TUFIC AO SOPRO DO ZÉ FIRO
Recorro a um
truísmo para dizer que o poeta Jorge Tufic já se tomou numa figura legendária
da poesia brasileira do século passado e do milênio que se inicia. Críticos e
resenhadores do país, independentemente de tendências e opções estéticas, não
têm negado aplausos ao desempenho literário deste autêntico mestre da artesania
poética, acriano de pais libaneses, nascido no final da terceira década do
século recém-findo.
Numerosos
livros de poemas e de ensaios enriquecem sua vasta bibliografia. Jorge Tufic é
desses autores que exprimem, através do poema, sua paixão avassaladora pela
beleza e fugacidade da vida, pelo legado existencial herdado de seus
antepassados mais remotos. Profundamente ligado às raízes, sem renunciar à
fidelidade e aos apelos do tempo presente, o poeta insinua-se nos meandros das
realidades do cotidiano para se encontrar consigo mesmo, com as razões ou
sem-razões do poema. Ou para confessar em versos como estes, repletos de
evocações do seu rio tutelar: "Menino ainda, escolhi o meu acaso! Segui
uma nuvem que vinha das cabeceiras" (Zéfiro com Soneata Barroca, Realce
Editora, Fortaleza, 2004).
Mestre
incontestável do soneto, essa teia mágica que ainda intriga os pretendentes de
Penélope, Tufic passa incólume pelas "perpétuas grades" (Augusto dos
Anjos) dessa autêntica jaula medieval, com certeza uma das mais polêmicas de
todas as modalidades de poemas já concebidas pela fantasia humana Os sonetos de
Jorge Tufic são de uma leveza prodigiosa, e nisso reside um dos segredos de sua
modernidade.
(Oportuno
lembrar que o texto literário produzido sob o signo da norma culta é,
necessariamente, terreno propício ao surgimento de numerosas figuras de sintaxe
e/ou de pensamento, das quais é pródigo o idioma dos nossos ancestrais
ibéricos. Essa opulenta nomenclatura de tropos faz parte do acervo arqueológico
do próprio idioma, razão pela qual, na maioria das vezes, eles entram
compulsoriamente na poesia ou na ficção sem que os autores tenham contribuído
diretamente para isso. Seria utópico imaginar que a verdadeira poesia
dependesse, aleatoriamente, de eventualidades ornamentais. Não seria absurdo
imaginar que esses arquétipos podem ser encontrados até mesmo numa tediosa
exposição de algum balancete sobre lucros bancários.)
Poeta
de muitas andanças pelo Brasil e outras paragens do mundo, espírito inquieto
num corpo de beduíno, Jorge Tufic assimilou imagens e recordações dos lugares
por onde passou. De tal modo que em seus poemas arrulham pássaros e regatos,
rios e lagos que escondem mistérios, lendas de sereias e visões encantadas,
duendes, feiticeiros e outros seres fantásticos que habitam nos troncos
diluviais da floresta amazônica. Além de colméias dos tempos da criação do
mundo, construídas de fragmentos de diamantes lapidados. Sem falar nas flores
exóticas cuja beleza e perfume enfeitiçam os homens, peixes, insetos e animais
que se acasalam ou hibernam nas grutas, à espera que os estios acordem no fundo
dos lagos.
No
primeiro poema de Zéfiro, Tufic já celebra o rio tutelar: "Este rio
profundo, mas I nem tanto como a noite e as palavras I que dormem nas conchas
do lodo". É a saga do menino que vai descobrindo paulatinamente o mundo
poroso das águas. "A incansável descoberta dos mapas) nomes que foram
sendo trocados) passaportes vencidos". A referência a passaportes sugere
que o menino já trazia, dentro de si, as encruzilhadas, rotas e caminhos que
deveria percorrer ao longo da vida. Ao ouvir predição de pessoa estranha,
segundo a qual haveria de ser famoso, deixou "que o menino ficasse ali)
para sempre / coberto de vagalumes". O memorial do menino prossegue em seu
lirismo minucioso: "Os morcegos de Sena Madureira / tinham asas de
eucalipto.! Quando estas árvores foram derrubadas / eles passaram a dormir nos
alpendres.! E a insônia tomou conta das janelas". O poeta confessa que
nasceu numa rua chamada Amazonas. "Ficava perto do riol perto do mercado.!
Era a rua mais perto do mundo". A rua em que o menino dialogava com o
futuro poeta nas esquinas do sonho.
Por
esse tempo, Tufic contemplava "A noite pública / sobre telhados
particulares". Zéfiro com Soneata Barroca termina com o poema XIX. Um
soneto no qual o poeta lavra esta inscrição para os tempos vindouros: "sou
formiga, sou fonte, sou texugo! larva na sequidão dos necrológios! Quem foi ao
bosque, livre-se dos ódios / que outros lugares roubam-me do estudo; ali estão nossos ossos e o veludo / das luas
sobre tantos episódios". Restaria uma alusão especial aos treze sonetos de
que se compõe a Soneata Barroca. Trata-se de poemas da melhor qualidade, seja
pelos aspectos formais ou pela clarividência com que o poeta celebra as
metamorfoses do cotidiano, onde muitos de nós naufragamos naqueles
"instantes sem razão e sem verso", a que se refere Carlos Drummond de
Andrade.
