embora se trate de livro que tenha, aliado ao poético e à difícil arte da espécie coroa, o interesse de infundir amor pela nossa Amazônia, última grandeza natural que testemunha o homem e o nascimento da poesia.

Como no tempo dos árcades, o autor festeja o advento da Amada, repleta de bons prenúncios. O verbo chega a marcar-lhe a presença, nem muito sutil nem muito ruidosa, pelo fato de já tê-la em si mesmo e no todo que ainda vai ser narrado e percorrido. Ela chega assim veículo e companheiro, musa e pão, tapete mágico e flor aquática. E ambos partem, depois desse introito, a tecer, nos ares perfumados e bosques atentos, sonetos que tecem sonetos, sonetos que tecem de verde o amor através do qual, o poeta e sua Amada, nutrindo-se da seiva agonizante que instaura a vida e protege os seres do planeta, tentam salvar a Amazônia do maior e mais longo enterro ecológico da História. A tiara, símbolo do poder místico, eleva-se do canto em ramos luminosos que se agitam de esperança.

Transferida para os mísseis de alcance continental, a intensidade poética em jogo através da terra e dos mitos da coroa intermediária, redobra em potência. A verde tiara do Amor, contudo, alando-se cada vez mais em descobertas e leves registros metafóricos, sem a cor alarmante das caixas de alta tensão, pretende colocar o bom senso, em vez do pânico; a vigília, em vez do ódio; a árvore, em vez do poste; a vida, em vez da morte; o verde em vez das queimadas.

Em verdade, poeta, só o Deus venerado pelos brancos, ou os deuses rubros da forja de Vulcano, podem salvar esse conjunto de matas e águas em absurdo que se juntaram no ecossistema da Amazônia, vista e sonhada por gregos e troianos, ianques e russos, pretos e amarelos, mas onde apenas alguns reconhecem a impossibilidade de um meio-termo que seja, entre o desenvolvimento colocado pelos homens de empresa e a necessidade de sua preservação, como parte que é de tantos outros sistemas, ainda hoje desconhecidos.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A SUPOSTA CRISE DA POESIA

(FOTO SEBASTIÃO SALGADO)

A SUPOSTA CRISE DA POESIA

Em sessenta anos de Modernismo, divididos entre quatro gerações classificadas de acordo com Ortega Y Gasset, para quem “uma geração é um período ou zona de datas abrangendo cerca de quinze anos que se distribuem sete anos antes e sete depois de um ano central assinalado como época determinante e característica”, a poesia brasileira teve altos e baixos, chegou a encalhar na “experiência” de 45, mas obteve um alento novo através do Concretismo, que lhe propunha uma linguagem não discursiva, verbi-vocal-visual (palavra x som x figura), utilizando o ideograma como forma ideal e muitas vezes caindo no POEMA FIGURATIVO (1). Veio depois do Neo, a praxis, o poema manipulado de Roberto Pontual, a poesia de muro original do Amazonas (fase teórica), o sincretismo pernambucano – e o poema/processo, este último com o objetivo de “dissociar a Poesia (estrutura) do Poema (processo), separando, definitivamente, o que é  língua de linguagem, dentro da literatura” (2). Nesse intervalo sobressaem as manifestações isoladas que pretendem conciliar a função estética da poesia com a mensagem social, a falta de recursos materiais com a publicação alternativa, a poesia marginal, etc, etc. Em “Canto Melhor”, Ed Paz e Terra, Manoel Sarmento Barata orienta  sua crítica neste mesmo sentido.

Verso, palavra, ausência de verso, arte gráfica, processo. Em comunicação apresentada ao I Seminário de Literatura das Américas, Domingos Carvalho da Silva aborda o problema da palavra, o verso e a suposta crise da poesia, recolocando a poesia como verso e o verso na dependência de seus componentes métricos defendidos por Aristóteles, em sua “Arte Retórica e Arte Poética”. No estudo da palavra, o Autor se desdobra amplamente em torno do significado polivalente de signo ou de metáfora que lhe assegura o uso multívoco da linguagem conotativa, isto é, poética, fenômeno que ocorre espontâneamente, no ato de criação do poema, e não de propósito, como quer Umberto Eco, transferindo, assim, para o campo  denotativo da razão o ato semi-consciente da elaboração poética (3). Pondo em relevo o envelhecimento e a morte das palavras, de que se nutrem e renascem outras, ele chega ao Concretismo e à opção pelo retrato daqueles que, temerosos da exaustão da palavra falada e da sintaxe da língua viva, tentaram substituí-las pelos signos gráficos, então considerados elementos concretos independentes do próprio significado e implantados no espaço branco do papel, manifestação, segundo DCS, não de poesia, mas da arte gráfica (4).

