JORGE TUFIC: POESIA, ESSÊNCIA E MISTÉRIO
Por José Hélder de
Souza
Numa tarde de agosto de 1994, passeávamos Jorge Tufic e
eu, pela Avenida Beira Mar, no Meireles, praia de Fortaleza, Ceará, à procura
de um bar onde, como aconselhou T.S. Eliot, acertássemos nossos relógios pelos
relógios das praças e sentássemos por meia hora e bebêssemos nossas cervejas
(as cervejas para o Tufic, uísque para mim ou outra sorte de absinto, como
queria Baudelaire), embora não fôssemos, não sejamos, “Homens Ocos”, naquele
“reino crepuscular” e aceitássemos a afirmativa do poeta Eliot feita em
Cambridge ao debuxar o “Retrato de uma Senhora”: “Pertence a ti (a nós, no
caso) toda esta tarde”. Falávamos então, Tufic e eu, de poesia e da falta de
poesia em livros ditos de poesia desta nossa época, nesta sobre-tarde de século
e de nossas próprias vidas.
Sem
afetado ar de crítico ou de erudito ledor de poemas, dizia eu, enquanto
caminhávamos sedentos rumo a um bar do Mucuripe, ao poeta Jorge Tufic que para
ser poesia, o verso precisa ter aquele indizível, inefável mistério, certa
incoerência, eufemismos ou modo de interlúnio.
Agora,
nesta minha hora brasiliense também de sol-pôr, lembrando a peripática busca ao
crepúsculo, frente ao mar em rumo de um boteco que fosse, encontro, na leitura
de “Os Sete Pergaminhos”, V parte, página 121 de Poesia Reunida, do próprio Jorge Tufic (Edições Puxirum, Manaus –
1987), esta feição de mistério do verso, da poesia vigorosa, como se vê:
“Vamos
dar tempo, senhor,
para
que a lenda apodreça
os
ramos da verdade”.
São versos amazônicos, só
possíveis na escrivinhadura de um poeta que conheceu o paul da selva onde se
estiolam ramos e as lianas com que se entretece a lenda. É verdade, me parece.
¨¨Não sei muito de deuses¨ - repitamos Eliot
- mas os da mata amazônica, por certo, meteram-se nos versos do acreano Jorge
Tufic.
“No campo de marte,
o
torso de Aquiles penetra
a
carcaça do seu último galope. ¨
Estes
versos, embora tragam a intrínseca beleza da poesia e seu mistério – “o sal do
verso”, como diz o mesmo Tufic, no soneto “Tarefa”, pág.59 – , poderiam ser
escritos por qualquer um outro poeta de qualquer um outro país, com razoável
cultura ou conhecimento de outros versos de outras lendas coevas.
Mas
versos como os deste trecho do poema “Fragas e Consonâncias para Nazim Hikmet”
(pág.122) – “O arco-íris imita uma cobra / com duzentas lendas de escama” – só
poderiam ser gerados nas brenhas amazônicas, onde “...a terra parou. A luz
germina / o caos testemunha o grão do inseto, / hasteia o verde”. Versos feitos
no entanto sem alusões patéticas à selva, aos meandros da mata diluviana, “o
manto aluvial, descendente do bíblico” (Ferreira de Castro, A Selva, pág.193), que tanto assombrou,
“galvanizou”, como ele mesmo diz, o romancista português.
Também
quando medita sobre modos de fazer poema, Tufic nos dá – “Poemática”, pág. 186
- a medida exata de sua poesia e onde aprendemos que isto é a “força incorpórea
/ da semente brotando em nossa mão” (a presença vegetal, sempre) ...”enigmas
que circulam entre um / verso e outro verso / entre uma palavra e outra palavra”...
Na
coletânea de poemas A História, integrante de Poesia Reunida e que tem o
delicioso subtítulo Cordelim de Alfarrábios (pág.221) vemos se confirmar a
amazonidade de Jorge Tufic, digamos assim, se não for impróprio. Nos poemas
desta parte do livro, vamos encontrar, de começo, a penetração dos
colonizadores espanhóis e lusos desvirginando as matas e as águas primordiais,
feitos que Tufic diz deste modo: a “Nova Terra... / com seus remansos de lenda
/ viu-se um dia ao calendário... / E por janeiros doada / por parte dos reis de
Espanha, / ventos foram puídos / de tantas bandeiras rotas; seus rios tiveram
sede / pelo sufoco das proas. / E as matas foram recuando / nos olhos do
Curupira”.
Depois,
sem descair para o popularesco, como fazem alguns, com onomatopéias imitativas
da natureza, percorre as lendas, os mitos da Amazônia:
“Eram
livres céus e terras,
bichos,
peixes, águas, fontes,
livres
de ver liberdade
nas
garças e jaçanãs...
ar
livre, praias cobertas,
grávidas
praias, de leve
urdindo
a fala esquecida
dos
uruás e tupanas,
livres
os fios das lendas
para
as tragédias humanas.”
Seguem-se
poemas celebrando os mitos, os heróis primitivos, animais e plantas e o homem
mesmo, os filhos da mata, do homem que lá se formou desde a origem dos séculos
até os simples e humanos heróis – como os soldados da borracha – da vida
amazônica vista por Jorge Tufic, suas cidades com suas misérias e grandezas.
Tudo num fluir de poesia verdadeira que eu gostei de encontrar dias depois de
nosso encontro, Tufic e eu, na praia da Fortaleza.
-
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Os
versos de T.S Eliot aqui citados foram lidos e relidos em Tierra Baldia y Otros Poemas, Coleccion Los Grandes Poetas, Buenos
Aires, 1954, e Poesia, tradução de Ivan Junqueira, Nova Fronteira, 1981.
Nenhum comentário:
Postar um comentário