O
FOGO QUE ANDA
Depois das primeiras camadas
removidas pelo vento, a terra admite solidez para os caminhos; as montanhas são
limpas de arestas perigosas e o vale se adoça para a contemplação e o repouso.
Com estas frases, Surin,
o paciente exorcista de Aldous Huxley,
decidiu extraviar-se, sem que fosse percebido, de todas as penas que lhe foram
infligidas no decurso de seus dias em Annecy, mais precisamente naquela
passagem do livro em que ele “começava a estudar, com certa minúcia, os objetos
que ali estavam, coisa que, em razão de uma extrema debilidade dos nervos, não
pudera fazer por quinze anos.”
Os objetos estudados por
Surin lhe atraem a descer os cinco ou
seis degraus que davam para o jardim da casa, em seguida para o gramado, as
margaridas de São Miguel, as cores do dia, o dourado do sol. Foi por isto que o
monge, cuja santidade lhe conferia estar onde quisesse, e havendo descoberto,
através da natureza livre, algo melhor do que o sadismo de seus contemporâneos,
em vez de trocar de morada terrestre, trocara simplesmente de corpo físico com
o primeiro indivíduo da localidade, disposto a receber as honras póstumas
devidas ao santo. Logo após esse terrível encontro, ainda cambaleante pela
ressaca dos intermináveis jejuns oferecidos à Virgem Maria, o novo archote
embebido pelos ares da montanha caminhou em direção oposta às vilas e aos
mosteiros.
Levantando os olhos
fatigados para o céu da manhã completa de ruídos estranhos, já que diferentes
daqueles que povoaram seus anos de látegos, preces, gemidos de dor e sussurros
neuróticos de beatas arrependidas por algum mal-entendido, Surin considerou a
distância entre os dogmas fechados nas brochuras góticas e o panorama vivo que
se desdobrava diante de si, como um tapete de mágicas. Veio-lhe então à mente o
que tinha sido. Um texto empoeirado, um palimpsesto cobrindo-se e apagando-se
até que as letras pudessem também cobrir-se de sangue e as próprias artérias se
convertessem na palha dos presépios. Agora, Surin podia olhar-se no verde,
sentir-se na pedra molhada de chuva, lavar-se nos córregos.
Julgara, assim, que tudo
aquilo era parte de sua última viagem, não exatamente a seguir do instante em
que tomara o corpo do anônimo tentado pela inanição gloriosa de seu fardo
humano petrificado na cela do convento, mas desde que se fora realmente, crendo
que só a morte teria o poder de revelar o contrário da existência comum.
Dúvidas, sempre as dúvidas! Ainda que Surin participasse de uma saúde digna de
um pastor de ovelhas! Uma coisa, porém, já deixara de sentir pelos hábitos da
tradição: o interesse doentio pelas ruínas das torres e castelos encontrados em
seu percurso cheio de surpresas bucólicas, embora se lembrasse vagamente dos
dias em que peregrinava através de suas muralhas e tantas vezes se fizera
escoltar, nas eras difíceis da guerra.
As conclusões de Huxley
parecem suficientemente claras para negar-se a Surin o direito de ascender a um
estado de loucura semelhante ao de Jeanne dès Anges, a quem o jesuíta libertara
dos terríveis demônios que infestavam Loudun, e culminaram com o espetáculo
público da morte de Grandier. É qualidade inata do misticismo a conquista do
objeto perseguido através das práticas que o possam igualar ao perseguidor.
Plotino: para encarar o sol, o órgão da visão deverá antes habituar-se à
intensidade da luz. Para a ignorância da época, Surin preparava-se com todas as
minguadas energias, para alcançar a eternidade. Não imaginava ele talvez que a
eternidade já tinha vindo ao seu encontro, pois, quando, na primavera de 1665,
a morte o surpreendeu, não havia, como disse Jacob, nenhuma necessidade de ir para
algum lugar: já estava ali.
Dedicando-se inteiramente ao
trabalho das letras e das almas, Surin havia tocado a essência do divino com a
lucidez parcial dos santos exorcistas; restava-lhe então seguir em busca de sua
outra metade, sem a qual a função de estar é negativa de ser, e todo alcance,
por mais definitivo, só coincide com a morte para aqueles que ainda estagiam no
plano de simples testemunhas, não lhes cabendo, tanto quanto a ele, dar conta
do fim ou do começo de cada tarefa. As labaredas são ventos azuis que expungem
do lodo e restituem a vontade. Se Grandier necessitava delas no próprio corpo,
Surin transformou a si próprio no difícil fogo que caminha.
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