Quanto ao verso, defende-o como sendo a própria estrutura da poesia, como a pele do corpo, valendo ressaltar a diferença que estabelece entre prosa e poesia, entre verso e a linguagem discursiva, entre a linguagem conotativa e a linguagem denotativa, coloquial ou científica. Diz: “ O verso – de medida regular ou não – é a base rítmica da estrutura do poema. Ocorre porém que nem todos os que usam o chamado verso livre são verdadeiros poetas, isto é, nem todos têm o instinto do ritmo da linguagem poética:  na maioria dos casos são simples prosadores que invadem a área da poesia, instaurando nesta o ritmo da prosa, que é apenas respiratório e gramatical.”

Crise da poesia?

Colocada pelo conferencista  como suposta, já que, citando Claudel, a poesia está em tudo, salvo nos maus poetas, logo se depreende que essa “crise” resulta de vários fatores externos à obra de arte, e como tal influenciadores em seu constante processo de renovação, de equilíbrio prioritário no desequilíbrio dos acontecimentos que lhe temperam a couraça para novos embates travados com o tempo. A clássica procura de adequação entre fundo e forma, persistente na elaboração de uma linguagem poética capaz de sentir o mundo como presença do homem, inscreve-se também entre os sintomas de crise, numa época tumultuosa em que “a poesia ficou impressa no livro, que continua a entrar discretamente pela porta da frente de nossas casas, ao passo que a imagem de televisão atravessa as próprias paredes”. (5)

Essa mesma crise da poesia, compreendida também como desgaste de sua “popularidade”, de sua  cobertura  crítica pelos meios de comunicação e de seu acesso ao leitor, foi posteriormente ressaltada pelo poeta Fernando Mendes Viana, em tom de súplica e socorro, no artigo intitulado “SOS para salvar a poesia” (Suplemento Literário de Minas Gerais de 05.12.70) e objeto de comentário assinado por nós (em 14.13.71). Fazíamos, ali, uma profissão de fé nos princípios eternos  que acionam o carro de Apolo, nessa corrida  milionária  com as ogivas espaciais. E dizíamos que apesar dos contrários ou por isso mesmo, a poesia é concebida nas origens, ou seja, que por impulso de mágicas ela devolve ao instrumento receptivo a limpidez objetiva de quem penetra numa cortina de chuva. As palavras subseqüentes são frutos dessa travessia incolor, transparente, e adquirem a extensão de um fogo que se grava nas árvores, e o ar das cinzas revoltas é o mesmo que brilha nas flores de maio. Os acontecimentos, as fábulas, o motejo, os crimes, as guerras, os encontros, as ruas, as pontes, os rios, as máquinas, o amor e a pedra, latejam no pólen do verso. Do verso verso ou da palavra verso, poema, feito para conter o sonho dos milênios. Não, não pode existir morte possível da poesia! Ela se nutre das partes mortas de todos os seus arredores, transfere-se de vaso, renasce, permanece. Daí o seu poder  de antecipação na descoberta dos velos misteriosos, e os atributos de vidente que se confere ao poeta. Os temas, por mais vulgares, se diluem e perenizam nos símbolos poéticos. Desse modo, a suposta crise da poesia decorre de um malentendido, a partir do momento em que os domínios do verso-pelo-verso receberam o impacto de novas estruturas, o sangue novo das pesquisas novas, o diálogo aberto com os outros campos do conhecimento,

Em suma, defendida como verso, representada como ideograma, processada como gesto de fazer algo equivalente a figuras ou construções geométricas, a poesia é condição primordial de existência decorrida na tranqüilidade que sobrevive ao caos para o cosmo, do eu particular para o  eu cósmico, do informe para o sublime, do sublime para o mágico. Quer seja palavra, verso ou meras representações estruturais, manipuladas ou “escritas”. Pois, em sessenta anos de Modernismo, uma coisa é certa: continuamos tão perto das primitivas inscrições rupestres, quanto o homem do Universo.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

DICAS! DICAS!


