sexta-feira, 27 de setembro de 2013

CURVAS DO TEMPO


CURVAS DO TEMPO
 

Neste seu livro Curvas do Tempo, como em seu principal caudatário Angústia Numeral, Antísthenes Pinto procura registrar e transmitir as impressões de um mundo  que pode ser visto do futuro, conforme o poema 42, que abre o volume: “extinto cais”, “mortas paragens”. A lua é natimorta. O barco é mortuário. E o grito do mocho “arde nas labaredas do dia”. Em seu longo poema feito por fragmentos, a visão que nos dá é de sucessivos “autos-de-fé”, nos quais até mesmo as  borboletas se aposentam, e o vento leva, de pronto, o seu dono. As coisas, os seres e sobretudo a própria poesia, em busca feroz da metáfora que lhe demonstre o grau de purificação pela destruição a que chegaram – se vestem daquela inquietude que, em certas passagens da obra, ganham uma técnica adequada ao transe de surrealidade (fragmento 66), onde o criador se autocondena a  um suplício maior que o de Prometeu. Isto é, ao mesmo tempo que aves mortas lhe bicam os rins e o coração, ele grita qualquer coisa pro gato que engoliu sua mão. Aí está, sem dúvida, o verdadeiro  suplício do poeta, em debate com o mito da expressão que, no fundo mesmo, se traduz por uma “pressão” e uma “ex-pressão” dentro de um continuum que é o poema.

Por outro lado, uma atmosfera de percepção kafkiana habilita-se a fornecer vários outros aspectos de análise, com prevalência naturalmente da necessidade de um estudo sobre a forma ou a  estrutura do verso, sempre, vale observar, paralela ao jugo dos símbolos de que o poeta  se utiliza para expressar o ilógico e o análogo de seu orbe particular. Um particular, no entanto, vazado nos códigos de todos  os dias e de todas as gentes, embora nele apareçam “baratas verdes”, “voz de incêndio”, “peixe de sol”, “clamor ferrugem”, “negror diurno”, “pânico em repouso”, “lago áspero”, “suor do mundo”, “rio-uzina”, “abelhas louras”, “praça alada”, entre muitos exemplos. O símbolo, como em James Joyce, é o elemento básico da expressão. O signo, aliado ao símbolo, na conceituação de Saussurre, é o que  constitui a essência da  linguagem.

Deste modo, nem sempre a poesia que denominamos moderna é entendida por alguns que, ainda habituados ao verso conceitual, estranham ou simplesmente evitam o esforço de não confundi-la com a prosa. O lirismo e a transcendência da poesia, por serem de natureza conotativa, diferem, assim, daquela, mais afeita ao registro direto dos fatos e acontecimentos do nosso cotidiano. Esse mesmo cotidiano que em Antísthenes Pinto representa uma espécie de aventura como “restauração” de tantas coisas e objetos aparentemente vulgares, mas que, depois de recolhidos na malha sensível do poema, lembram um exercício freqüente do grande Manuel Bandeira. O autor de Belo Belo, dizem Gilda e Antônio Cândido, “repetia no plano da palavra a experiência dos cubistas e surrealistas nas colagens (papiers collés). Erguia-as do entulho a que o gosto médio as havia reduzido para de novo insuflar-lhes o sopro da Poesia, da mesma forma que os pintores retiravam dentre os detritos da cesta de papel os pregos, rolhas, caixas de fósforos vazias, pedaços de barbante e de estopa com que iriam trabalhar a superfície da tela. Num caso como no outro, a emoção artística surgia dessa promoção do objeto que, colocado num contexto novo, irradiava magicamente à sua volta um novo espaço artístico, onde ao fluente encadeamento lógico se substituía uma organização de choque”.

Além desse tratamento de choque, Curvas do Tempo revela a  dureza da vida e do trabalho, na faina de construir e destruir em nome da sobrevivência material. A presença do homem é nula em seus poemas. Mas quem não sente e vê, como as águas refletem e o sopro da brisa alivia, esses vultos esquálidos no ofício de quebrar pedra debaixo da ponte, com “mãos de pedras humanizando pedras”? Mais adiante o poeta lamenta a impossibilidade de captar um poema “se as árvores encardidas na praça mostram ossos em vez de folhas”. Bem humorado, andando um passo à frente de sua época, Curvas do Tempo leva, com certeza, à descoberta de “efeitos supostamente não relacionados”, onde a lucidez, ao contrário da loucura, mostra a realidade exatamente como relutamos por não aceitá-la. O mundo caminha para isso. E a poesia também.

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