Voz Ceará, de Stella Leonardos
Jorge Tufic
A seleção de “fragmentos” que dinamizam a rapsódia,
se funda também nos princípios da Legenda e da Saga, a primeira incorporando a
clássica “Legenda Sanctorum” ou “Legenda Aurea” (coisas a dizer, vida dos
santos: legere = reunir, escolher), e a segunda como “relato, narrativa
referente ao passado e, mais particularmente, ao passado remoto, tal como se
transmite de geração em geração” (Jolles, André, in “Formas Simples”, Cultrix, 1976). Dentre as
várias experiências narrativas de Mário de Andrade, insere-se “Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter”, publicado em 1928, chamado, às vezes, de “idílio”,
outras, de “rapsódia”, que assinala, segundo Massaud Moisés, “o caráter
miscelânico da obra, ou sua indeterminação no painel dos gêneros
literários”.
Neste “Voz Ceará”, a que a autora, Stella Leonardos,
também denomina de rapsódia, nos surpreende descobrir como esta “voz” arrecada
uma extensão bastante considerável de história, lendas, costumes, mistérios,
fauna e flora, além de abraçar, com o tépido encantamento de seus versos, uma
área igualmente consagrada de nomes da poesia cearense contemporânea, a exemplo
de Virgílio e Luciano Maia, Artur Eduardo Benevides, Francisco Carvalho,
folcloristas da cepa de Florival Serraine e cantadores da fama de João de
Cristo Rei, João Lucas Evangelista e José de Matos.
Muito mais do que isso, ela conta, qual fosse um
passarinho ágil e noturno, o que vê e o que tantos não viram ou deixaram de
ver, mas de que ouviram certamente falar sobre estes inúmeros cearás que
atravessam suas páginas, fazendo-nos deter, aqui e ali, ante passagens deveras
exemplares da forma e do modo áspero desse imenso nordeste brasileiro, versátil
e contraditório. Tecendo à vontade, sabendo que dispõe, para o feito em lavra,
da matéria insone dos fatos consumados e do eloquente testemunho dos barcos e
da paisagem, Stella empresta a cada traço verbal a leveza dos “elles” em que
seu nome fulgura. Ela tem os olhos colados nas proas das jangadas, que por sua
vez a olham, familiares, e transmitem, através de suas metáforas, a odisseia
regional das “três raças-mamães brasileiras”.
Raramente um poeta, como ela, soubera harmonizar os
elementos singulares da fala corrente, espontânea e carregada de significados,
com uma linguagem tão fluida e tão bela, onde os espaços entre as frases
constroem, alternado ao espaço gráfico propriamente dito, aquele sopro visível
da poesia enlaçada à palavra mágica, inseparável do mito.
Começar a leitura desta rapsódia nos parece igual a
reviver, de olhos abertos, de um lado, uma história que pouco conhecemos, e de
outro, o avesso de uma realidade que somente a visão épica do rapsodo consegue
transpor para a escrita. E aqui homens, serras, bichos, caminhos e tragédias,
como que voltam filtrados por uma luz que se reflete na paisagem dos evos.
Lendo-a, algo se restabelece dentro de nós: talvez a certeza de que tenhamos
sido este passado; e o crédito de novas esperanças alteia-se nos arcos dos
sonhos que ainda podemos viver e tocar para outros futuros. Como as jangadas,
entre outros versos de SL:
“Pertences de herdados
mares?
ou eu é que lhes
pertenço?”
.................................................
“por sofridas
tentativas
de erguer a Cruz a
caminho
rumo à sonhada
conquista
do inóspito território”
.................................................
“a voz ceará
prosseguindo,
cantando dos povoadores
arribados de mar
brabo,
por
terras híspidas vindos:
– conquistemos estas
bandas
ocupadas
pelos índios!”
O poeta aceita, neste particular, a ótica dos velhos
colonizadores – e passa a olhar os índios, não mais como donos da terra, mas
como simples ocupantes do espaço a ser conquistado.
Não é, contudo, a Clío que Stella Leonardos rende a
homenagem de seus afiadíssimos acordes poéticos; é à doce Polímnia, essa musa
da retórica, cujo discurso persuade enquanto transfigura. É assim que a
vislumbramos, nós, seus leitores, no decurso de uma leitura sem pressas
desnecessárias, senão apenas faminta de prosseguir ao longo de um texto
elaborado sem o rigor dos formalistas ou parnasianos, mas aberto como o sol de
uma túnica diante do altar de Apolo.
Rendilhado febril, diríamos até certo ponto obediente
aos paralelos da linearidade artesanal e aos desenhos de um mapa interior que
se vai revelando, em carne, terra e osso, mediante pesquisa, confronto e
vivência da própria autora, este poema é único, no todo e em parte. Composto
com a matéria viva da memória e do louvor a que e a quem merece ser louvado, é
o Ceará, afinal, de Ana Triste e o Ceará dos jovens “padeiros” de hoje, que
esplende e se eterniza em cada lance do bilro, no traçado da rota e no pouso,
avelíssimo, das imagens fecundas.
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