                           DICAS! DICAS!

Os fatos acontecidos até àquele momento, através de concentradas audiências com algumas personagens tontas de superstição e romantismo, se enquanto duravam lhe mantinham o sistema nervoso como um lago de peixes marulhantes, passadas carruagens e martírios, seu estado de reflexão voltara a mergulhar no vazio. Como tudo que nasce, cresce e morre. A camada gelatinosa da memória é um tecido de encantos. Portanto, caleidoscópico. À medida que se desmonta com as sutilezas da observação desinteressada nos fundamentos cromáticos, mais suas lâminas reduzem as formas do movimento visual, para que se chegue ao movimento real.

O mesmo resulta com as aparências mais simples. Mas será necessário que se parta da simplicidade que é um título como este – UMA ALMA SEM PAZ, impresso no centro de uma página em branco - , para os múltiplos do cosmo verbal metafísico que elegera seus núcleos de expressão nestas quatro unidades semânticas, sem que esta circunstância, no entanto, impusesse qualquer limite ao tempo de vigência ao objeto “sem paz”, ou, como no caso do romancista de Loudun, às 336 páginas de possessora narrativa.

Os fatos que geram a linguagem podem, em contrapartida, gerar novos incidentes por meio de uma linguagem capaz de transformar novos fatos em nova linguagem. Seccionando-lhes a corrida em busca do lógico, torna-se possível desviar o Cavaleiro de Numiers de sua rota, ao servir de fantoche à especulação literária dos psicógrafos, ou desenvolver espaço no sentido de aproveitar as vítimas do arquipélago de Gulag, como elementos de guerrilha contra as ditaduras capitalistas. Não diria o mesmo das mil e uma noites nem das sábias histórias dos derviches, já que a fantasia e a procura da verdade não fazem tão mal quanto transformar a verdade em fantasia.

Traçadas estas linhas gerais, espontaneamente alguns livros desceram das estantes e pousaram no meio da escrivaninha, imitando o deslocamento de objetos por levitação indireta. Ali estavam os três marcos subjetivos que urdiram os primeiros calendários: os egípcios com o reinado de Yokmose, os gregos com as Olimpíadas e os romanos antigos com a fundação de Roma. Em seguida à queda de Roma, inicia-se a Idade Média. Não é mais a leveza de um carro de guerra dos hicsos  que ilustra esse longo período de trevas. Em seu lugar é o guerreiro Carlovíngio, que assume a história. A dialética e a astronomia estavam ainda longe de um código de posturas que resguardasse a população dos surtos de epidemia. E, finalmente, a história moderna com os tempos de glória da revolução francesa. Os três quadros dominam, por instantes, a paisagem dos edifícios na moldura da tarde provinciana, quando padre Lactance grita aos ouvidos de Urbano Grandier: “Dicas! Dicas!” Aldous Haxley interfere para esclarecer ao leitor que “o encanto da história e sua lição enigmática consistem em que, de uma época a outra, nada muda, no entanto, tudo é completamente diferente.”

Como tudo é diferente! – sugere Tinoco. As velhas torres esquecidas já deixaram de abrigar andorinhas. Nem por isso deixa-se de vê-las como abrigo de alguma coisa, exceto de andorinhas.  As guerras continuam, salvo que a morte deixou de ser untada com as lágrimas da ausência. As praças parecem desertas, mas em algum lugar, dentro delas, há bosques e fontes onde o corpo se une ao conteúdo das águas. A escravidão foi abolida, porém as grandes indústrias mantêm-se pela força do trabalho. O balcão de Julieta ostenta luminária de butique européia e seu título é Romeo e Juliet.

