Samuel Benchimol e a paixão amazônica
Jorge Tufic
Honrado
estou, nesses dias de julho de 2011, quando revisito Manaus, com a
difícil mas também agradável tarefa que recebo de meu velho e nobre
amigo João Renor Ferreira de Carvalho, de apresentar aos leitores este
raro livro cujo título – O Samuel Benchimol que eu conheci
– logo nos traz de volta a figura legendária do ilustre “homem
apaixonado pelo mundo amazônico”, com quem tive o orgulho de conviver na
qualidade de membro do Conselho Estadual de Cultura.
Sem
dúvida, o autor desta coletânea (Documentário e Memória sobre o acervo
de manuscritos da Capitania do Rio Negro, transferido de Portugal para a
Universidade do Amazonas), sentira-se ainda mais inspirado com o fato
nada comum de, ao obter o respeitoso acesso aos arquivos do grande
amazonólogo Samuel Benchimol, deparar-se ali com todas as vinte e sete
cartas que lhe foram enviadas e respondidas no período de 1978 a 1982, a
partir de Manaus, Lisboa e Paris. Nada então, ou quase nada lhe
impediria de realizar, com esse importante conjunto ativo e passivo de
correspondências tão valiosas, a obra que certamente faltava em nossas
estantes, nos levando, inclusive, a entender melhor o contexto sombrio
de uma ditadura militar.
Comove-nos,
e às vezes até nos angustia vivenciar a leitura dessas cartas, tanto as
de Benchimol, quanto as de Renor, pois refletem elas, de maneira
espontânea e coloquial, a realidade (e as hostilidades) que costumam
rondar as iniciativas pioneiras em favor do resgate das fontes primárias
de nossa história, ou seja, da verdadeira História do Amazonas, nos
séculos XVII e XVIII.
Algumas
digressões em torno do “gênero” podem ser necessárias. As epístolas,
mensagens em forma de cartas, tornaram possível o Novo Testamento. É
famosa, no Brasil, a correspondência de Guimarães Rosa com seu tradutor
alemão Curt Meyer-Clason (1959-1967), sobre a qual depõe Francis Henrik
Aubert: “Aqui flagramos, literalmente, os momentos dos diversos fazeres
tradutórios, em um processo quase inédito de co-autoria” (João Guimarães
Rosa, Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason,
pag.9, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003). Dos séculos XIX
ao XX, igualmente famosa é a correspondência entre Machado de Assis e
Joaquim Nabuco, organizada, com introdução e notas, por Graça Aranha.
Referindo-se a ela, escreve José Murilo de Carvalho: “Trata-se de
conjunto numericamente modesto de 53 cartas e
um bilhete. Machado comparece com 31 cartas, Nabuco com 22. De
imediato, chama a atenção do leitor a distribuição cronológica da
correspondência. A primeira carta é de Nabuco, um rapazola de 15 anos,
aluno do Colégio Pedro II, que escreveu em 1865, agradecendo elogios
feitos por Machado, então com 25 anos, um poema patriótico sobre a
rendição de Uruguaiana, que recitara em presença do imperador. Machado
elogiara o aluno (talvez em parte por ser filho de quem era), e Nabuco
lhe escreveu para agradecer” (Machado de Assis & Joaquim Nabuco,
correspondência, Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003). Estas
correspondências abordam assuntos gerais e específicos da época, oscilam
nos tratamentos, ora de “meu caro”, ora de “meu querido”, à medida que
aumentam; pedem desculpas por
alguma pressa em dar as respostas, avançando desse modo no âmbito da
intimidade, enquanto se identifica nos laços afetivos a causa abraçada
por ambos, aplaudem os sucessos.
Tal
e qual se verifica entre Renor e Samuel, essa prática dos homens de
ciências e letras tem sido benéfica ao país, e, particularmente, aos
estados do norte, em razão do espaço geográfico que os separam dos
grandes centros urbanos, detentores do poder econômico e político desde
que o Brasil foi descoberto. Quanto ao veículo – mucanda, epístola etc. –
se não é uma arte de linguagem, virtudes não lhe faltam para motivar
poetas e romancistas que dele se utilizam para suas deambulações
filosóficas, artifícios líricos, recados, informações. A epopéia lhe
subjaz.
