sábado, 23 de novembro de 2013

Tufic ao sopro do Zéfiro

              


POR
Francisco Carvalho


                       


Tufic ao sopro do Zéfiro


 

Recorro a um truísmo para dizer que o poeta Jorge Tufic já se tornou numa figura legendária da poesia brasileira do século passado e do milênio que se inicia. Críticos e resenhadores do país, independentemente de tendências e opções estéticas, não têm negado aplausos ao desempenho Francisco Carvalholiterário deste autêntico mestre da artesania poética, acreano de pais libaneses, nascido no final da terceira década do século recém-findo.

Numerosos livros de poemas e de ensaios enriquecem sua vasta bibliografia. Jorge Tufic é desses autores que exprimem, através do poema, sua paixão avassaladora pela beleza e fugacidade da vida, pelo legado existencial herdado de seus antepassados mais remotos. Profundamente ligado às raízes, sem renunciar à fidelidade e aos apelos do tempo presente, o poeta insinua-se nos meandros das realidades do cotidiano para se encontrar consigo mesmo, com as razões ou sem-razões do poema. Ou para confessar em versos como estes, repletos de evocações do seu rio tutelar: “Menino ainda, escolhi o meu caso./ Segui uma nuvem que vinha das cabeceiras” (Zéfiro com Soneata Barroca, Realce Editora, Fortaleza, 2004).

Mestre incontestável do soneto, essa teia mágica que ainda intriga os pretendentes de Penépole, Tufic passa incólume pelas “perpétuas grades” (Augusto dos Anjos) dessa autêntica jaula medieval, com certeza uma das mais polêmicas de todas as modalidades de poemas já concebidas pela fantasia humana. Os sonetos de Jorge Tufic são de uma leveza prodigiosa, e nisso reside um dos segredos de sua modernidade.

(Oportuno lembrar que o texto literário produzido sob o signo da norma culta é, necessariamente, terreno propício ao surgimento de numerosas figuras de sintaxe e/ou de pensamento, das quais é pródigo o idioma dos nossos ancestrais ibéricos. Essa opulenta nomenclatura de tropos faz parte do acervo arqueológico do próprio idioma, razão pela qual, na maioria das vezes, eles entram compulsoriamente na poesia ou na ficção sem que os autores tenham contribuído diretamente para isso. Seria utópico imaginar que a verdadeira poesia dependesse, aleatoriamente, de eventualidades ornamentais. Não seria absurdo imaginar que esses arquétipos podem ser encontrados até mesmo numa tediosa exposição de algum balancete sobre lucros bancários).

Poeta de muitas andanças pelo Brasil e outras paragens do mundo, espírito inquieto num corpo de beduíno, Jorge Tufic assimilou imagens e recordações dos lugares por onde passou. De tal que em seus poemas arrulham pássaros e regatos, rios e lagos que escondem mistérios, lendas de sereias e visões encantadas, duendes feiticeiros e outros seres fantásticos que habitam nos troncos diluviais da floresta amazônica. Além de colméias dos tempos da criação do mundo, construídas de fragmentos de diamantes lapidados. Sem falar nas flores exóticas cuja beleza e perfume enfeitiçam os homens, peixes, insetos e animais que se acasalam ou hibernam nas grutas, à espera de que os estios acordem no fundo dos lagos.


Jorge Tufic, foto de João Justino

No primeiro poema de Zéfiro, Tufic já celebra o rio tutelar: “Este rio profundo, mas / nem tanto como a noite e as palavras / que dormem nas conchas do lodo”. É a saga do menino que vai descobrindo paulatinamente o mundo poroso das águas. “A incansável descoberta dos mapas, / nomes que foram sendo trocados, / passaportes vencidos.” A referência a passaportes sugere que o menino já trazia, dentro de si, as encruzilhadas, rotas e caminhos que deveria percorrer ao longo da vida. Ao ouvir predição de pessoa estranha, segundo a qual haveria de ser famoso, deixou “que o menino ficasse ali, / para sempre / coberto de vagalumes”. O memorial do menino prossegue em seu lirismo minucioso: “Os morcegos de Sena Madureira / tinham asas de eucalipto. / Quando estas árvores foram derrubadas / eles passaram a dormir nos alpendres. / E a insônia tomou conta das janelas”. O poeta confessa que nasceu numa rua chamada Amazonas. “Ficava perto do rio / perto do mercado. / Era a rua mais perto do mundo”. A rua em que o menino dialogava com o futuro poeta nas esquinas do sonho.