Dicas, Urbano Grandier, dicas! Enquanto não há dicas alguns escritores se pintam de Londun e clamam por uma exorcisão interessada, menos no texto do que nos lucros da venda. Texto? As letras se debulham no abatedouro da crise, como galinhas enfurecidas! O manuscrito capeado de sarnas, confunde-se com a pele da noite. E o mistério dos fins retoma as algemas do espírito em sinal de que os  princípios é que respondem se uma coisa deve ou não ser entendida.

Com isto, adormeceu. Na certeza de que a rotina do seu dia, ligeiramente torcida pelo barlavento, em nada poderia modificar o peso dos átomos sobre a justa engrenagem dos silfos. Muito embora a dança deles seja, como realmente vinha sendo, o espetáculo dos outros.

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O FOGO QUE ANDA


O FOGO QUE ANDA

Depois das primeiras camadas removidas pelo vento, a terra admite solidez para os caminhos; as montanhas são limpas de arestas perigosas e o vale se adoça para a contemplação e o repouso.

Com estas frases, Surin, o  paciente exorcista de Aldous Huxley, decidiu extraviar-se, sem que fosse percebido, de todas as penas que lhe foram infligidas no decurso de seus dias em Annecy, mais precisamente naquela passagem do livro em que ele “começava a estudar, com certa minúcia, os objetos que ali estavam, coisa que, em razão de uma extrema debilidade dos nervos, não pudera fazer por quinze anos.”

Os objetos estudados por Surin lhe atraem a descer os cinco  ou seis degraus que davam para o jardim da casa, em seguida para o gramado, as margaridas de São Miguel, as cores do dia, o dourado do sol. Foi por isto que o monge, cuja santidade lhe conferia estar onde quisesse, e havendo descoberto, através da natureza livre, algo melhor do que o sadismo de seus contemporâneos, em vez de trocar de morada terrestre, trocara simplesmente de corpo físico com o primeiro indivíduo da localidade, disposto a receber as honras póstumas devidas ao santo. Logo após esse terrível encontro, ainda cambaleante pela ressaca dos intermináveis jejuns oferecidos à Virgem Maria, o novo archote embebido pelos ares da montanha caminhou em direção oposta às vilas e aos mosteiros.

Levantando os olhos fatigados para o céu da manhã completa de ruídos estranhos, já que diferentes daqueles que povoaram seus anos de látegos, preces, gemidos de dor e sussurros neuróticos de beatas arrependidas por algum mal-entendido, Surin considerou a distância entre os dogmas fechados nas brochuras góticas e o panorama vivo que se desdobrava diante de si, como um tapete de mágicas. Veio-lhe então à mente o que tinha sido. Um texto empoeirado, um palimpsesto cobrindo-se e apagando-se até que as letras pudessem também cobrir-se de sangue e as próprias artérias se convertessem na palha dos presépios. Agora, Surin podia olhar-se no verde, sentir-se na pedra molhada de chuva, lavar-se nos córregos.

Julgara, assim, que tudo aquilo era parte de sua última viagem, não exatamente a seguir do instante em que tomara o corpo do anônimo tentado pela inanição gloriosa de seu fardo humano petrificado na cela do convento, mas desde que se fora realmente, crendo que só a morte teria o poder de revelar o contrário da existência comum. Dúvidas, sempre as dúvidas! Ainda que Surin participasse de uma saúde digna de um pastor de ovelhas! Uma coisa, porém, já deixara de sentir pelos hábitos da tradição: o interesse doentio pelas ruínas das torres e castelos encontrados em seu percurso cheio de surpresas bucólicas, embora se lembrasse vagamente dos dias em que peregrinava através de suas muralhas e tantas vezes se fizera escoltar, nas eras difíceis da guerra.


As conclusões de Huxley parecem suficientemente claras para negar-se a Surin o direito de ascender a um estado de loucura semelhante ao de Jeanne dès Anges, a quem o jesuíta libertara dos terríveis demônios que infestavam Loudun, e culminaram com o espetáculo público da morte de Grandier. É qualidade inata do misticismo a conquista do objeto perseguido através das práticas que o possam igualar ao perseguidor. Plotino: para encarar o sol, o órgão da visão deverá antes habituar-se à intensidade da luz. Para a ignorância da época, Surin preparava-se com todas as minguadas energias, para alcançar a eternidade. Não imaginava ele talvez que a eternidade já tinha vindo ao seu encontro, pois, quando, na primavera de 1665, a morte o surpreendeu, não havia, como disse Jacob, nenhuma necessidade de ir para algum lugar: já estava ali.

