sábado, 29 de agosto de 2015

ODE À AMÉRICA DO SUL



ODE À AMÉRICA DO SUL

JORGE TUFIC


Que o boné de Pablo Neruda 
e a lágrima fluvial de Santos Chocano, 
e o grito de Allende 
(enquanto os fuzis do terror e do medo 
repetiam o massacre da liberdade), 
venham flocar este chão consagrado 
por tantos modos e cantos diferentes, 
oh América do Sul. 
Os cravos de tuas noites mergulham 
na plumagem das Cordilheiras, 
e os ramos da paz que te ilumina 
e o relincho das pedras que desenham 
bisontes e tempestades, 
pousam como fósseis alados 
em tuas crinas de esmeralda. 
De Santa Marta à Terra do Fogo 
tuas espigas rebentam colares de jade 
e cintilam nas máscaras de ouro 
roubadas aos templos do sol 
e às pirâmides da lua. 
E ao sopro nativo da flauta 
exilada entre colméias, 
um tesouro de vasos, borboletas 
e animais de uma fauna imaginária, 
sacode o pó da argila e do granito 
em suaves movimentos. 
Atlantes e Laoccontes 
vigiam tuas muralhas indormidas, 
mas deixam livres as fronteiras do sonho. 



II 

Com a espada de Bolívar 
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento; 
com as vestes de Antonio Conselheiro 
e a nervura semântica de Euclides da Cunha; 
com a suavidade de um verso de Lugones 
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto; 
com os arcos e flechas dos incas e aimarás 
e a clepsidra das ruínas de Zaculén; 
com as cinzas do uirapuru do Amazonas 
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua, 
eu te louvo, América do Sul, 
agora que revejo tua cerâmica do Marajó, 
tuas matas e teus rios, 
tuas cidades e tuas pontes, 
teus barcos possantes, tuas fábricas 
e tuas manchetes; e ouço a voz 
dos teus regatos, as canções de teus povos 
e vejo, deslumbrado, 
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis 
te enlaça, constantemente, 
do Atlântico semeado de praias 
ao Pacífico de pássaros 
e fontes azuladas. 


III 


Quantos martírios e sucessos 
pontilham tuas manchas ocres 
em cada solo ferido ou conquistado! 
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança 
de teus ancestrais caribenhos? 
Do milho cor de cereja dos Aruakes? 
Dos artefatos barrancoides dos Walpés? 
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio 
e a toada dos riachos verdejando os caminhos? 
Da antigüidade seletiva dos tucanos, 
muras e cambebas? 
Lembras-te, por acaso, 
da bola de sernambi que estes últimos 
te deram, ainda em pleno século XVII, 
e do jogo que eles jogavam 
num campo sem traves e sem torcidas? 


Numa rede de dormir 
os brancos degustam teu massacre 
mas olvidam o teu legado, 
esse imenso legado que sucedera ao jugo, 
impiedoso e cruel, 
daqueles teus primeiros habitantes, 
plantadores de sombras, 
raízes da terra. 
Guitarras, malária, devastação e confisco, 
eles trouxeram de tudo. 
Mas tomam caxiri no delicado suporte 
de uma cuia rústica ou pitinga; 
alimentam-se de farinha de mandioca 
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça 
para não ir ao trabalho; 
e têm muito de si na mestiça que se vende 
por las calles y los pueblos; 
e têm muito de si, também, 
nessa fusão de sons e melodias 
que fizeram do nheengatu das águas pretas 
a língua franca dos mitos 
e do lendário esquecido. 


IV 

Imitas um coração populoso e tranqüilo. 
Tens a forma de harpa ou alaúde 
com doze cordas festivas. 
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático 
voltado para si mesmo. 
Desigualdades e semelhanças predominam 
assim, de um lado e de outro, 
entre vales, planícies e altiplanos. 
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo, 
que há fome na Bolívia, 
que há tango, festas e greves na Argentina, 
que o Chile exporta minérios e vinhos, 
que o Brasil é o maior destes países, 
que o Equador tem reservas de prata e ouro, 
que o Peru não se expande, 
que o Paraguai continua bloqueado 
sem saídas para o mar. 
Em teu próprio nome, oh América do Sul, 
e em nome da história que te deram, 
hás de entender, no entanto, 
que ninguém pode ser feliz 
quando está cercado pela miséria, 
seja a miséria do egoísmo, 
seja a miséria das guerras; 
que ninguém pode ter paz 
quando há golpes e matanças 
do outro lado de suas fronteiras. 
Hás de saber entrementes que, 
por cima da fala dos caudilhos, 
paira a linguagem fluida ou tormentosa 
daqueles que te celebram; 
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas 
ou se debruçam nas torres de vidro; 
ou daqueles, ainda, que se confundem 
com os traços das telas que azedam em teus sótãos 
e em tuas águas-furtadas. 
Estes homens de letras ou picassos anônimos 
entregues à corrosão que desfigura 
e ao abandono que mata. 




