quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Tosco, o antro da noite





Tosco, o antro da noite, 
em ocre ou madeira fóssil, 
aproxima-se de nós 
em máscara e mito. 

Seus olhos rasgados, 
por arte esquecida rastreiam 
cardumes de lava, 
silenciosos caminhos de chuva. 

O traço oval do conjunto 
é um pássaro fixo, 
antigo e severo. 
A boca é outro enigma 
que também nos devora. 


Jorge Tufic 


Do livro: "Fui eu", Escrituras, 1998, SP 

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ROMANCE DO CASARÃO (JORGE TUFIC)

ROMANCE DO CASARÃO (JORGE TUFIC)



ROMANCE DO CASARÃO (JORGE TUFIC)
Terá dormido o operário
cujos pés calcaram notas
de alguma valsa perdida?
E os persistentes fantasmas
que moram nas dobradiças,
quantas pragas não rogaram?
De tudo oca, no entanto,
a foto já esmaecida
de um rosto branco, insepulto.
Perfil de brumas, rosal
de sonhos que se andaram.
Mãos que ainda tocam nos fusos
e ossadas em dispersão;
estes soluços discretos
ouvidos por trás da queda
do perempto casarão.

sábado, 1 de outubro de 2016

ALMAS DAS RUAS, AVULSOS CAMINHANTES

Almas da rua, avulsos caminhantes,
marginados, solenes — quantas frases
ruminaram sem eco: aqui estão eles
diante de mim fantásticos, lilases.
Beleleco, João Anta, Marinheiro
e outros que um dia isentos projetaram
sombras, tímidas sombras fugidias,
como tenham surgido, definharam.
Juncos, cachimbos, vestes remendadas
que restara de vós, semblantes duros,
brandos e bons com as trêfegas crianças.
Que o Museu dos Anônimos conserve
nalgum lugar a imagem que ainda faço
dos náufragos da vida e seu fracasso.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

SONETO 7

SONETO VII

VII

Sítios da infância, cálidas pitangas
avermelham no cio das cadelas.
Meninos e meninas no barreiro
e a vergonha desaba das janelas.
Bancos de praça rubros amanhecem,
saltam cabaços vivos em memória
de quem chega mas parte; e logo os ventres
a seu tempo confirmam cada estória.
Sobem depois as águas das enchentes,
latifúndios rastejam sob a lama,
montarias a esmo invadem ruas.
As chuvas lavam com rigor tamanho
que após ter o dilúvio sossegado
ficamos limpos, todos, do pecado.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

CLARÃO RETIDO

CLARÃO RETIDO


CLARÃO RETIDO


Nunca será a mesma
a face desta manhã;
tampouco o enxame da água
nas calhas do inverno.
Levíssimos pontos alados,
da mosca ao abutre,
se revezam na tensa geometria
que ameniza o verão.
Deve ser este o ritmo
que amadurece o ouro
e pulveriza o diamante.


quinta-feira, 28 de julho de 2016

DESLAVRA

DESLAVRA


Passei anos e anos a olhar
para as coisas que se destroem.
Muros de pedra,
casas antigas,
alpendres estrangulados
pelo cerco do musgo e das lianas.
Mas nunca pensei que tudo isso
também fosse passando,
devagarinho,
para os donos do lugar.
Nem que o lugar
se tomasse de ruínas;
nem que as ruínas pudessem ser vistas
como um ricto necessário
da paisagem senil: nódoas apenas
do trauma silvestre.
Este som que nos guarda.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O PÂNTANO

O PÂNTANO
Por longas aves
mares e travessias,
derrama-se o pântano.
Trabalho de muitos.
Fazendo, escamando
oblívios.