Dedicando-se inteiramente ao trabalho das letras e das almas, Surin havia tocado a essência do divino com a lucidez parcial dos santos exorcistas; restava-lhe então seguir em busca de sua outra metade, sem a qual a função de estar é negativa de ser, e todo alcance, por mais definitivo, só coincide com a morte para aqueles que ainda estagiam no plano de simples testemunhas, não lhes cabendo, tanto quanto a ele, dar conta do fim ou do começo de cada tarefa. As labaredas são ventos azuis que expungem do lodo e restituem a vontade. Se Grandier necessitava delas no próprio corpo, Surin transformou a si próprio no difícil fogo que caminha.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

AS NOITES E OS DIAS

                        AS NOITES E OS DIAS
Para quem lê contos, para quantos que ainda mantêm, à cabeceira, os livros fundamentais desse gênero da literatura, o que pode representar “Os Dias e as Noites”, do médico e ficcionista Ronaldo Correia de Brito? Pois logo vos digo que o livro deste autor representa o que de melhor já foi escrito, até hoje, pelos mais consagrados escritores brasileiros, quer hajam estes inovado a técnica do conto, quer  tenham ficado na linha tradicional da narrativa curta, por absoluta necessidade de enfatizar os temas de  uma região tão forte como o Nordeste, ou tão desconhecida como a nossa Amazônia.
Não é fácil, portanto, explorar o regional, o poder da imagem, sem cair nas armadilhas do terrorismo psicológico, nas malhas comuns daqueles dramas que respeitam a todos os viventes do planeta, compondo, assim, um texto ausente de Eufrásia Menezes, ali onde “os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite”. Todavia, em Ronaldo Correia de Brito não há propriamente regionalismo no sentido Blaus Nunes, símbolo da oralidade, alter ego do grande Simões Lopes Neto, tampouco se confunde com a narrativa grosseira de fatos pitorescos, históricos ou sociais referentes a este ou àquele lugar, fazenda ou vilarejo. Ele vai muito além disso, através da linguagem, começando seus contos como quem retoma o fio da meada, isto é, sem começo; o que dá, ao meio, as surpresas regentes do clímax  que urde as tragédias, desloca o fim para o começo ou fica para o leitor concluir pelo autor, como em certas peças de teatro, anteriores e contemporâneas do metateatro. Seu texto abriga o discurso poético isento da “transparência” assemelhada ao pingue-pongue das ruas, da  fala corrente, a que se refere Assis Brasil em seu “Vocabulário Técnico de Literatura” (Edições de Ouro, 1979, pag.65). E vai mais longe: articula o diálogo das personagens sem o recurso barato da transcrição ipsis verbis, do apelo à gíria, mas dando a cada incidente o tom e a síntese medidos pela secura dos hábitos, regulados por muita ação e pouca conversa.
O “mastruço”, o “gibão”, a “rapadura”, as léguas percorridas e o eterno conflito entre Deus e o Diabo, com todo um denso repertório de chaves semânticas, a par de uma sintaxe amadurecida no clima das leituras seletivas dos clássicos do romance nordestino, são estes os elementos que fazem o seu estilo pessoal, coerente e despojado, oposto ao modo dos primeiros rapsodos, sempre atento aos mínimos objetos e detalhes que se incorporam á legenda, à matéria que faz deste livro um ser vivo, como quer Mário Hélio.
