segunda-feira, 23 de setembro de 2013

OURO, INCENSO E MIRRA

 
       OURO, INCENSO E MIRRA
Graças à minha longa convivência, na juventude, com o poeta Alencar e Silva, recordá-lo, hoje, significa também identificar a gênese perfeita do estágio atual de sua poesia numa constante de busca e revelação: idéias e visões apocalípticas que aderem, na maturidade física e espiritual, ao fascínio misterioso da Vida de Cristo, ao milagre da fé e à suprema eficiência da arte como instrumento de catequese.
Autor consagrado de oito volumes do gênero, é, contudo, a partir do livro intitulado “Sob o Sol de Deus” que se processa, a meu ver, o fenômeno de seu tranqüilo apostolado junto às escrituras religiosas que, antes, certamente, eram restritas ao âmbito  apenas de seus textos prediletos. Deve ter sido, portanto, lento e gradativo esse avanço da Luz Verdadeira, enquanto a dúvida e a “perplexidade existencial” recuavam para dar  lugar a um novo compêndio de beleza, sabedoria e verdade. Trata-se agora de “Ouro, Incenso e Mirra”, poesia como os demais, território este onde a pena do mestre tem sabido harmonizar os preceitos doutrinários com o legítimo acorde da expressão poética.
Lírico até o sétimo degrau de sua Obra Poética (“Sob o Sol de Deus”), Alencar e Silva torna-se  épico ao testemunhar a palavra e  os passos do Filho de Nazaré através deste poema composto em (5) cinco segmentos e (50) cincoenta sonetos, todos elaborados com a simplicidade evangélica de quem sabe entrelaçar os fios de uma túnica sagrada. Dá-nos, assim, com a publicação deste livro, uma síntese, inclusive, do homem que sente, na pele e no coração, os martírios e o caos do seu próprio tempo, o que me leva a supor tenha sido este o porto, a rota, a direção ou o sentido que ele perseguia além dos desafios comuns a todo pedestre incomum, além de todos os signos dramáticos que o cercaram na mocidade, além do cálice e do horto invadidos pelo medo.
Releio, enquanto escrevo estas linhas, o seguinte trecho de uma carta sua, com data de 15 de março de 1954: “Sei que sempre tive, na tua pessoa, um observador dos meus passos pelos difíceis caminhos do pensamento, ou um comovido espectador dos meus momentos trágicos, para não dizer tristes...” Mais este outro, agora de um poema autógrafo, s/d: “Porque eu perdi a rota/(ou porque nunca a encontrei)/esta medonha inquietação/começa a desesperar-me:/Onde um porto?/Em que praia, /em que ponta de terra/atirarei meu barco,/para morrer de dormir?/Invejo as conchas - - e a beleza de sua morte.”
Com exceção de “Painéis” (1952), “Lunamarga” (1965), “Território Noturno” (1982), “Sob Vésper” (1986), “Poesia Reunida” (1988), e os dois últimos, da fase mística por excelência, confirmam diante de mim, a segura evolução do poeta. E aqui está, segundo Astrid Cabral, “a constante presença do mar carregado de associações com as grandes distâncias, as terras longínquas, a evasão para o infinito”. Mas diria eu que a  Planície, a Amazônia, esse íntimo lendário subjacente às metáforas perdidas em 300 anos de colonização, sempre foram as preocupações do filósofo, do teórico  ardoroso, do filho da gleba esfíngica, zombeteira e transcendental. Tanto que, embora tenham passado anos sobre estes fatos, ainda lhe retenho o discurso sobre antigos modelos asiáticos que ele expunha aos amigos, na certeza de estar propondo um desenvolvimento menos agressivo para essa parte do setentrião brasileiro. Vivia-se então na década (50) cincoenta, bem longe, por conseguinte, das festividades ecológicas e do “ôba ôba” carnavalesco sobre os estragos, já agora totalmente irreversíveis, contra a Mãe Natureza.
Companheiro inexcedível, poeta genuíno, amigo sincero e bom, todas estas qualidades, no entanto, em nada interferem quando se impõe a necessidade de reiterar, para nós mesmos, a influência e a grandeza deste poeta sobre a geração Madrugada; e, muito antes dela, sobre os jovens da minha geração. É claro que, no momento em que o leio, sobrepõe-se a análise de sua poesia; mas logo a imagem do poeta, do homem inserido no contexto de sua época, do lutador integrando os suplementos literários, ampliam sobremodo a expectativa de um pré-texto afetivo, convertem o modesto projeto do leitor pretencioso numa possível anotação para um livro de memórias.
Seja-me permitido, contudo, admitir que dos Quatro Monges improvisados no auge de uma aventura romântica pelo Sul do País, apenas um deles, Alencar e Silva, por coincidência o menos eloqüente, tivera a coragem de seguir, em verdade, o caminho Daquele que, por sua vez, nunca deixa que a  lâmpada mágica do poeta seque, ou corra o risco de sua chama tremeluzir em plena escuridão.

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