sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Apresentação do livro O Sétimo Dia, de Jorge Tufic



Apresentação do livro O Sétimo Dia, de Jorge Tufic

Zemaria Pinto*


Foi há exatos 25 anos que travei, por intermédio de jovens amigos comuns, contato pessoal com o poeta Jorge Tufic, a quem aprendera a admirar a distância. Uma qualidade desconhecida foi logo realçada naqueles encontros iniciais: a generosidade do poeta, capaz de dedicar horas de seu raro tempo para nos passar noções de poética – versificação, metro, ritmo. Falar, nem sempre bem, das vanguardas ainda em voga: a poesia concreta, a poesia-práxis, o poema-processo, a poesia de muro. Sobre os poetas que, parte do cenário mundial, começavam a ser conhecidos e estudados no Brasil, e mereciam nossa atenção, como Eliot, Pound, Cummings. A sua paixão pelo soneto, da qual eu não compartilhava, inicialmente. Tudo isso entremeado por deliciosos “causos”, envolvendo os amigos do Clube da Madrugada. O dedicado professor seria contemplado, 23 anos mais tarde, com o Prêmio Nacional de Ensaio, da Academia Mineira de Letras, para o seu Curso de Arte Poética. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso.” O professor Tufic não o era por acaso...
“Poeta não se define: é um ser à parte.” A análise de uma obra literária de qualidade dispensa a teoria literária e todos os seus (pre)conceitos, buscando engendrar uma nova teoria, específica e apropriada unicamente àquela obra sobre a qual nos debruçamos. Um novo livro de Jorge Tufic é uma oportunidade ímpar para deixarmos de lado tudo aquilo que aprendemos e iniciarmos um novo aprendizado do que é a poesia lírica neste início do século XXI.
Estreando em livro em 1956, com Varanda de Pássaros, Jorge Tufic construiu, nestes quase 50 anos, uma poesia rigorosa e reflexiva, mas sobretudo inquieta: Das pedras que lavro, diz ele no poema “Ofício”,
soltam-se, àsvezes,
clarões e
gemidos.
Estalos, brilhos
que imitam
palavras.


Não à toa, a pedra é uma imagem recorrente neste livro de Tufic, ora como elemento natural, ora, no mais das vezes, como metáfora da liça cotidiana. Mas um poema não é apenas um amontoado de palavras. As pedras-palavras a que se refere o poeta precisam ser trabalhadas exaustivamente para que logrem alcançar o “estado de Poesia”. É o que temos neste O Sétimo Dia, uma referência explícita ao Gênesis, quando Deus deu sua obra por terminada e descansou, ou melhor deu-a ao uso do homem – que desde então tem-se dedicado a destruí-la. O “sétimo dia” é, pois, o dia da contemplação, do lazer, do prazer. É o dia da poesia. O poeta conclui mais uma coletânea a e entrega para deleite de seus leitores. Mas, com certeza, não descansa. Antes, trabalha lavrando pedras, pois tem sido assim desde o início, e é assim que ele chega, com este, ao 43° título de sua brilhante carreira.