terça-feira, 12 de julho de 2016

MEUS 80 ANOS

MEUS 80 ANOS


MEUS 80 ANOS



Há dias, fui surpreendido com um convite do poeta José Telles para ser homenageado no Ideal Clube de Fortaleza, tendo em vista a data de 13 de agosto, quando deveria comemorar os meus oitenta anos de idade. Pensei, então, que fosse uma simples cortesia da Sexta Literária que ocorre todas as semanas no Clube, e não a festa de onde venho, hoje, carregado de tantos presentes que me foram entregues pelos nobres amigos e escritores Lustosa da Costa, Juarez Leitão, João Soares Neto, Régis Frota e tantos outros. Tudo começa pelo Menu à Jorge Tufic,
com belíssimo prefácio de José Telles, Entrada, Guarnição, Prato principal e Sobremesa. Em seguida, ao calor do afeto de João Soares Neto, recebo exemplares do jornal O Estado, e, vejam só! com artigo de rodapé assinado pelo próprio JSN, sob o título JORGE TUFIC, OITENTANOS. E os telefonemas não param: Ministro Ubiratan Aguiar, Lucio Alcântara, Robério Braga, entre muitos outros, inclusive esta CANÇÃO PARA UM RAPAZ DE OITENTA, do grande poeta continental Francisco Carvalho! Oxalá possa, e vou tentar, fazer o envio de toda essa fortuna sentimental e literária aos meus confrades do Brasil e do Exterior.
Ressaltem-se, ainda, o pôster intitulado Vate Fenício, aliás pastor de ovelhas, de Luciano Maia, e a presença de inúmeras autoridades. Horas após este evento, o Chá do Armando, em Manaus, também se reunia com este mesmo propósito, e eu estive ali, numa viagem espiritual sem precedentes, juntando-me aos queridos Armando Andrade de Menezes, Almir Diniz, Zemaria Pinto, Tenório Teles, Banayas, Simão Pessoa, Sérgio Luiz Pereira, Luiz Bacellar, e tantos outros.
Afinal, aqui registro mais um fato inusitado que, de tempos em tempos, acontece em nossas vidas: trata-se da surpresa que nos colhe, assim de repente, e acaba por mudar os nossos hábitos, mas não para sempre. A partir dos noventa os ciclos etários ficam mais na expectativa da morte, e vão, assim, reduzindo as despesas com a festa dos parabéns.
Obrigado, amigos!

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Tosco, o antro da noite





Tosco, o antro da noite, 
em ocre ou madeira fóssil, 
aproxima-se de nós 
em máscara e mito. 

Seus olhos rasgados, 
por arte esquecida rastreiam 
cardumes de lava, 
silenciosos caminhos de chuva. 

O traço oval do conjunto 
é um pássaro fixo, 
antigo e severo. 
A boca é outro enigma 
que também nos devora. 


Jorge Tufic 


Do livro: "Fui eu", Escrituras, 1998, SP 

quinta-feira, 16 de junho de 2016

CARTAGO FUI EU






Canta um pássaro morto sobre o dia
que a muitos outros já se misturou:
algo abaixo dos ramos silencia,
treme a terra na pedra que restou.
Vem de que mares essa nostalgia
que meus ossos fenícios engessou?
De Cartago, talvez, da noite fria
transformada no pássaro que sou.
Esse canto noturno me extenua.
Vem de Cartago, sim; da negra lua
por dono o sol que abrasa, mas festeja.
Esplende a noite em látegos de urtiga.
Brinda-se à morte ao cálice da intriga.
Meu corpo, feito escombros, relampeja.



( Coral das Abelhas)

terça-feira, 14 de junho de 2016

alguns dos "sinos de papel"

alguns dos "sinos de papel"





alguns dos "sinos de papel"





Jorge Tufic








oculto no dom
de não ser ninguém
o grilo é som...



pétalas de mim
cultivo num jarro velho
que já foi jardim



em tantra medito
o saber é uma pedra
a mulher, o seu grito



ah, delicadeza
a mosca, senhora tosca
baila sobre a mesa

domingo, 8 de maio de 2016

RETRATO DE MÃE

RETRATO DE MÃE

RETRATO DE MÃE


Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios


Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.


Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?


Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.



Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados- tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?


Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos freqüente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.


Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.



Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?




Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.




Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?



Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.



Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.




Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.





Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro




Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Temos um Conservatório


Jorge Tufic


MANAUS tem a honra de hospedar um verdadeiro maestro. Que aqui veio para cumprir a espinhosa missão de, arrostando com as maiores dificuldades, fundar um Conservatório de Música. Maestro Nivaldo é um desses espíritos que, coroados pelo próprio destino de realizar uma obra grandiosa, com muito de loucos, naturalmente, nada há que lhes dificulte o mister.

E assim foi que recebemos, dias passados, a notícia alvissareira: fundara-se o “Instituto Musical Santa Cecília”. Estão, por isso, de parabéns todos aqueles que se dedicam ou admiram a divina arte. Pois o Instituto, com suas portas abertas, recebe e aprimora talentos, Maestro Nivaldo cujos conhecimentos ainda mais se aprofundam, mercê de uma cultura musical bem formada, através de estudos e ensaios consecutivos, não se ponha em dúvida a sua capacidade de trabalho, que reconhecemos altamente profícuo.
Nivaldo Santiago, em out. 2010
Pelo menos foi essa a impressão que tivemos, levados que fomos a conhecer o artista. A palestra que mantivemos, numa atmosfera agradável e serena, o que dela lucramos, a lição de entusiasmo e perseverança que aprendemos, tudo isto ainda perdura, indelével, em nossa memória.

A brevidade do espaço, porém, impede um possível extravasamento da nossa parte. Damos apenas os parabéns desta coluna, ao maestro e seus auxiliares.

Lá encontrareis também a senhora Neuza Ferreira, que vos há de ser útil e atenciosa. Nesta terra em que poucos são os que se voltam para as coisas da Beleza, meu caro Nivaldo, é com o mais vivo interesse que as jovens vocações musicais do Amazonas recebem a boa nova. Porque em verdade era esta a sua aspiração máxima. Era este o seu desejo. Que se fundasse um Conservatório, e o mesmo estivesse ao alcance de suas mãos.


Estão-lhes, portanto, abertos os horizontes da música. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

As várias mortes de Makunaima




As várias mortes de Makunaima 


Makunaima sacode o corpo de mato. 

o chão se levanta e caminha. 
Fazer é seu verbo de frutas alegres, 
e por onde ele anda, um ramo de susto 
cai desprotegido 
ao solo de um gorjeio. 
Aqui, uma cobra balança seu cacho de veneno; 
ali, Makunaima já tomou sua pele 
e veste, com ela, os macacos-da-noite. 
Makunaima é o princípio do invento. 
Para ser anzol, ele começa de peixe, 
sabe esperar com boca de piranha 

o lance do pescador. 
Para ver-se fazendo o que fazem 
com a racha das mulheres, 
ele fica menino pidão, mas foge pro mato 
com a embira do irmão. 



o verde é um silêncio de festa. 
Makunaima despeja seu gozo de febre 
e, lá no alto, 
aparece a constelação do Mutum. 
ele fabrica o céu 
com os pés de terra. 
suas mortes são várias. 
Porque mesmo no bucho de uma fera, 
ou dividido entre braços, pernas, dedos, 
tronco, ele comanda o suor do resgate, 
a surpresa e o vazio 
daqueles que o trazem de volta. 
não tem sacanagem de bruxo 
que lhe passe a distância. 
Makunaima tece a hipnose dos grilos. 
Com essa teia de sons, ele entrama 

o tempo no espaço: 
arruma as coisas de novo 
se deita, afinal, em seu leito de palha. 
enquanto dorme, fricciona os artelhos 
e provoca um incêndio, 
somente, só, para rir dos mosquitos. 




sexta-feira, 15 de abril de 2016

O SONETO DE DEUS



O SONETO DE DEUS
                   

Segundo Jayme Ovalle, o passarinho
é o soneto de Deus; ele gorjeia
ao vir do sol, mas tendo lua cheia
pelos ares se emblema, é pergaminho.
Estrofes saltam desse leve arminho,
letras são giros, códigos de areia;
do pássaro e do canto a luz semeia
versos e rimas, bem devagarinho.
Amoroso dos inhos, Jayme Ovalle
tinha por tudo afeto e cortesia:
um santo sujo que por muitos vale.
Ave ou soneto, quando presos voam.
Libertos, não têm jeito de poesia,
quanto menos adornam, menos soam.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

ZEFIRO 1

ZEFIRO 1


SEBASTIÃO NORÕES

SEBASTIÃO NORÕES

Sebastião Norões
Bem próximo de completar 60 anos de seu lançamento, o livro de poesias do falecido Sebastião Norões –Poesia Frequentemente – tem a primazia de ter sido o primeiro livro editado por um membro do Clube da Madrugada.

