AS NOITES E OS DIAS
Para quem lê contos, para
quantos que ainda mantêm, à cabeceira, os livros fundamentais desse gênero da
literatura, o que pode representar “Os Dias e as Noites”, do médico e
ficcionista Ronaldo Correia de Brito? Pois logo vos digo que o livro deste
autor representa o que de melhor já foi escrito, até hoje, pelos mais
consagrados escritores brasileiros, quer hajam estes inovado a técnica do
conto, quer tenham ficado na linha
tradicional da narrativa curta, por absoluta necessidade de enfatizar os temas
de uma região tão forte como o Nordeste,
ou tão desconhecida como a nossa Amazônia.
Não é fácil, portanto,
explorar o regional, o poder da imagem, sem cair nas armadilhas do terrorismo
psicológico, nas malhas comuns daqueles dramas que respeitam a todos os
viventes do planeta, compondo, assim, um texto ausente de Eufrásia Menezes, ali
onde “os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite”. Todavia,
em Ronaldo Correia de Brito não há propriamente regionalismo no sentido Blaus
Nunes, símbolo da oralidade, alter ego do grande Simões Lopes Neto, tampouco se
confunde com a narrativa grosseira de fatos pitorescos, históricos ou sociais
referentes a este ou àquele lugar, fazenda ou vilarejo. Ele vai muito além
disso, através da linguagem, começando seus contos como quem retoma o fio da
meada, isto é, sem começo; o que dá, ao meio, as surpresas regentes do
clímax que urde as tragédias, desloca o
fim para o começo ou fica para o leitor concluir pelo autor, como em certas
peças de teatro, anteriores e contemporâneas do metateatro. Seu texto abriga o
discurso poético isento da “transparência” assemelhada ao pingue-pongue das
ruas, da fala corrente, a que se refere
Assis Brasil em seu “Vocabulário Técnico de Literatura” (Edições de Ouro, 1979,
pag.65). E vai mais longe: articula o diálogo das personagens sem o recurso
barato da transcrição ipsis verbis, do apelo à gíria, mas dando a cada
incidente o tom e a síntese medidos pela secura dos hábitos, regulados por
muita ação e pouca conversa.
O “mastruço”, o “gibão”, a
“rapadura”, as léguas percorridas e o eterno conflito entre Deus e o Diabo, com
todo um denso repertório de chaves semânticas, a par de uma sintaxe amadurecida
no clima das leituras seletivas dos clássicos do romance nordestino, são estes
os elementos que fazem o seu estilo pessoal, coerente e despojado, oposto ao
modo dos primeiros rapsodos, sempre atento aos mínimos objetos e detalhes que
se incorporam á legenda, à matéria que faz deste livro um ser vivo, como quer
Mário Hélio.
Numa visão moderna, os
contos de “As Noites e os Dias” remontam ao século XIX, quando predomina, no
Ocidente, o chamado “conto rústico”, o qual, embora voltado para uma tendência
realista, conserva ainda um forte sentimento romântico e idealização da realidade. Isto quanto às influências do
progresso (entre aspas) que esmaga e tenta sobrepujar as delícias da vida
campestre ou rural. Inclina-se, neste mesmo raciocínio, para o lado dos
“humilhados e ofendidos”. Valoriza, portanto, o rural, no caso da Europa, as
aldeias, em contraste com os danos da civilização industrial e das cidades
modernas, surto este que nos daria as obras pioneiras de autores americanos,
franceses, russos e portugueses. Quem não se lembra das “Novelas do Minho”, de
Camilo Castelo Branco, do “Tartarim de
Tarascon”, de Alphonse Daudet, ou, ainda, de “A Fortuna de Roaring”, de But
Harte?
“As Noites e os Dias”,
contudo, poetizam, nas linhas e nas entrelinhas, com a melhor técnica do
“realismo mágico” (melhor porque espontâneo, nunca forçado), e o que, de resto,
parece absurdo, nele deflui com a naturalidade dos sonhos. Se não, vejamos: na
postura convencional, porém ambígua, é Lourenço Estevão que, “depois de vinte
anos de morto, voltava para se vingar”. Numa outra dimensão, como parte de um
comportamento que soma deveras com as raízes que interligam a história com a
geografia, as personagens do livro aparecem imunes à surpresa e aos
acontecimentos que urdem a tragédia, como se, acostumados aos rigores da sorte,
já estivessem na pele daqueles que se foram. A fé, que remove montanhas,
acompanha, sem hesitação, o áspero ritmo das alparcatas sobre o pedregulho dos
caminhos, enquanto a face dos mártires
anônimos toca as estrelas.
São doze contos, como doze
são as horas do dia, como doze, também, são as horas da noite. De sua leitura,
a ressonância dos fatos descritos, o látego intenso das frases saídas da terra,
como a correia sai do couro: “Amarelo, tremendo de malária, uma crosta de grude
no corpo que não largou nem raspada com telha velha” (“O dia em que Otacílio
Mendes viu o sol”, pag.12). Em Rabo-de-Burro”, a mulher perseguida pelo falso
lobisomem “sentia seu corpo triturado pelos olhos dos homens” (pag.21)
“Dolorida” é um monólogo dramático, com rasgos assim: “Agora tudo é longe. Tá
escuro sem ser noite. E este morto aqui marca meu tempo. O que foi que eu
deixei de ver?”(pag.30). No conto “Inácia Leandro”, tenso e absorvente até a
última linha, a presença de Lourenço Estevão “com cinco balas no corpo e o seu
riso de menino”, como que se repete: “Aquele desconhecido, naquela noite, tinha
a face de um destino”. ”A Faca” é um achado e uma encruzilhada de sombras, em
torno de um crime: “O vaqueiro guardou, até o fim da vida, o brilho nos olhos,
aquele pássaro de asas prateadas escapulindo da morte”. “Eufrázia Menezes” concentra o melhor na difícil técnica do
solilóquio, e tudo, neste conto, pode ser destacado como “pedra de toque”, sem
muita escolha. Por exemplo: “Estamos os dois neste universo de ausências: ele dormindo
e eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata a este mundo. É imensa, caiada de
branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e
fechá-las. Fechada, ela lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos
nas paredes, celas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã
vestiu”.
E daí por diante. Ronaldo
Correia de Brito sabe, como ele só, que o gesso do conto não recusa a
experiência do teatro, nem as audácias
inovadores da linguagem, que induzem à poesia. São estes, portanto, os valores da escrita basicamente ligados ao
material da pesquisa, aos lastros da memória e ao discernimento sociológico na
observação direta dos fatos com que ele esmurra a consciência de seus
contemporâneos. A realidade destes contos, dosados pelo fantástico, darão às
realidades a que estamos habituados qualquer coisa semelhante a um passo a
mais, em direção a nós mesmos. Trata-se, sem dúvida, de um verdadeiro
livro-monumento.
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