Atendo-me,
pois, resumidamente, ao núcleo temático deste elenco de cartas e
bilhetes, ora tidos como documentos, ou corpus, de tantas pequenas
batalhas, a par de enormes cotas de sacrifícios, aos quais também se
juntam o esforço e a colaboração do ilustre e saudoso professor Roberto
Vieira, baliza-me este simples roteiro de pesquisa, data vênia dos
mestres, manuscritores e alquímicos da palavra final:
(a)
As cartas do professor Benchimol são documentos preciosos, porque
absorvem as duras preocupações de um momento dramático na História de
nosso País (1978/1982);
(b)
As cartas do professor Renor são, também, documentos (fontes primárias)
revelando um grandioso trabalho realizado nos Arquivos Históricos de
Portugal, trazendo até nós a memória geossocial da Capitania Colonial de
São José do Rio Negro;
c) As notas de rodapé constituem a memorabilia
do não menos ilustre professor Renor, sobre as circunstâncias daqueles
quatro anos em que esse hercúleo trabalho de resgate histórico e
cultural fosse concluído. Agora, vejam: quantos anos antes que o próprio
Governo Brasileiro, através do Ministério da Educação, recebesse de
volta os códices de nossa própria certidão de nascimento?
Segundo
Renor, gestou-se o projeto de levantamento da memória do Amazonas ao
longo de interessante “bate-papo” com mestre Benchimol, quando lhe fora
apresentado pelo historiador Mário Ypiranga Monteiro, em 1977. Já em
1978, a conversa passa para as letras de cada um, dando-se conta dos
primeiros passos em direção da microfilmagem do arquivo Histórico
Ultramarino. “Deste modo”- escreve Benchimol em 04/07/1978 – “um judeu
brasileiro amazônida e um católico nordestino vão se aliar para produzir
a nossa história e reaver os preciosos manuscritos de Lisboa. É um
serviço que vamos prestar.”
Por
sua vez, Renor vai liberando seus relatórios nas cartas de próprio
punho, numeradas de 01 a 28, sem faltarem os demonstrativos de receita e
despesa, custos em escudos, além de várias comunicações de remessas de
livros raros adquiridos nas livrarias, deixando transparecer algumas
surpresas e dificuldades a caminho do espólio. Nessa troca de luzes,
mantém-se o bom humor, a autoconfiança e o lema da fraternidade, da
generosidade e da lealdade, com que define o legítimo ideário humanista
de seu indomável companheiro de luta.
Ao
tratar deste assunto, não devemos esquecer a ectódica, ou o temor dos
retardatários nesse tipo de salvamento nada mais encontrarem nas velhas
caixas de madeira, senão traças ou uma outra escritura deixada pela
corrosão devastadora. Comenta Augusto Meyer: “A verdade é que o leitor
moderno, acostumado à facilidade das tiragens amiudadas, em plena era
gráfica, nem de longe poderá imaginar a aventura da transmissão dos
textos antigos, ou considerados clássicos, através dos séculos” (pag.
23, “Os pêssegos verdes”, ABL, 2002). E Antonio Tovar: “No deberá
olvidar nunca el filólogo que
los fundamentos, y la vez las aspiraciones y los límites de su ciência
los pusieran Zenodoto, Aristófanes de Bizâncio, Aristarco, Erastóstenes.
Es possible que hoy manejemos, al cabo de veinte-tres siglos, um
material de major precision, pero las bases son las mismas, los
problemas e los temas que nos ocupan están iniciados desde entonces”
(idem). Ainda hoje quer-se decifrar as palavras que Jesus escreveu na
areia, enquanto o interrogavam sobre o destino da mulher adúltera; mas
os juízes, ao se retirarem do recinto, já tinham como certo que eles
próprios também seriam julgados. Não há traço nem risco de pena que não
possa desdobrar-se numa longa odisséia.
Restituído
ao seu lugar de origem, este resgate promovido por Renor e Benchimol é a
sementeira da História, a matriz de nossa infância cósmica, os olhos do
pajé que se transporta na fumaça do cachimbo, a letra da verdade
histórica, o sonho do conquistador e a escravidão do conquistado. E este
livro é um diálogo de sábios, cuja terceira margem se concretiza no
empenho de trazer do exílio a História do Amazonas.
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