Quantos equívocos te cercam 
antes e após a descoberta, por ti, 
do torno do oleiro, da roda e do arado? 
Que simpáticas figuras transoceânicas 
poderiam ter-te doado, 
oh América do Sul, 
carrinhos votivos de cerâmica, 
travesseiros de barro 
e selos em forma de bujarronas? 
E as tuas escritas? 
Terão sido trazidas por quem 
- fenícios, gregos, romanos – 
se colocam na origem de teus índios? 
Fascina acreditar, em vez disso, 
que provenhas, isto sim, 
de alguma centelha que se fez Avalon, 
Atlântida ou Atlas, 
segundo escrevem as aves migratórias 
quando te buscam nos pélagos, 
e adivinham teus ecos profundos 
nas cavidades do espanto. 




VI 

A cidade perdida dos incas 
são tantas cidades quanto as portadas 
que levam à presença do sol; 
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos, 
e dali às cavernas talhadas a ouro, 
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram 
ao peso dos colossos que protegem a montanha 
das patas ecoantes de Espanha. 

Em cada milímetro quadrado 
das alturas que saltaram de mares incalculáveis, 
Amarus confundem a inteligência 
dos homens de Pizarro. 
Labirintos ficaram, boiunas coleiam 
na ouriversaria das auroras. 
E ninguém poderá decifrá-las. 

Para Iucay se evadira Manco. 
E uma das primeiras guerrilhas da história 
consegue fazer das trilhas enganosas 
o desgastante baralho das Cordilheiras. 
A imagem de raios solares 
com mais de cem toneladas, 
em que leito de Vilcabamba 
terá se consumido em miríades de estrelas? 

Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa. 
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca. 
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados. 
Tupac Amaru expira em Cuzco 
levando no olhar a música do império. 



VII 

Grande é o solar do tempo nesta aldeia 
onde um galope nunca se interrompe. 
Este chão de Pizarro em Guamachucho 
de lavas contraídas pelo medo. 
Escarpas traçam rápidas figuras, 
pousam brilhos de séculos vencidos. 
E um velho terremoto, agora fóssil, 
arroja um tigre do alto de um penedo. 
A noite é um vinho branco. Mas o sangue 
que transborda do lago, não descansa: 
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição, 
estes três assassinos de Atahualpa, 
daquele em cujo peito o sol dos incas 
despedaça o seu último clarão. 


VIII 

Nos porões soterrados debaixo 
das cidades, deuses animais de terracota 
aparecem ao lado da serpente, 
e ao lado da serpente 
paradigmas antropomórficos. 
Foi assim que teus nativos, 
pescadores de Valdívia, 
dominaram os ornatos circulares: 
perfis abstratos, 
bizarras entidades híbridas 
sobressaem nos relevos celestes; 
e ao lado destes, ardósias cônicas, 
traçados olmecas. 

Um portal contendo símbolos xamãs 
e sarcófagos dourados, 
torna visível o silêncio dos mortos 
na estática de teus músculos altivos 
prateados de neve. 

A Quinta Era, afirmam ali, 
pertence a Tonatiú, o deus Sol, 
habitante dos leques das palmeiras; 
e há de ser confirmada por graves, 
extensos abalos. 
Pumas alertam para as ameaças que sobem 
das Ilhas Arqueanas. 



IX (a lição dos rios) 



Tentando lavar este sangue 
inutilmente derramado, 
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota; 
ele vai mudando de nomes 
até unir-se às águas revoltas 
do lendário Urubamba. 
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac, 
quando formam, juntos, 
o Rio Amazonas. 

Muito tarde, porém. 
Um grande exemplo despercebido. 

Esses rumores até hoje incessantes, 
este chamado das vertentes comuns, 
somente os poetas o sabem distinguir 
na diversidade que amalgama 
e na dor que ensina. 


X (balada enquanto seja) 

Ao contrário de outras águas, 
nosso rio é movimento, 
serpe andina em debandada 
vai ele em busca do mar; 
desde que nasce de um fio 
por ondas rola barrento, 
vem à tona e vira vento, 
é estirão que sai do nada. 

Rio de lendas ficou, 
matreiro, curvo e norato, 
seu berço de concha e lua, 
com três nomes de batismo, 
três caminhos sete bocas 
por onde bebe a tormenta; 
mas tem mágicas, puçangas, 
e a cada estória, se aumenta. 

