A
PALAVRA NA FICÇÃO
Tenho encontrado leitores que
me fazem perguntas embaraçosas como esta: “O que devo fazer para aprender a
escrever conto, novela, romance?” No mais das vezes, digo-lhes: “Comece lendo
os clássicos.” Alguns me responderam: “Mas eu já li quase todos e, mesmo assim,
ainda não sei como escrever um conto.” Ora, há dicionários, manuais, tratados
que dão noções sobre espaço, ação, incidente, drama, conflito, unidade
dramática, história, célula dramática, lugar, tempo, passado anterior ao
episódio, tom, personagens, tipos, caricaturas, linguagem, concisão,
concentração de efeitos, diálogo, diálogo interior, monólogo interior, discurso
direto, narração, descrição, ponto de vista, foco narrativo, primeira pessoa,
narrador onisciente, começo, fim. Também o conhecimento de tudo isto parece não
ser suficiente para dar ao aprendiz de escritor o cadinho para a realização da
obra de arte. E, por falar em cadinho, captei a seguinte lição de Adolfo Casais
Monteiro, em Os Pés Fincados na Terra: “A arte não é invenção pura;
o artista é como que um cadinho em que se realiza a mistura dos ingredientes
que são o pó da experiência.” Muitos sociólogos ditos marxistas insistem em
afirmar que toda pessoa é capaz de criar qualquer obra de arte, desde que se
lhe deem condições sociais, culturais para o exercício dessa capacidade. Ora,
milhares e milhares de pessoas letradas, bem vividas se dizem poetas porque
sabem escrever versos. No entanto, não são poetas ou não conseguem escrever
bons poemas. Os gramáticos seriam então os melhores poetas, contistas ou
romancistas.
Muitos desses escritores
principiantes estudaram gramática, leram os principais livros – da Antiguidade
aos dias de hoje –, se debruçaram sobre manuais, tratados, dicionários de
literatura, e, crentes de já saberem tudo e estarem prontos para a criação
literária, tentaram escrever contos, novelas, romances. O resultado, porém, tem
sido desastroso. Faltou-lhes o quê? Persistência? Nem sempre. Humildade?
Talvez. Imaginação? Quem sabe? Talento? Não sei.
Há quem pense ser mais fácil
escrever contos ou poemas curtos que romances. Como se tudo fosse questão de
tamanho. Ora, contistas são contistas, poetas são poetas, romancistas são
romancistas. Alguns escritores conseguem ser bons como poeta, contista e
romancista. Muito contista sonha com um grande romance e frequentemente o
ensaia nos contos mais longos. Já o narrador mais afeito à arte de narrar nunca
confunde alhos com bugalhos. Confunde-se também conto com crônica, o que é
menos grave. Pior é chamar de conto simples anedota, piada, notícia,
comentário, etc. No livro A Nova
Literatura: O Conto, Assis Brasil faz didática distinção entre conto,
crônica, prosa poemática e poema em prosa. Crônica é um relato, bastante pessoal,
onde o autor nomeia e descreve acontecimentos, criando enredos num tempo
histórico passado. O poema em prosa e a prosa poemática são formas
confessionais, ausentes de fabulação.
À medida que o homem avança
no tempo em sentido contrário à caverna (ou todo movimento é um retorno?) mais
se torna difícil expressar-se por conceitos. Assim, a oralidade primitiva se
confunde cada vez mais com a escrita dos novos tempos. Isto não quer dizer que
o caso, o conto oral tenda a desaparecer. Ora, como não encontrar semelhanças
entre o conto rural, que se confunde com a lenda, e o conto urbano de feições
realistas? Difícil também delimitar os campos do imaginário e do real.
A história curta,
tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de
discussões entre narradores e teóricos em busca de definições, como tem dado
ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações sofridas pelo gênero.
Muitos estudiosos elaboraram vastas enunciações do conto. Arranjar, porém,
novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada
conceituação e a cada transformação seria preciso um novo batismo.
Os manuais, os tratados, os
dicionários não tratam de questões menores ou de noções rudimentares da arte de
escrever literatura. Pois eu quero aqui dedicar algumas palavras a essas
“outras noções” de como escrever “corretamente” prosa de ficção. Ou como não
escrever “incorretamente” prosa de ficção.
Comecemos pelo emprego
exagerado de lugares-comuns e gírias. Os livros estão cheios de “nariz
aquilino”, “lágrimas de crocodilo” e outros chavões. Se não é possível a
metáfora, que se descreva o nariz do personagem com criatividade. Vejamos a
gíria na frase: “O gatinho andava ao meu redor.” Ora, daqui a alguns anos quem
poderá imaginar que o narrador se referia a um rapazinho e não a um felino? O
escritor poderá passar como genial: o “gatinho” seria uma metáfora.
Há escritores que abusam da
grafia distorcida de vocábulos, na certeza de estarem sendo fiéis à língua do
povo, realistas, e de estarem preservando o idioma português. Ora, por que
escrever “home” em vez de “homem”, “bêbo” em vez de “bêbado”, “eu tô com fome”?
Neste caso, para ser fiel ao propósito de escrever como fala o zé-povinho,
melhor seria: “eu tô cum fomi”. Guimarães Rosa fez malabarismos para não cair
nessa esparrela. Escreveu sempre a fala do povo do sertão mineiro, porém com
invejável inventividade, sabedoria, consciente do significado de cada sílaba,
de cada vocábulo, de casa frase.