Para marcar tão faustoso acontecimento na cidade de Manaus, o jornalista e poeta Jorge Tufic, saudando o colega, publicou em A Crítica (25 abril 1956) o artigo aqui postado.

POESIA FREQUENTEMENTE

Jorge Tufic

Acontecimento invulgar na história literária do Amazonas, podemos dizer, foi a estreia, em livro, no dia 23 deste, do poeta Sebastião Norões. E dizemos isso porque o próprio poeta, em pessoa, esteve presente na ocasião em que Poesia Frequentemente estava sendo exposta à venda na Livraria Escolar, e ele mesmo, Norões, encarregara-se de brindar aos amigos e inúmeros admiradores com exemplares autografados.

Com isso, pois, com essa atitude, corajosa e espontânea, assume o poeta uma posição definida em face das letras amazonenses. Vem ele acompanhada de uma vasta experiência no dia-a-dia da Vida, nesse contato intelectual e emotivo com as coisas que o circundam, viagens, leituras, relações humanas etc.

A poesia de Sebastiao Norões não se apresenta revestida de nenhum aparato ou roupagens tecnicistas a que se deixam, comumente, subordinar o pedantismo poético dos “noviços” e deliberado exibicionismo dos que somente através do floreio verbal são capazes de produzir alguma coisa.

Não. Ela nasce despreocupada e feliz, lembrando nesse particular, a poesia de um Manuel Bandeira (leiam-se Santuário Mar Despovoado) ou a de um Ledo Ivo dos últimos poemas.

Poesia emoção. Poesia sentimento... Essa poesia cujos filamentos de sonho, amor, ternura é uma profunda filosofia que nos mantém constantemente em ligação com o “fundo das coisas”; essa poesia, país de origem de todo verdadeiro bardo, na qual nos integramos num pleno e total relaxamento das cordas emotivas de nosso ser...

Não sendo este, porém, lugar apropriado, em que possamos entrar na substância do livro, com um certo e natural espírito de crítica o que faremos na próxima edição deMADRUGADA, o que nos resta fazer, portanto, é parabenizar o companheiro Norões pelo trabalho, paidéguamente heroico, o qual de publicar um livro em Manaus, e que vem de se coroar, agora, de êxito completo.

Que sirva isto de lição para nós outros. Que sirva isso de lição para aqueles que não vêm em nosso restrito meio intelectual, possibilidade, de qualquer natureza, que recompensem esforço e dinheiro empregados. Porque temos esperanças que em breves dias o Amazonas terá, também, venha isso do céu ou da boa vontade dos homens de espírito, a sua Casa Editora. É quando, então, poderemos pensar em recompensas literárias...

terça-feira, 5 de abril de 2016

sexta-feira, 18 de março de 2016

Guimarães e Tufic

Guimarães e Tufic



O ilustre poeta e ensaísta Jorge Tufic, como membro do Clube da Madrugada, recepcionou e foi hostess do escritor Guimarães Rosa quando este esteve pela primeira e única vez em Manaus, em 15 de janeiro de 1967. É sobre esse encontro, ocorrido há 42 anos, que Tufic nos conta um pouco.



Revista Literária – O que Guimarães Rosa veio fazer em Manaus naquele ano de 1967?

Jorge Tufic: Guimarães Rosa esteve em Manaus de passagem para uma reunião diplomática, se não me engano, em Bogotá, na Colômbia. Questões lindeiras.



RL – De quais atividades, culturais ou não, ele participou na cidade?

