sábado, 2 de novembro de 2013

Voz Ceará, de Stella Leonardos

Voz Ceará, de Stella Leonardos

Jorge Tufic
 
 
                A seleção de “fragmentos” que dinamizam a rapsódia, se funda também nos princípios da Legenda e da Saga, a primeira incorporando a clássica “Legenda Sanctorum” ou “Legenda Aurea” (coisas a dizer, vida dos santos: legere = reunir, escolher), e a segunda como “relato, narrativa referente ao passado e, mais particularmente, ao passado remoto, tal como se transmite de geração em geração” (Jolles, André, in  “Formas Simples”, Cultrix, 1976). Dentre as várias experiências narrativas de Mário de Andrade, insere-se “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, publicado em 1928, chamado, às vezes, de “idílio”, outras, de “rapsódia”, que assinala, segundo Massaud Moisés, “o caráter miscelânico da obra, ou sua indeterminação no painel dos gêneros literários”. 
 
                Neste “Voz Ceará”, a que a autora, Stella Leonardos, também denomina de rapsódia, nos surpreende descobrir como esta “voz” arrecada uma extensão bastante considerável de história, lendas, costumes, mistérios, fauna e flora, além de abraçar, com o tépido encantamento de seus versos, uma área igualmente consagrada de nomes da poesia cearense contemporânea, a exemplo de Virgílio e Luciano Maia, Artur Eduardo Benevides, Francisco Carvalho, folcloristas da cepa de Florival Serraine e cantadores da fama de João de Cristo Rei, João Lucas Evangelista e José de Matos. 
 
                Muito mais do que isso, ela conta, qual fosse um passarinho ágil e noturno, o que vê e o que tantos não viram ou deixaram de ver, mas de que ouviram certamente falar sobre estes inúmeros cearás que atravessam suas páginas, fazendo-nos deter, aqui e ali, ante passagens deveras exemplares da forma e do modo áspero desse imenso nordeste brasileiro, versátil e contraditório. Tecendo à vontade, sabendo que dispõe, para o feito em lavra, da matéria insone dos fatos consumados e do eloquente testemunho dos barcos e da paisagem, Stella empresta a cada traço verbal a leveza dos “elles” em que seu nome fulgura. Ela tem os olhos colados nas proas das jangadas, que por sua vez a olham, familiares, e transmitem, através de suas metáforas, a odisseia regional das “três raças-mamães brasileiras”. 
 
                Raramente um poeta, como ela, soubera harmonizar os elementos singulares da fala corrente, espontânea e carregada de significados, com uma linguagem tão fluida e tão bela, onde os espaços entre as frases constroem, alternado ao espaço gráfico propriamente dito, aquele sopro visível da poesia enlaçada à palavra mágica, inseparável do mito. 
 
                Começar a leitura desta rapsódia nos parece igual a reviver, de olhos abertos, de um lado, uma história que pouco conhecemos, e de outro, o avesso de uma realidade que somente a visão épica do rapsodo consegue transpor para a escrita. E aqui homens, serras, bichos, caminhos e tragédias, como que voltam filtrados por uma luz que se reflete na paisagem dos evos. Lendo-a, algo se restabelece dentro de nós: talvez a certeza de que tenhamos sido este passado; e o crédito de novas esperanças alteia-se nos arcos dos sonhos que ainda podemos viver e tocar para outros futuros. Como as jangadas, entre outros versos de SL:
 
 
                                               “Pertences de herdados mares?
                                               ou eu é que lhes pertenço?”
 
                                               .................................................
 
                                               “por sofridas tentativas
                                               de erguer a Cruz a caminho
                                               rumo à sonhada conquista
                                                            do inóspito território”
 
                                               .................................................
 
                                               “a voz ceará prosseguindo,
                                                              cantando dos povoadores
                                               arribados de mar brabo,
                                                               por terras híspidas vindos:
                                               – conquistemos estas bandas
                                                               ocupadas pelos índios!” 
 
                O poeta aceita, neste particular, a ótica dos velhos colonizadores – e passa a olhar os índios, não mais como donos da terra, mas como simples ocupantes do espaço a ser conquistado. 
 
                Não é, contudo, a Clío que Stella Leonardos rende a homenagem de seus afiadíssimos acordes poéticos; é à doce Polímnia, essa musa da retórica, cujo discurso persuade enquanto transfigura. É assim que a vislumbramos, nós, seus leitores, no decurso de uma leitura sem pressas desnecessárias, senão apenas faminta de prosseguir ao longo de um texto elaborado sem o rigor dos formalistas ou parnasianos, mas aberto como o sol de uma túnica diante do altar de Apolo. 
 
                Rendilhado febril, diríamos até certo ponto obediente aos paralelos da linearidade artesanal e aos desenhos de um mapa interior que se vai revelando, em carne, terra e osso, mediante pesquisa, confronto e vivência da própria autora, este poema é único, no todo e em parte. Composto com a matéria viva da memória e do louvor a que e a quem merece ser louvado, é o Ceará, afinal, de Ana Triste e o Ceará dos jovens “padeiros” de hoje, que esplende e se eterniza em cada lance do bilro, no traçado da rota e no pouso, avelíssimo, das imagens fecundas.

 

 


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