Numa visão moderna, os contos de “As Noites e os Dias” remontam ao século XIX, quando predomina, no Ocidente, o chamado “conto rústico”, o qual, embora voltado para uma tendência realista, conserva ainda um forte sentimento romântico e idealização da  realidade. Isto quanto às influências do progresso (entre aspas) que esmaga e tenta sobrepujar as delícias da vida campestre ou rural. Inclina-se, neste mesmo raciocínio, para o lado dos “humilhados e ofendidos”. Valoriza, portanto, o rural, no caso da Europa, as aldeias, em contraste com os danos da civilização industrial e das cidades modernas, surto este que nos daria as obras pioneiras de autores americanos, franceses, russos e portugueses. Quem não se lembra das “Novelas do Minho”, de Camilo Castelo Branco, do  “Tartarim de Tarascon”, de Alphonse Daudet, ou, ainda, de “A Fortuna de Roaring”, de But Harte?
“As Noites e os Dias”, contudo, poetizam, nas linhas e nas entrelinhas, com a melhor técnica do “realismo mágico” (melhor porque espontâneo, nunca forçado), e o que, de resto, parece absurdo, nele deflui com a naturalidade dos sonhos. Se não, vejamos: na postura convencional, porém ambígua, é Lourenço Estevão que, “depois de vinte anos de morto, voltava para se vingar”. Numa outra dimensão, como parte de um comportamento que soma deveras com as raízes que interligam a história com a geografia, as personagens do livro aparecem imunes à surpresa e aos acontecimentos que urdem a tragédia, como se, acostumados aos rigores da sorte, já estivessem na pele daqueles que se foram. A fé, que remove montanhas, acompanha, sem hesitação, o áspero ritmo das alparcatas sobre o pedregulho dos caminhos, enquanto  a face dos mártires anônimos toca as estrelas.  
São doze contos, como doze são as horas do dia, como doze, também, são as horas da noite. De sua leitura, a ressonância dos fatos descritos, o látego intenso das frases saídas da terra, como a correia sai do couro: “Amarelo, tremendo de malária, uma crosta de grude no corpo que não largou nem raspada com telha velha” (“O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, pag.12). Em Rabo-de-Burro”, a mulher perseguida pelo falso lobisomem “sentia seu corpo triturado pelos olhos dos homens” (pag.21) “Dolorida” é um monólogo dramático, com rasgos assim: “Agora tudo é longe. Tá escuro sem ser noite. E este morto aqui marca meu tempo. O que foi que eu deixei de ver?”(pag.30). No conto “Inácia Leandro”, tenso e absorvente até a última linha, a presença de Lourenço Estevão “com cinco balas no corpo e o seu riso de menino”, como que se repete: “Aquele desconhecido, naquela noite, tinha a face de um destino”. ”A Faca” é um achado e uma encruzilhada de sombras, em torno de um crime: “O vaqueiro guardou, até o fim da vida, o brilho nos olhos, aquele pássaro de asas prateadas escapulindo da morte”. “Eufrázia Menezes”  concentra o melhor na difícil técnica do solilóquio, e tudo, neste conto, pode ser destacado como “pedra de toque”, sem muita escolha. Por exemplo: “Estamos os dois neste universo de ausências: ele dormindo e eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata a este mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, ela lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, celas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu”.
E daí por diante. Ronaldo Correia de Brito sabe, como ele só, que o gesso do conto não recusa a experiência do teatro, nem as audácias  inovadores da linguagem, que induzem à poesia. São estes, portanto, os  valores da escrita basicamente ligados ao material da pesquisa, aos lastros da memória e ao discernimento sociológico na observação direta dos fatos com que ele esmurra a consciência de seus contemporâneos. A realidade destes contos, dosados pelo fantástico, darão às realidades a que estamos habituados qualquer coisa semelhante a um passo a mais, em direção a nós mesmos. Trata-se, sem dúvida, de um verdadeiro livro-monumento.
 