JT: Não houve tempo para isso. GR nos dera a impressão de que estava querendo aproveitar os dois dias que passaria em Manaus, a) conhecendo o Clube da Madrugada e b) ultimando questões diplomáticas do Itamarati (ao mesmo tempo em que se empenhava em experimentar um suco de taperebá). Tentei ajudá-lo nesse último desejo, mas, lamentavelmente, ainda não era época da fruta.



RL – A vinda do escritor famoso mexeu com a comunidade literária de Manaus? Cite nomes de quem participou da estada dele na cidade.

JT: De fato, mexeu com a turma do Clube. O restante dos intelectuais e escritores da terra, visceralmente apegados à tradição acadêmica, ficara à distância. Tanto que não houve imprensa nem fotógrafo no jantar que lhe fora oferecido pelo Clube da Madrugada, ali na Peixaria do Balaio, ou do velho Francisco, ao lado fluvial da Igreja dos Educandos. O Clube em peso compareceu ao ágape: Aluisio Sampaio, Ernesto Pinho Filho, Afrânio Castro, Saul Benchimol, Francisco Batista, Sebastião Norões, Farias de Carvalho, todos, enfim, com algumas exceções. Vale informar que ele, o grande Guimarães Rosa, ficou na berlinda diante de seus mais aferrados leitores, como Ernesto Pinho e Aluisio Sampaio, dando respostas breves, contudo substanciais quanto às personagens realmente polêmicas de seus romances, a exemplo de Grande Sertão Veredas e Sagarana. Outro fato histórico nessa sua rápida passagem por Manaus: dali a uma semana o nosso ilustre visitante tomaria posse na Academia Brasileira de Letras. Logo a seguir, se “encantaria”.



RL – Que impressões, em você, ficaram dele?
JT: Impressões indefiníveis só comparáveis a um prêmio que eu tivesse recebido, ainda sem o merecer. GR era um ser todo afeto, carinho verbal, solicitude, companheirismo nas andanças por onde quer que o levássemos, talvez para demonstrar com isso a plenitude da criatura, antes do criador. Quanta saudade ainda hoje sinto dele, quase uma falta, apesar das poucas horas de nosso contato.



João Guimarães Rosa, mais conhecido como Guimarães Rosa, nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908. Foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, bem como médico e diplomata.

Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais. Tudo isso, somado a sua erudição, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.

O escritor morreu de infarto, dez meses depois de ter vindo a Manaus, em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro.

Guimarães Rosa em Manaus

Jorge Tufic, jorgetufic@hotmail.com



Considero imperdoável a omissão de um fotógrafo no jantar, a céu aberto, que o Clube da Madrugada ofereceu ao romancista João Guimarães Rosa, em sua única visita a Manaus, ocorrida a 15 de janeiro de 1967. Vinha o escritor em missão diplomática, mas a primeira coisa lembrada por ele não foram os pontos turísticos nem os homens de letras. Foi um refresco de taperebá. Pronunciava o nome da fruta com a mesma ênfase, o mesmo carinho ácido, a mesma teimosia infantil com que dava ao buriti de seu lugar de nascimento o feitio acabado de uma personagem de suas novelas. Este episódio tipicamente roseano é aludido pelo ensaísta Ítalo Gurgel, no estudo admirável que publica sobre “João: Um Vaqueiro de Cartola”: “As alusões ao buriti tornam-se, às vezes, quase obsessivas, como neste trecho do conto “Cara-de-Bronze”: “... e água, e alegre relva arrozã, só nos transvales, cada qual, se refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os buritizais, os buritis bebentes”. E Carlos Drumond de Andrade, mineiro como o nosso ex-diplomata, indaga num poema dedicado ao conterrâneo: “Tinha pastos, buritis plantados/ no apartamento?/ no peito?”.