Sempre imaginei que os verdadeiros
poetas são bons em tudo o que fazem. (Deixo aqui a ressalva de Horácio, em A
Arte Poética, segundo a qual até mesmo o bom Homero tem o direito de cochilar
algumas vezes.) Pouco \importa que escrevam poemas rimados e metrificados ou poemas
em versos livres, sem medida e sonoridades coincidentes. Na épica, na ode, na
elegia, no epigrama ou no madrigal, o verdadeiro poeta sempre diz a que veio. É
o que acontece com Jorge Tufic, que oportunamente publicou plaqueta à maneira
dos repentistas nordestinos ou dos chamados folhetos de cordel. Com o mesmo
"savoir-faire" com que escreve poemas eruditos, onde celebra o amor,
a vida e a morte sob o viés metafísico, Tufic canta em tom de menor intensidade,
diversos outros assuntos ligados à natureza, ao ser humano e aos bichos de modo
geral. Um exemplo de sua verve nessa vertente caudalosa da poesia popular:
"Ao som, portanto, maduro! dessa batalha encourada, I visto a roupa do
vaqueiro, / seu gibão, sua toada / e curto o couro dos bichos I que morrem de
madrugada".
Tufic está por dentro dos saberes e
feitiços dos pajés, pessoas dedicadas às reflexões e estudos dos fenômenos da
natureza que se revestem de conotações sobrenaturais. Segundo o poeta, em
Quando as Noites Voavam, "os pajés costumam ver uma escada que tem a ponta
no setestrelo e a base na fonte sagrada que alimenta as reservas do líquido
primário" (p. 43). Logo mais adiante, esta informação para iniciados em
estudos amazônicos: "Pelas bordas da fonte, rãs se petrificam de olho nos
mosquitos. E a linfa, de alegre, não pára de cantar". Desconfio que o
engenhoso Tufic teria sido eminência parda de algum pajé para tratar de
assuntos relacionados com bruxarias e outras coisas desse tipo. A segurança com
que trafega nos labirintos e mitologias da selva lhe confere o diploma de
pós-graduação nessa área inacessivel ao comum dos mortais. Vejam a intimidade
com que fala o poeta dos poderes da "Cobra Grande, que ajuda o boto a
entrar nas moças surdas aos conselhos dos pais". Pelo discurso poético de
Tufic, a gente fica sabendo que "os filhotes da Cobra Grande deixam a
barriga da moça" que se deixara seduzir ... "A água vai subindo,
engole a casa. Nas palhas que submergem, cobrinhas arrastam seu avô para o
fundo das águas". Surrealismo à flor da pele.
Poderia escrever páginas inteiras
falando dos poemas amazônicos desse acriano de raízes libanesas. Elãsabe das
coisas e faz uso das melhores estratégias formais para transmitir ao leitor seu
legado de saberes, como se personagem principal das lendas que nos conta de
forma absolutamente sedutora. Na introdução do livro Quando as Noites Voavam,
Tufic esclarece que suas crônicas (ou poemas) tiveram origem no "foco
temático" da obra de Antônio Brandão Amorim, intitulada "Lendas em
Nheengatu e em Português. Tufic nos brinda com autêntico trabalho de recriação
desses mitos e lendas que desafiam a voragem e fugacidade dos séculos.
Em livro lançado recentemente por
editora de Manaus, de autoria de Gaitano Antonáccio, fica-se conhecendo melhor
a história e as origens do homem e do poeta Jorge Tufic Alauzo, como também das
lutas do povo acriano para conquistar sua independência política. Como a grande
maioria do povo brasileiro, purgou seus pecados na condição de inspetor fiscal
do Ministério do Trabalho, mas não permitiu que lhe seccionassem a veia poética
nem que o esmagassem nas engrenagens da burocracia, cuja aridez nos permite
sobreviver por algum tempo, mas sempre nos deixa marcas indeléveis no corpo e
na alma. O opulento currículo que hoje ostenta, constituído de títulos honoríficos,
prêmios literários, medalhas de mérito, diplomas e certificados - tudo isso dá
testemunho vigoroso da carreira ascendente do funcionário público e do poeta,
figura admirada e respeitada em todos os estamentos da sociedade e do mundo
intelectual do país. Por tudo o que escreveu em prosa e verso, pela coerência e
limpidez do seu depoimento de ser humano, de humanista e de poeta, dou-lhe nota
dez. "Cum laude".
FRANCISCO
CARVALHO
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