CURVAS
DO TEMPO
Neste seu livro Curvas do
Tempo, como em seu principal caudatário Angústia Numeral, Antísthenes Pinto
procura registrar e transmitir as impressões de um mundo que pode ser visto do futuro, conforme o
poema 42, que abre o volume: “extinto cais”, “mortas paragens”. A lua é
natimorta. O barco é mortuário. E o grito do mocho “arde nas labaredas do dia”.
Em seu longo poema feito por fragmentos, a visão que nos dá é de sucessivos
“autos-de-fé”, nos quais até mesmo as
borboletas se aposentam, e o vento leva, de pronto, o seu dono. As
coisas, os seres e sobretudo a própria poesia, em busca feroz da metáfora que
lhe demonstre o grau de purificação pela destruição a que chegaram – se vestem
daquela inquietude que, em certas passagens da obra, ganham uma técnica
adequada ao transe de surrealidade (fragmento 66), onde o criador se
autocondena a um suplício maior que o de
Prometeu. Isto é, ao mesmo tempo que aves mortas lhe bicam os rins e o coração,
ele grita qualquer coisa pro gato que engoliu sua mão. Aí está, sem dúvida, o
verdadeiro suplício do poeta, em debate
com o mito da expressão que, no fundo mesmo, se traduz por uma “pressão” e uma
“ex-pressão” dentro de um continuum
que é o poema.
Por outro lado, uma
atmosfera de percepção kafkiana habilita-se a fornecer vários outros aspectos
de análise, com prevalência naturalmente da necessidade de um estudo sobre a
forma ou a estrutura do verso, sempre, vale
observar, paralela ao jugo dos símbolos de que o poeta se utiliza para expressar o ilógico e o
análogo de seu orbe particular. Um particular, no entanto, vazado nos códigos
de todos os dias e de todas as gentes,
embora nele apareçam “baratas verdes”, “voz de incêndio”, “peixe de sol”,
“clamor ferrugem”, “negror diurno”, “pânico em repouso”, “lago áspero”, “suor
do mundo”, “rio-uzina”, “abelhas louras”, “praça alada”, entre muitos exemplos.
O símbolo, como em James Joyce, é o elemento básico da expressão. O signo,
aliado ao símbolo, na conceituação de Saussurre, é o que constitui a essência da linguagem.
Deste modo, nem sempre a
poesia que denominamos moderna é entendida por alguns que, ainda habituados ao
verso conceitual, estranham ou simplesmente evitam o esforço de não confundi-la
com a prosa. O lirismo e a transcendência da poesia, por serem de natureza
conotativa, diferem, assim, daquela, mais afeita ao registro direto dos fatos e
acontecimentos do nosso cotidiano. Esse mesmo cotidiano que em Antísthenes
Pinto representa uma espécie de aventura como “restauração” de tantas coisas e
objetos aparentemente vulgares, mas que, depois de recolhidos na malha sensível
do poema, lembram um exercício freqüente do grande Manuel Bandeira. O autor de
Belo Belo, dizem Gilda e Antônio Cândido, “repetia no plano da palavra a
experiência dos cubistas e surrealistas nas colagens (papiers collés).
Erguia-as do entulho a que o gosto médio as havia reduzido para de novo
insuflar-lhes o sopro da Poesia, da mesma forma que os pintores retiravam
dentre os detritos da cesta de papel os pregos, rolhas, caixas de fósforos
vazias, pedaços de barbante e de estopa com que iriam trabalhar a superfície da
tela. Num caso como no outro, a emoção artística surgia dessa promoção do
objeto que, colocado num contexto novo, irradiava magicamente à sua volta um
novo espaço artístico, onde ao fluente encadeamento lógico se substituía uma
organização de choque”.
Além desse tratamento de
choque, Curvas do Tempo revela a dureza
da vida e do trabalho, na faina de construir e destruir em nome da
sobrevivência material. A presença do homem é nula em seus poemas. Mas quem não
sente e vê, como as águas refletem e o sopro da brisa alivia, esses vultos
esquálidos no ofício de quebrar pedra debaixo da ponte, com “mãos de pedras
humanizando pedras”? Mais adiante o poeta lamenta a impossibilidade de captar
um poema “se as árvores encardidas na praça mostram ossos em vez de folhas”.
Bem humorado, andando um passo à frente de sua época, Curvas do Tempo leva, com
certeza, à descoberta de “efeitos supostamente não relacionados”, onde a
lucidez, ao contrário da loucura, mostra a realidade exatamente como relutamos
por não aceitá-la. O mundo caminha para isso. E a poesia também.
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