(Trecho de uma crônica de Jorge Tufic, no seu livro “Tio José”, sobre a primeira e única vinda de Guimarães Rosa a Manaus, há 42 anos). 

segunda-feira, 7 de março de 2016

O ONZE DE SETEMBRO




O ONZE DE SETEMBRO

                   para Jorge Tannuri

Praça Paris. Soneto V. A vida
se corria por conta: brasileira
com a vontade de Deus, nossa bandeira
feita de amor para não ser vencida.
Getúlio volta. O cárcere intimida,
mas se tem carnaval, tem brincadeira;
e o continente ibero é uma ladeira
que leva para o caos numa descida.
Vagueio, assim, de pássaro a vertente,
em bronze me refundo, e das estátuas
faço brinquedos como antigamente.
Livre das bombas que despejam ódio,
percorro o meu Brasil de coisas fátuas,
sem ligar para o trágico episódio.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O DÉCIMO SEGUNDO


O DÉCIMO SEGUNDO

Taças finas quebrei neste duelo.
Ocupo as mãos solícitas e paro
a cada girassol que em tempo raro
me faça ver-me um outro, paralelo.
Farfalha a rosa, se desprende o elo,
mas nada me contenta: o brinde claro
e as nódoas de meu dia onde preparo
um outro, o fazem grande, o fazem belo.
Não fui além de um reles assovio,
ecos doídos da quimera infância,
malvas de solidão pranteando o rio.
Taças finas quebrei na epifania.
Guardanapos, ardei na inconsistência,
palavras, vade em busca da poesia.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

NATAL 2008



NATAL 2008

Natal me inspira estrelas e reis magos,
Natal revolve os séculos de usura,
Natal me faz pensar nessa loucura
de esperar pelos bens que foram pagos.
Natal de paz ou da canção dos lagos,
Natal de mim que em trevas se procura,
Natal de Deus na fé, quando obscura
ou quando se ilumina em breves tragos.
Natal de amor à mesa que nos prende
aos laços afetivos e ao consolo
de ter alguém que a mesma luz acende.
Natal da iniciação: que a cruz suporte
o corpo deste Rei, sangue e tijolo
do soneto que vence a própria morte.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

IMPROVISO AO 50º DA CARAVANA


IMPROVISO AO 50º DA CARAVANA

Éramos quatro monges na primeira,
cinco poetas depois, numa segunda
Caravana que os longes aprofunda,
tendo as nuvens e o sol por cabeleira.
Tivemos a galáxia por esteira,
bons ares, boa mesa e a mais fecunda
saga de poemas, praça e quebra-bunda
quando para repouso da canseira.
Nestes tercetos louve-se a irmandade
de todos nós, amigos sobretudo,
companheiros por toda a eternidade.
São eles o Alencar, Antísthenes, o Guima,
Farias e este eu que assina tudo
desde que for saudade e tenha rima.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

SONETO PARA ADELAIDE PETTERS LESSA


SONETO PARA ADELAIDE PETTERS LESSA

Quem me dera, Adelaide, ter as asas
destes anjos que ilustram  ¨Vida e Morte¨,
só para ver-te, ó Chácara dos Salmos,
ó Chácara do Encanto, reflorir-se
no louvor às tuas frases, passo a passo
despertando memórias e uni/versos.
Livro feito das vidas que te deram,
dos jardins que incandescem de teus dedos
e a saga vesperal dos equinócios.
Vou lendo, sim, tuas crônicas bonitas,
teus ensaios de Amor; poemas também,
prensadas rosas, fulcros de silêncio.
Vou lendo enquanto penso no que pensa
de mim pensando, a Cósmica Presença.

domingo, 10 de janeiro de 2016

TUFIC NELES


TUFIC NELES!
Benayas Inácio Pereira
O poeta Jorge Tufic, com destaque para os bigodes, mais negros que as asas da graúna.
Foto de Mauri Marques.
'
Nas paragens da história o passado
é de guerras, pesar e alegria,
é vitória pousando suas asas
sobre o verde da paz que nos guia.

Assim foi que nos tempos escuros
da conquista apoiada ao canhão
novos povos plantaram o seu berço,
homens livres, na planta do chão.

O trecho acima pertence a um hino que vocês devem conhecer de sobejo. Depois eu falo da importância dele na crônica que se segue.