Por esse tempo, Tufic contemplava “A noite pública / sobre telhados particulares”. Zéfiro com Soneata Barroca termina com o poema XIX. Um soneto no qual o poeta lavra esta inscrição para os tempos vindouros: “sou formiga, sou fonte, sou texugo, / larva na sequidão dos necrológios. / Quem foi ao bosque, livre-se dos ódios / que outros lugares roubam-me do estudo; / ali estão nossos ossos e o veludo / das luas sobre tantos episódios”. Restaria uma alusão especial aos treze sonetos de que se compõe a Soneata Barroca. Trata-se de poemas da melhor qualidade, seja pelos aspectos formais ou pela clarividência com que o poeta celebra as metamorfoses do cotidiano, onde muitos de nós naufragamos naqueles “instantes sem razão e sem verso”, a que se refere Carlos Drummond de Andrade.

Sempre imaginei que os verdadeiros poetas são bons em tudo o que fazem. (Deixo aqui a ressalva de Horácio, em A Arte Poética, segundo a qual até mesmo o bom Homero tem o direito de cochilar algumas vezes.) Pouco importa que escrevam poemas rimados e metrificados ou poemas em versos livres, sem medida e sonoridades coincidentes. Na épica, na ode, na elegia, no epigrama ou no madrigal, o verdadeiro poeta sempre diz a que veio. É o que acontece com Jorge Tufic, que oportunamente publicou plaqueta à maneira dos repentistas nordestinos ou dos chamados folhetos de cordel. Com o mesmo “savoir-faire” com que escreve poemas eruditos, onde celebra o amor, a vida e a morte sob o viés metafísico, Tufic canta, em tom de menor intensidade, diversos outros assuntos ligados à natureza, ao ser humano e aos bichos de modo geral. Um exemplo de sua verve nessa vertente caudalosa da poesia popular: “Ao som, portanto, maduro, / dessa batalha encourada, / visto a roupa do vaqueiro, / seu gibão, sua toada / e curto o couro dos bichos / que morrem de madrugada”.

Tufic está por dentro dos saberes e feitiços dos pajés, pessoas dedicadas às reflexões e estudos dos fenômenos da natureza que se revestem de conotações sobrenaturais. Segundo o poeta, em Quando as Noites Voavam, “os pajés costumam ver uma escada que tem a ponta no setestrelo e a base na fonte sagrada que alimenta as reservas do líquido primário” (p. 43). Logo mais adiante, esta informação para iniciados em estudos amazônicos: “Pelas bordas da fonte, rãs se petrificam de olhos nos mosquitos. E a linfa, de alegre, não pára de cantar”. Desconfio que o engenhoso Tufic teria sido eminência parda de algum pajé para tratar de assuntos relacionados com bruxarias e outras coisas desse tipo. A segurança com que trafega nos labirintos e mitologias da selva lhe confere o diploma de pós-graduação nessa área inacessível ao comum dos mortais. Vejam a intimidade com que fala o poeta dos poderes da “Cobra Grande, que ajuda o boto a entrar nas moças surdas aos conselhos do pais”. Pelo discurso poético de Tufic, a gente fica sabendo que “os filhotes da Cobra Grande deixam a barriga da moça” que se deixara seduzir... “A água vai subindo, engole a casa. Nas palhas que submergem, cobrinhas arrastam seu avô para o fundo das águas”. Surrealismo à flor da pele.

 

Francisco Carvalho

da Academia Cearense de Letras

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