“Poeta não se define: é um ser à parte.” Dividido entre “Sonetos” e “Poemas”, O Sétimo Dia traz um Jorge Tufic peregrino, desde Sena Madureira a Salamanca, passando pelo Cairo, por Alcântara, Machu Picchu, Nam Madol, Atlanta, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Lisboa e Singapura. Além, claro, de Manaus e Fortaleza. No soneto “Périplo”, talvez a chave dessa busca incessante, ele escreve:
Cidades inventei por toda partequando o tédio mostrou-me o seu reverso:nos sítios da miséria, o controversolixo da solidão que se fez arte.Perdi a mala, o sonho, o meu tabaco.Lavrando rochas, decepando luas,tudo me enoja, tudo me enche o saco.
Sinto falta de Beirute, mas o Líbano também se faz presente no “Soneto à Beringela”, vegetativa musa sobre a mesa; no “Soneto Árabe” – Amada os cedros voam. Pedras cantam / nos âmbares da terra. –, nos oásis, nas tâmaras, nos sândalos, nos desertos, nas tendas recorrentes, e, muito especialmente, no “Soneto para Kahlil Gibran”:
Letra por letra a doce voz do mestrevai-se passando para o coração.  O ser generoso cultiva a amizade e cultua a arte, alegorizada no “sétimo dia” genesíaco. Assim, Tufic contempla os amigos, como, entre tantos, Nilton Maciel, Almir Diniz, Marco Luchesi e a amada Izabel, e faz arte sobre arte ao dizer daqueles amigos que lhe preenchem a solidão, como Van Gogh, Borges, Huidobro, Rembrandt, Cioran, Bandeira, Kurosawa e o distante Van Pereira. Mas é o cachimbo, outra recorrência, o melhor companheiro da solidão, quando o poeta descobre “a geometria do incativo e momentâneo brilho do que passa.” São momentos de sonho, lições simples, de há muito cristalizadas na memória:
Não sei dizer passarinhosem dizer passarinhos,tal como ensinava a senhora de meus dias.Ela dizia de um modoque se via e se ouviao ser e o cantoa pluma e o vento;e, por detrás de tudo,o canto do encantotanto do pássarocomo dos passarinhos.A’sso-fir, em árabesão pássaros de pássaroe pássaro de pássaros.
Tufic nos dá lições de simplicidade e plasticidade: simplicidade plástica e plasticidade simples – pois essa é a essência de uma poesia que, sem pretensão de inventar, está sempre a renovar-se. Ouçam essa dúzia de versos colhidos a esmo:
Eu tive um lar, talvez uma varandacom árvores de fogo nos telhados;
Quantos metais se fundem nessa chama
Versos-medula plangem neste abraço
junta-se ao nosso o eco de outros nadas.
de luz & sobra paz & antemanhã
Late um cão neste verso, late late
Todos os mortos pulsam nas raízes
Palavras há também sobre os destroços
da noite plena como é pleno o sexo
De qualquer solidão brota a poesia.
para que eu chova estrelas, vento claro.
O ser generoso tem o ânimo elevado, ainda que sujeito a angústias episódicas, especialmente ao tédio dos domingos – porque o sétimo dia, meus amigos, é o sábado; o domingo é apenas o dia da “ressaca vital”, o dia da criatura sem o criador:
Como sugardeste solque tudo ressecaas tâmaras vitalíciasdo apogeu e da alegria?
Eu dizia que, a despeito dos domingos, o humor do poeta mantém-se vivo, seja olhando velhos álbuns de fotografias, seja num “anúncio” que beira o nonsense:
Aluga-se um velhoque já não serve pra nada.Garante-se, porém,que ainda olha e vê.E enquanto olha e vêcachimbaos pedaços da noite.

“Poeta não se define: é um ser à parte.” O nosso querido confrade Alencar e Silva já percebera isso no ensaio Jorge Tufic: as tendas do caminho (lançado aqui, neste salão, a 23 de março do ano passado). Diz o Alencar: “vem o Poeta construindo e diversificando os seus caminhos, percorrendo e iluminando as suas sendas e cumprindo, enfim, o itinerário que se traçara ao adentrar as terras-do-sem-fim da poesia.” Esses caminhos que se bifurcam e se multiplicam são os caminhos da inquietação que só o verdadeiro artista experimenta – mesmo quando em estado de contemplação, mesmo quando apenas cachimba em seu cachimbo, feito “não de roseira, que a rosa é o fumo, mas do aroma e da nuvem passageira.”
Eu, que não gosto de adjetivos, pinço deste livro um soneto magnífico, que, se não fosse pela obrigação ritual da apresentação que me foi pedida – e pelo orgulho-narciso de assomar a esta tribuna –, poderia ter lido logo no início desta fala e dado por encerrada minha participação, pois se trata de uma síntese de tudo o que falei até aqui, uma autêntica Poética – uma definição viva do que é a poesia, o poeta, o fazer poético:
Poeta não se define: é um ser à parte.De homem se veste, de animal caminha,mas algo nele de anjo se avizinhaquando em fatias brancas se reparte.Cheira o pão de seus versos; faz-se artepela dor que humaniza e que espezinha;não a dor do egoísmo, a dor mesquinha,mas a dor que se empluma no estandarte.Pode ser o domingo que se anula, um galgo que tropeça, o lenço esgarçoque, sendo de Marília, ainda tremula.Para si mesmo estranho ele se enigma,avesso ao paletó, caderno esparso,nada o liberta, nunca, desse estigma.
Muito obrigado.

(*) Discurso em sessão pública da Academia Amazonense de Letras, no dia 18 de junho de 2005, apresentando o livro O sétimo dia, de Jorge Tufic.
Foi publicado no n° 27 da Revista da AAL.

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