Imaginem a cena seguinte: um senhor, todo circunspecto, diante de dois vigorosos policiais, a entoar com sua voz um tanto débil, anêmica e quase raquítica, a música dos versos acima.
Voltando meia hora no tempo até chegar ao fato, não há como não achar o acontecimento hilário. Em questão de segundos, o personagem desta crônica viu-se envolvido em uma situação inusitada. Chegando de Fortaleza dirigiu-se para um hotel onde pretendia descansar o “esqueleto”. E foi aí que tudo aconteceu...

O encarregado de recepcioná-lo na portaria estranhou o fato deste senhor se encontrar naquele momento sem nenhum documento ou dinheiro, uma vez que eles se encontravam dentro das malas. Apesar da identificação verbal, o “conceituado” chefe da recepção não aceitou o argumento apresentados pelo ilustre visitante. Nos minutos seguintes, o clima foi ficando tenso e, depois de alguns “elogios mútuos” e com a plena conivência do futuro hóspede, a polícia foi acionada. Com a chegada dos policiais as coisas foram se assentando, pois um deles teve uma “vaga” lembrança de quem se tratava. O diálogo que se seguiu foi mais ou menos assim:
– Qual é o seu nome?

– Jorge Tufic.
– Jorge Tufic... Jorge Tufic... Parece que já ouvi falar do senhor. Deixe-me ver... Por acaso, não foi o senhor que criou a letra do Hino do Amazonas, com a música feita pelo compositor Claudio Santoro?
'
– Eu mesmo.

– Então, para que tudo seja esclarecido e que o fato seja “esquecido”, o senhor poderia cantar um pedaço da música?
Tufic deu uma cofiada nos seus bem cuidados e negros bigodes e falou:

– Com todo o prazer.
E com aquela voz maviosa de “taquara rachada”, o visitante comprovou finalmente ser o grande Jorge Tufic.

Agora eu sei que todos os que estão lendo esta matéria já sabem que a letra da música que abre este trabalho é a primeira parte do Hino do Amazonas. Quem se interessar pelo restante da letra é procurar no google.
Pensando cá com os meus botões, cheguei às seguintes conclusões: em primeiro lugar, que o saber não ocupa espaço e é sempre útil em situações como esta. Em segundo lugar, aqui vai um conselhinho a todos que ainda não viraram de página. Se quiserem agir e ter o mesmo sucesso do Tufic, é muito fácil: para isso basta ser jornalista, ensaísta, cronista, poeta (com vários prêmios, inclusive o de “Poeta do Ano”, agraciado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas no ano de 1976), ser sócio-fundador da Academia Internacional Pré-Andina de Letras, ser membro efetivo do Clube da Madrugada, ser imortal pela Academia Amazonense de Letras, escrever “mil” livros, ser premiado em várias partes do Brasil, ter trabalhado nos antigos jornais “O Jornal” e “Jornal da Cultura”, além de colaborar em diversos suplementos literários por este Brasil afora, e ser unanimidade entre todos os que o conhecem. Deixo claro que omiti propositadamente muitos outros atributos relacionados ao Jorge.

Finalmente, e conforme eu ia dizendo, quem quiser se livrar de situações constrangedoras como a que passou o Tufic, é só imitá-lo. Da minha parte, eu prometo começar amanhã cedinho. Espero daqui a 60 anos poder dizer com orgulho: eu sou imitador do Jorge Tufic, aquele que só faz bem, aquele que não tem contraindicação. E quando acontecer de eu topar com algum recepcionista mal preparado para lidar com o público, eu vou bradar: Tufic pra você, ó cara!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

DOS PESADELOS


DOS PESADELOS

Não sei dizer ao menos onde estava,
nem de ter sido aquele que dormia,
nem que os lugares deste sonho havia
na história de algum outro que sonhava.
Sei apenas que o tempo me guiava,
mas o tempo eu não tinha como guia;
sei apenas que tudo o que queria
de minhas mãos tão logo se ausentava.
Ruas, casas, pessoas, brevidades,
sombras, paredes, torvelinho e morte,
nas cartas de um baralho eram cidades.
Que aviso podem dar os pesadelos?
Sonhos bons nunca tive, nem a sorte
de combater os maus antes de havê-los.