Pântano cósmico, diz-se 
por quem o lê pelo avesso, 
por quem ouve a queixa inata, 
por quem adentra seus peixes, 
por quem taboca faz beiço 
e sopra o fogo da enchente, 
pois este rio é começo 
da febre que torra a gente. 

Ao contrário de outras águas, 
o Amazonas, como um todo, 
pode tornar a seu fio 
como náufrago do lodo. 




XI (Thiago de Mello) 

Por caminhos de San Tiago, 
volta o poeta das angras 
a quem doara o seu canto 
pela causa dos humildes. 

Levara o corpo sadio, 
como quem leva a esperança 
marcada a fogo no brigue 
que, novo, se lança ao mar. 

Os Estatutos do Homem 
riscando o teto da noite 
com seus mastros decididos, 
quantos vilões não cegaram! 

Mas, igual à copa náutica 
das sapopemas gigantes, 
que pelas vias de Tiago 
desprendem flocos de sonho, 

retorna, depois da luta 
para o feno das raízes: 
a copa – rica de estrelas, 
o tronco – de cicatrizes. 





XII (a Pedra do Reino) 


Como então esquecer, 
neste painel de teus milagres, 
oh América do Sul, 
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna, 
a poesia e a prosa que se deixam fundir 
em seu romance d´A Pedra do Reino? 
Assim também, igualmente, 
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior, 
a cerâmica de Côca, 
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia 
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios? 
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses 
em busca das cacimbas, 
do aboio crepuscular, 
do alpendre de seus avós e da espada 
de algum rei com sua túnica de abelhas? 
Pois é das artes desse Ariano vulcânico 
e de seus valerosos cavaleiros, 
as surpreendentes iluminogravuras, 
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio 
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa, 
não são réplicas inúteis. 




XIII (entrefala e louvação) 


Deixemos, portanto, as amoras, 
o etéreo veludo celeste, o filme vazio, 
a novela das oito 
e as ruas por onde não passaram 
bandeiras despedaçadas por um grito maior 
que a esperança dos mortos. 

Deixemos de lado as violetas 
que ardem nos versos prematuros 
daqueles que nunca percebem o gemido 
das salamandras 
nem a fuga dos girassóis alucinados. 

Deixemos de lado o jarro de Matisse, 
a gôndola que imita o cisne de Isolda, 
as olheiras roxas das janelas caiadas 
pelo terror dos massacres. 

Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos, 
provara do vinho amassado com a terra, 
o suor e as lágrimas de quantos, 
no Chile, na Espanha e na Turquia, 
conseguiram, em seus momentos finais, 
erguer a face do entulho e da lama, 
cuspir na bota dos tiranos. 

Louvemos Neruda pelos gestos perenes 
de salvar um carneiro da morte, 
uma rosa da escuridão e muitos, 
centenas de amigos, 
do cárcere infecto e da bofetada humilhante. 

Saudemos Neruda 
com uma taça de beija-flores. 


XIV (sursum corda habemus) 


O giro vesperal das andorinhas 
sobrevoa os transcursos das cordilheiras; 
paira, depois, sobre os telhados gastos 
pelo mofo dos armários vazios 
e o esquecimento das chuvas. 
Elas tomam as sereias de tuas falanges, 
dedilham a ira dos terremotos. 
Mais do que nunca teu coração vacila, 
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união 
entre o Ocidente dos filósofos 
e a pátria dos cardos ensolarados. 
Terá sido esta a pausa dos monumentos, 
o tremor que se estabiliza nos ossos, 
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água 
no enterro dos navios. 

Uma sombra te acompanha desde que nasceste, 
orográfico e triste, 
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro 
com os andrajos da mulher de Bolívar, 
a insepulta de Paita. 
Teus versos são lições de uma geografia da alma, 
rochedos floridos de ternura. 
Soltos na madrugada, 
eles rastreiam fragrâncias, matizes, 
números e signos gravados na espuma 
e no cansaço das festas. 
São metáforas da hora incalculável, 
a incrível marca do passageiro. 

Depois das estradas, Neruda, 
o amor te concedera uma pausa, 
um silêncio neutro que irrompe dos tanques 
cobertos pelo trigo; 
uma pausa que pergunta a cada coisa 
se tem algo mais. E a cada palavra 
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico, 
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos 
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros. 


Teus cantos são cantarias de luar, 
pólens de ouro e neblina. 
Oh América do Sul 


(Publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008).

Nenhum comentário:

Postar um comentário