A SOLIDÃO DA
ÁRVORE
MARCUS ACCIOLY
Durante a Bienal da Floresta, do Livro e
do Leitor – realizada no Rio Branco, Acre, pelo escritor Pedro Vicente – refiz uma
viagem feita muitas vezes, há muitos anos. Após um frugal café da manhã no
Inácio Pálace Hotel, o novo, pois o velho era Inácio Parece Hotel, eu e o poeta
Jorge Tufic, a convite de um grande amigo, o boliviano Miguel Ángel Ortiz, saímos
de Rio Branco, em direção a Cubija, no Estado de Pando, na Bolívia. As nossas
memórias funcionaram de modo diferente: Tufic se pegou com o menino que ele foi
no Acre, Miguel, com a sua vida na Bolívia, e eu, com o tempo de um arcaico Rio
Branco, que se escondeu por dentro, ou por detrás, do moderno. Assim, chegamos
à recente cidade de Capixaba e só no desvio para Xapuri, onde o rio Acre se
encontra com o próprio rio Xapuri, é que nossas memórias se encontraram.
Visitamos a casa, o Centro Cultural e o túmulo do seringueiro Chico Mendes (que cantei no meu livro – Latinomérica) e logo voltamos à mesma estrada
que obrigava Miguel a fazer do seu Honda um cavalo saltando os obstáculos.
A paisagem exibia a devastação sem medida,
desde que a borracha cedeu o seu lugar ao gado e o gado à incipiente cana-de-açúcar.
Inúmeras castanheiras se aproximavam e se afastavam do acostamento, como uns
resquícios da floresta de Hamelet. Cortei o nosso silêncio, sob o silêncio surdo
do motor, com uma pergunta: “Quantos metros tem uma castanheira?” Tufic tentou
medir, com o olho, enquanto Miguel respondeu: “Cerca de 40 metros ”. Algo de doído
ligava, em mim, a castanheira da floresta à castanheira da praia, ou
amendoeira, quando Miguel prosseguiu: “Como é proibido, por Lei, derrubar
castanheiras, elas ficam assim, separadas delas mesmas e da selva”. Observei aquelas
árvores solteiras e percebi que algumas de suas ilhas verdes tinham secado.
“Parece que elas escaparam, mas estão morrendo, não é, Miguel?” “Pois é, no
conjunto elas tem o besouro que, através das plantas e dos cipós, faz a
proliferação. Assim, isoladas, o besouro não consegue alcançar a copa e, aos
poucos, elas vão morrendo”. “Qual é o tipo de besouro?” “É o mungangá”. “Ah,
sei, o cavalo-do-cão, que também reproduz o maracujá rasteiro ou sobre as
árvores”. Tufic riu um pouco e disparou: “Esse aí é um cavalo do Nordeste”.
Percebi que estava entre um acreano e um boliviano e falei um trecho de cantiga
do meu livro Guriatã – um cordel para
menino: “Manda música, maestro, / moda má, música má, / mau mestre, muita munganga,
/ munganguento mugangá”. Tufic aproveitou a deixa e disse algumas cantigas do
seu livro: A insônia dos grilos. A
partir de então a viagem se tornou um recital.
Depois que atravessamos a ponte e chegamos
a Cubija, a cidade também já era outra. “Em Rio Branco , eu só reconheci
o Rio Acre, acho que, de Cubija, se Tufic comprar todos os uísques que
pretende, só vou reconhecer a alfândega” – eu disse e quase não aconteceu outra
coisa, pois, além das bebidas, ele apenas comprou diversas camisas de seda. “O
seu caso, Tufic, ao que parece, é de seda e sede” – eu provoquei e ele
consertou: “Ao inverso: é de sede e de seda”. Aproveitei o seu “inverso” e,
novamente, passamos a dizer algo “in verso” ou “em verso”. Miguel visitou o
amigo e ex-governador do Estado de Pando, Felipe, que, com a esposa, Marilu,
nos levou à parrilhada. Tufic quase
não comeu, em compensação, esgotou, sozinho, mais do que um quarto de uma das
garrafas.
De volta, eu disse a Miguel: “Comprei
tanto bagulho, que tive de comprar uma mala”. “Pois é, Tufic já leva a dele,
como um camelo”. Tufic não respondeu. Voltei-me do banco dianteiro e Miguel
percebeu pelo espelho que Tufic sonhava. Tirei a máquina da sacola e fui
fotografando aquelas castanheiras tristes, da beira da estrada, como se
quisesse que elas não morressem. Para cada foto, Miguel diminuía a velocidade.
“Era bom que fosse assim, Miguel, que tudo passasse, ficasse para trás, mas as
árvores estão na máquina e na memória”. “Pois é, e o pior é que ficarão mais na
memória do que na máquina”. Tufic acordou de repente e perguntou à-toa: “Vocês
estão falando de máquina ou de memória?” “Da máquina da memória e da memória da
máquina, Tufic” – eu disse, enquanto Miguel desviou de um buraco e Tufic, com a
vantagem do tombo, regressou ao seu sono, ou seu sonho, de poeta.
MARCUS ACCIOLY é poeta. E-mail:
marcusaccioly@terra.com.br
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