quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Os momentos supremos

Os momentos supremos
Jorge Tufic
Nós somos definitivamente autores, consagrados ou não, de uma única obra. Não era sem razão, portanto, que os nossos bisonhos predecessores achavam que Aníbal Teófilo, autor de A Cegonha, já podia morrer depois deste soneto. Fato semelhante acontecera a Júlio Salusse, autor de um outro artefato poético do gênero, intitulado Os Cisnes. E o que seria A Comédia Humana, de Balzac, senão uma grande obra reunindo, numa única saga romanesca, toda a produção literária do famoso estilista de Chat-qui-pelote?

Rebrota o comentário a propósito, inclusive, daqueles outros, ficcionistas ou não, a quem faltara espaço e tempo necessários para a conclusão de seu projeto referente à literatura, nenhum deles tendo deixado uma prova, sequer, do talento que demonstravam como teóricos da arte que daria a um Júlio Dantas a versatilidade bem própria de sua época, nada ficando o cronista a dever ao fino teatrólogo de A Ceia dos Cardeais.

O Clube da Madrugada [CM], em Manaus, foi, a nosso ver, a mais eclética forja cultural inspirada pelas mais variadas tendências, com o maior número possível de intelectuais e poetas capazes de se estrear na literatura, como poucos o fizeram. Mas o CM não era só de literatura. Nas artes plásticas tivemos um Afrânio Castro, também poeta, falecido prematuramente antes de publicado. Hanneman Bacelar, muito mais novo que Afrânio, teria a má sorte de vergar ao peso cósmico dos "trópicos tristes", cometendo suicídio. A galáxia madrugada, enfraquecida agora pela dispersão voluntária dos seus componentes, vai-se deste modo resumir-se naqueles raros que ainda restam de um encontro "histórico" de que jamais se tivera notícia.

Algumas outras personagens desse tempo, naquela obscura capital amazonense dos anos 50, teriam ficado também na memória de seus contemporâneos, não exatamente pela autoria de um romance, de
um conto, a exemplo de A Porta-Estandarte, de Aníbal Machado, ou de um soneto-estalo, como podemos ainda mencionar Augusto dos Anjos, com Vandalismo ou Raul de Leoni, com Eugenia, mas, a rigor, no que elas foram dentro do real desempenho cotidiano de suas próprias vidas.

Temos, assim, as figuras lendárias de José Trindade, um dos fundadores do Clube, e a do filósofo Malaquias, de quem já tratamos numa crônica do Tio José (1975). Deixaram, quanto muito, a fama de seus atos públicos notoriamente rebeldes, e frases como esta do pensador da Praça do Ginásio: a senectude é como o sol do entardecer: ilumina, mas não aquece. Ou esta: não me façam vomitar dizendo "meus sonhos". Ninguém é proprietário de sonhos.
O Dr. José Trindade foi mais longe, materializando no ato físico a ideia do fantástico. Na qualidade de auditor de guerra da Polícia Militar do Estado, envergara ele, num certo princípio de noite, a luxuosa farda nobre da Corporação, com espada e tudo, indo sentar-se a uma das mesas do Bar Moderno, ao lado do Cine Polyteama. E ali, erguendo-se apenas para ir ao banheiro, tomou o porre federal mais célebre da província.

Malaquias, não tendo residência fixa, acabou por escolher o toldo de uma lancha-motor, no qual passara a dormir. Ninguém mais soube dele. José Trindade, destituído do cargo de auditor, foi tentar a sorte em Vitória do Espírito Santo, e, quanto a nós, nunca mais tivemos notícias do amigo.

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