O mau uso dos diálogos tem
sido outro pecado de muitos escritores. É o caso de personagens do tipo
Zé-prequeté falando como literatos, isto é, o oposto do uso excessivo de gíria
ou transcrição da fala do joão-ninguém. José de Alencar é criticado por ter
posto nos lábios de seus índios o modo de falar dos portugueses. Porém, o
romantismo tinha lá suas leis, como a de que os diálogos nunca reproduzissem a
fala dos “sem fala”. O sertanejo que falasse como o doutor da cidade, com
acatamento e respeito às normas gramaticais.
Há também o vício da
repetição exagerada de vocábulos, na mesma frase, no mesmo parágrafo, no mesmo
capítulo, no mesmo conto. Os mais comuns são: “que”, “mas”, “estava”, “era”.
Vejamos este caso: “João dos Bois ia levantar mais tarde. Antes de levantar...”
Contemos os “que” neste trecho: “Mieko achava que devia voltar à lavoura
novamente e conversa com o Noriel e pedir que ele não contasse a ninguém o que
tinha acontecido.” Do mesmo livro é a frase: “Foi só depois que o Roberto tinha
levado a Arume que a Mieko achou que
podia escrever.”
Semelhante ao senão apontado
é o uso forçado de figuras de linguagem, o emprego desnecessário dos artigos, o
descuido na conjugação dos verbos, os cacófatos. Tudo isso é muito comum em
narradores brasileiros do final século XX e depois. Para isto, dizia-se:
“Fulano não tem estilo.”
Passemos aos personagens. Um
dos erros mais comuns é o excesso de personagens em contos. A não ser que
somente dois ou três deles participem diretamente da ação. A primeira causa
disso será o surgimento de personagens desnecessários, sem lugar na ação,
supérfluos. Depois, a confusão no enredo. O tamanho da narrativa não comporta
muitos personagens. E não será a evolução do gênero que irá mudar isso.
E para que personagens sem
nome? Cabível em contos com muitos personagens. Somente os principais, dois ou
três, terão nomes.
Outro equívoco de alguns
narradores: o aparecimento súbito de um personagem secundário, irrelevante, e o
seu repentino desaparecimento. Melhor excluí-lo da história.
Vejamos a descrição dos
personagens. O narrador não precisa descrever o caráter dos personagens. Se
fulano é mau ou bom, não cabe ao narrador qualificá-lo e, sim, ao leitor. Suas
ações e suas palavras o pintarão aos olhos do leitor. Também é ocioso descrever
o aspecto físico dos personagens, especialmente em conto. No romance
realista e naturalista a descrição não podia faltar. Como não se deliciar o
leitor com o corcunda de Notre-Dame? Porém, a descrição não se fazia
gratuitamente. Sem o aleijão do personagem o romance não existiria. A descrição
de defeitos ou características não faz sentido, a menos que o aspecto físico do
personagem seja imprescindível à história. Se fulano é cego, manco, perneta, se
assim descrevendo o personagem quis o narrador simplesmente “enfeitar” a
história, homenagear alguém, seja lá o que for – a descrição então será uma
excrescência.
Agora a questão do narrador.
Durante muito tempo prevaleceu em prosa de ficção a onisciência do narrador,
fosse personagem ou não. Porém, tudo mudou a partir de James Joyce. O narrador
onisciente desapareceu. Os pensamentos dos personagens não podem ser do
conhecimento do narrador. “Fulano tencionava matar sicrano.” “Ele se sentiu
culpado de alguma coisa.” A interferência excessiva do autor-narrador é um mal
maior para a narrativa. Assim como o excesso de observações e explicações. Não
deve o narrador dar informações, sobretudo se inúteis à trama. Exemplo: “Na
curva do caminho surgiu um cavaleiro: era o Vadico, um velho conhecido que
batia muito na mulher.” Tal informação é até sem sentido no conto, vez que
Vadico nem sequer volta à cena.
Mencionar
nomes de cidades, logradouros, somente se absolutamente necessário ao enredo.
Dizer que fulano mora na Rua São Sebastião ou na Avenida Dom João poderá ser
necessário, sim. Se não o for, para que o nome do logradouro? Nunca explicar o
óbvio. Como assim: “Em Fortaleza, a bela capital do Ceará, vivia fulano.”
Aliás, nunca explicar nada. “Isto aconteceu porque...” Melhor o mistério. Cada
leitor fará uma dedução. Nunca opinar. “Aquela mulher era má.” Cabe ao leitor o
julgamento dos personagens. O narrador não é juiz, não decreta nada. Sua função
é tão-somente narrar.
Moreira Campos, um dos
mestres do conto brasileiro ou um dos melhores discípulos dos grandes mestres,
seguia à risca as lições de Tchecov. Em “Breves palavras”, apresentação do
livro Dizem que os cães veem coisas,
escreveu: “Sou fiel, quanto à síntese, ao conceito de Tchecov: ‘Se a espingarda
não vai atirar no conto, convém tirá-la da sala.’” Ainda desse mestre a
advertência de que, “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira.”
Em suma: para escrever boa
prosa de ficção é preciso, além de conhecer todas as técnicas de narrar e muito
talento, saber lapidar, transpor, alterar, substituir, riscar, cortar,
remendar, costurar palavras, frases, parágrafos inteiros. E não ter medo do
cesto de lixo, de ser cruel consigo mesmo. Não ter complacência com o vício, o
erro, a mediocridade. Não ter piedade nem de si mesmo nem de personagens.
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