domingo, 6 de outubro de 2013

O RETORNO DA AURA

O RETORNO DA AURA
 
 
O que diz ele e o que dizem dele, porém, seus críticos e prefaciadores? Para Francisco José Bittencourt Araujo,  “o livro de LAC é uma chispa luminosa”. J. A. Rosa  afirma que LAC, “ao expandir os limites de sua visão do mundo, expandiu infinitamente as possibilidades de sua poesia”. Explica, por sua vez, Luis Augusto Cassas, que a expressão “retorno da aura” contrapõe-se à idéia formulada por Karl Marx de “perda da aura”, no século passado. “A visão de Marx se apoiava na convicção de que o capitalismo tenderia a destruir a idéia do sagrado, do numinoso em nós – “Tudo que é sagrado é profanado”. Contudo, conforme observa Marschall Berman, Marx divisaria as virtudes da perda do halo em nossas cabeças, com o despertar da igualdade espiritual em todos os homens. Todos teriam igualdade. Os humildes herdariam a terra. Mas o autor deste livro reivindica, sobretudo, o retorno da aura sem o ranço dualístico da “construção do homem econômico”, materialista por excelência por qualquer ângulo ideológico que se apresente, porquanto “dissociado da antiga herança espiritual e, portanto, desprovido de cosmovisão solar.”
Estes, em suma, os princípios que alicerçam a “mensagem” do livro. Mas o que transmite, em realidade, o texto do poeta?
A obra é dividida em três partes: d’A ESTRADA DOURADA, BREVIÁRIO DO AZUL e o RETORNO DA AURA. Um extenso poema iniciático, em seis movimentos, surpreende o leitor ao sair da conexão sugerida pelo autor como um requisito de segurança a ser cumprido antes da viagem através do texto, propriamente dito. Ele diz: “meu coração (em êxtase) se enche de flores/ ao descobrir/ que a quem busco é quem me busca/ e ao som de uma floresta de flautas,/ dou-lhe as boas vindas/ dançando uma dança derwiche”. Ou: “Sou um executivo da alma:/ a pasta de couro carrega/ as 78 Lâminas do Livro de Thot/ fitas de meditação confissões de iluminados/ edições da Bíblia & Alcorão/ tratados de astrologia poemas de Rumi/ roteiro de locais energéticos/ o tapete de orações/ (por isso pendo/ para o lado). “Ou, ainda: “Converso com os demônios interiores/ até torná-los amigos/ e transmutá-los em amor”.
Poemas escritos na leveza do encanto disciplinado e feliz, prendem-se eles, contudo, ao discurso teórico e devocional, cujos objetivos serão plenamente atingidos na experiência doutrinária; mas o rastreamento do poético emerge, também, vitorioso, como naquela passagem misteriosa da luta entre Jacob e o anjo, a caminho das tendas enluaradas de suas origens tribais  e na decisão final de um pacto secreto com a vida. Deste modo, o poeta exclama: “ A Poesia imita a  Vida?/ A Vida imita a Poesia? Enquanto os castos discutem a questão/ Exercito o meu Vênus em Escorpião/ retorno à alva cama da Poesia/ e escrevo com a tinta dos desesperados/ no dorso nu de todas as palavras:/ todo dia é dia/ dia de utopia”. Mestre na condução do verso e da palavra – fatos que se constatam, freqüentemente, a partir do seu livro de estréia, Luis Augusto Cassas, em o “O Retorno da Aura”, fazendo valer a eficácia do poema composto de versos irregulares, com mais diástole do que sístole, dispensa maiores tentativas de análise. Ele deve ser lido e meditado. A transparência do poeta imita o gesto ritual daqueles seus legítimos parceiros do misterium ineffabile, o merecimento da tigela. Seus Koans batem magistralmente com a assertiva de Suzuki, segundo a qual, “mais do que na filosofia o Zen, naturalmente, encontra sua maior expressão na poesia, porque esta condiz melhor com o sentimento do que com o intelecto (“Introdução ao Zen-Budismo”, C. G. Suzuki, pag.141).
Há nele, portanto, muito mais do que se pode esperar de um livro que, aparentemente, pelos símbolos, títulos e carimbos de suas chacras, se vale da poesia como instrumento de seus protestos, sátiras e afirmações. Qualquer dualidade, entretanto, já por si contrária à essência do Zen e da própria poesia, reduz-se, com  a leitura do volume, à estranha sensação de que fizemos, de fato, uma bela viagem em poucos minutos. E a unidade poética absorve, totalmente, os fragmentos da explosão inicial (ou iniciática), meditada, ali, a cada passo do homem, desde o seu primeiro nascimento físico ao toque mágico do satori, a consciência cósmica (ou poética) do encontro marcado.